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Da tortura como ato de “Heroísmo”

Por Ivo Lesbaupin

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

“Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (Artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Nações Unidas, 1948).

Pouco antes, a Declaração afirma:

“CONSIDERANDO que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e sejam libertos do medo e da miséria, foi proclamado como a mais alta aspiração do homem”.

Após o término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), as Nações Unidas, num texto que agora completa 70 anos, concordaram que a tortura é um crime, um atentado contra o ser humano. É um ato que fere a dignidade da pessoa e é indigno de quem o pratica. Desde a derrota do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália, durante décadas torturadores foram levados aos tribunais e processados pelos atos cruéis que praticaram.

Do mesmo modo, no Chile e na Argentina – países que também tiveram ditaduras militares -, tendo por base as revelações feitas por suas respectivas Comissões da Verdade, torturadores têm sido processados e presos, assim como mandantes das torturas.

Após a guerra do Iraque, foram divulgadas imagens de torturadores estadunidenses humilhando suas vítimas na prisão de Abu Grahib, o que gerou uma reação mundial de protesto. Os Estados Unidos processaram e condenaram os torturadores.

Em nenhum outro país do mundo um torturador foi considerado “herói”. Em primeiro lugar, porque dele não se exige nenhum ato de coragem, ele não enfrenta um inimigo com risco de sofrer qualquer mal: ao contrário, ele agride um outro ser humano, desarmado, preso, amarrado, indefeso, rodeado por outros torturadores. Não é um ato de coragem, ao contrário, é um ato de covardia. Não é algo que enaltece o indivíduo, é algo que o diminui.

O que está ocorrendo no Brasil de hoje é uma situação constrangedora: que país é este – em que um criminoso é homenageado e o crime é exaltado?

O elogio à tortura é uma forma clara de elogiar a ditadura que fez dela a forma usual de tratar os opositores. A própria ditadura sempre negou e procurou esconder esta prática. No momento, porém, em que, já enfraquecida, decidiu ceder à pressão social pela anistia aos presos e exilados políticos, achou por bem incluir os torturadores entre os anistiados. Em outras palavras, a ditadura anistiou seus próprios criminosos. O regime militar prendeu, torturou, matou ou fez desaparecer seus adversários e quem escapou com vida foi julgado e, na maioria das vezes, condenado. Já os torturadores ficaram impunes: foram protegidos contra todo e qualquer processo por um decreto dos próprios ditadores. A eles não foi aplicada a justiça, continuaram como uma casta acima da lei.

A história dos 21 anos de supressão da liberdade, de censura e de imposição de políticas decididas unicamente por aqueles que tomaram o poder é desconhecida para a grande maioria dos brasileiros, que não viveram os “anos de chumbo”. Durante 29 anos deixamos de eleger diretamente o presidente da república; durante 14 anos, os partidos permitidos foram reduzidos a dois e, durante os 21 anos de duração, o regime cassou os parlamentares que estavam eventualmente “incomodando” o governo. O direito de vida e de morte dos presos ficou nas mãos de pessoas que se autoproclamaram os “donos da verdade”, os “donos da moral e dos bons costumes”, pelo simples fato de portarem armas (armas que lhes foram dadas pelos cidadãos, para sua proteção).

Tal como os nazistas trataram os judeus e os resistentes, os militares no poder trataram os adversários da ditadura, aqueles que lutavam pela volta da liberdade. Milhares foram presos, milhares foram torturados, centenas foram mortos ou desaparecidos, mas nenhum dos seus algozes foi julgado. Seus atos ficaram impunes, eles tinham todos os direitos frente ao conjunto da população, destituída de direitos.

É preciso continuar e aprofundar o trabalho da Comissão da Verdade para que a história venha à luz e se restabeleça a memória daquele trágico período em que um pequeno grupo armado (uma parte das Forças Armadas) se impôs ao conjunto da população e estendeu o manto da noite sobre todo um país.

Foto: Site Documentos Revelados

 

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