A criança que esperava outra criança
Para meus irmãos bispos católicos
Por Celso Pinto Carias, “mendigo de Deus”.

“Aquele que receber uma destas crianças

por causa do meu nome, a mim recebe” (Mc 9,37a). 

Antes de me apedrejarem, por favor, leiam tudo, e se possível tenham misericórdia.

Sou contra o aborto. E fosse eu ateu seria contra do mesmo modo. Para mim é um princípio ético fundamental. Assim como sou absolutamente contra a pena de morte. Conheci um ateu que pensava do mesmo modo. A vida não tem valor de troca. Ela vale por si mesma.

Acontece que quando avaliamos as condições objetivas nas quais a vida humana se encontra não existe uma equação que possa resolver com facilidade uma situação com alto grau de complexidade como, por exemplo, da “criança-menina” que carregava outra criança sem saber exatamente quem ela carregava em seu ventre.

E sou cristão. Portanto, leio a Bíblia a partir do Caminho de Jesus de Cristo, cuja síntese, conforme um grande amigo pastor, está contida nas Bem Aventuranças. Assim sendo, se as cinco traduções que tenho em casa não estiverem erradas, eu deveria, e aí não tenho possibilidade de medir, conduzir a minha vida pela misericórdia, pela compaixão, pelo Amor que se fez história. Assim sendo, tentei me calar, mas minha consciência não ficaria tranquila se não me pronunciasse a respeito, ainda que minha voz não seja escutada. E é horrível escrever sob a tensão de perseguição.

Ora, diante de uma situação de extrema desumanidade não podemos começar julgando. E tem sido doloroso, até certo ponto vergonhoso, assistir o julgamento desumano que estão fazendo de uma criança. E uma criança de dez anos que já vinha passando por um calvário desde os seis, fora o que não sabemos, pois é uma criança pobre. Triste, muito triste, não ver por parte das autoridades eclesiásticas da Igreja que faço parte palavras de compaixão, misericórdia, acolhimento em direção a esta vida. Aliás, vi uma única voz nesta direção: Dom Mauro Morelli no Twitter.

Uma criança-menina é exposta em um país onde casos semelhantes ao dela acontecem pelo menos seis vezes por dia (https://www.bbc.com/portuguese/53818455). Um conjunto terrível de ataques que só revelam o quanto a crise civilizatória que estamos passando está adoecendo o planeta.

Todas as vezes que a Igreja se apressa em julgar sem antes fazer um profundo discernimento, corre o risco de ter que pedir perdão mais tarde. Evidente que toda análise deve ser feita dentro do seu contexto histórico específico, mas venhamos e convenhamos, havia “teologia cristã” que justificava escravidão e também para afirmar ser o “índio” um humano pela metade. Alguém pode dizer que tal posição é cristã? O suicídio jogou muita gente no “fogo de inferno”, mas a ciência provou que na grande maioria dos casos o suicida não está de posse de sua liberdade e, portanto, não pode ser condenado. Quanta discriminação não foi feita às famílias de pessoas que se suicidaram? Não se podia rezar por elas na Igreja. E se um dia a ciência demonstrar, de forma consensual, que um embrião só pode ser considerado humano depois de determinados dias ou semanas? A ciência demonstrou que a terra é redonda, embora fanáticos digam que é plana, e aí tivemos que pedir perdão para Galileu que morreu em prisão domiciliar.

Ora, a maioria das mulheres não decide por um aborto de forma serena, sobretudo as mais pobres. Repetindo, no caso em referência uma criança-menina, nem mesmo uma adolescente. Criminalizar uma mulher por um aborto é condena-la duas vezes. Vi em um programa de uma TV de inspiração católica, sim, não foi na Globo, que a grande maioria das mulheres que fazem aborto ficam com marcas indeléveis. E os machos? Parece que estamos em tempos imemoriais nos quais se acreditava que a mulher gerava sozinha. Muitos casos os machos forçam as mulheres a fazer o aborto. O Brasil tem 5,5 milhões de crianças sem nome do pai no registro (https://tribunacapixaba.com.br/brasil-tem-55-milhoes-de-criancas-sem-nome-do-pai-no-registro/). Foi tão bonito quando o Papa Francisco disse que não existe mãe solteira, existe mãe. E a discriminação as mães solteiras pode ter diminuído, mas ainda existe. E afirmo, sem dúvida alguma, que o maior fator de desintegração da família é a violência doméstica. Muitos dos que colocam o dedo em riste nas mulheres que abortam são agressores físico ou psicologicamente de suas companheiras.

São tantas variantes em torno de questões relativas à vida humana no atual contexto social da humanidade que não podemos reduzir tudo em ser contra ou a favor. Como diz o Papa Francisco, se não formos capazes de construir processos ficaremos reduzidos ao velho maniqueísmo que, teoricamente, já foi rejeitado faz séculos, mas continuamos a nos colocar do lado do bem como se fossemos perfeitos, sem ambiguidades, sem contradições, e o mal, portanto, só existiria no outro. Não se constrói unidade fazendo de conta que não existem conflitos. Não façamos da Igreja, repetindo Francisco, uma alfandega. Mas podemos, como irmãos e irmãs, falar e ouvir de forma serena?

Por favor, por favor, vamos encontrar um caminho de diálogo. Há na modernidade quem julgue a religião uma irracionalidade, mas há também religiosos que demonizam a ciência de forma obtusa e grosseira. Há religiosos que cultivam o ódio como estratégia para alcançar seus objetivos, e preferem se aliançar com poderes assassinos que falam em nome de Jesus, do que com ateus humanistas. Muitas vezes nem dentro de sua própria religião olham para o/a outro/a como irmão e irmã.

Será que aquilo que São João XXIII disse no discurso de abertura do Concílio Vaticano II é apenas uma boa intenção, isto é, que a Igreja nos dias atuais prefere o remédio da misericórdia que o da condenação?

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