Em sintonia com o Sínodo: Por que não um novo pacto?

Por Jorge Alexandre Alves

Em 16 de Novembro de 1965, nos dias finais do Concílio Vaticano II, um grupo de 40 bispos se reuniu nas catacumbas de Domitila, nos subterrâneos da Cidade Eterna. Naquele espaço simbolicamente importante, relacionado aos primeiros cristãos que foram perseguidos até morte dentro do Império Romano, os padres conciliares firmaram um compromisso que mudaria suas vidas e a vida da Igreja, especialmente na América Latina e no Brasil. Proposto por homens da estatura de um Dom Hélder Câmara, o “Pacto das Catacumbas” foi assinado por figuras que marcaram época no episcopado brasileiro, como Dom Antônio Fragoso; ou por prelados que pagaram esse compromisso com o próprio sangue, como o argentino Enrique Angelleli, assassinado pela ditadura em seu país.

Assinar tamanho voto naquelas catacumbas significou, nas palavras de José Oscar Beozzo, evocar “o testemunho corajoso dos mártires das primeiras comunidades e selava, por parte daquelas quatro dezenas de bispos, o compromisso com uma Igreja servidora dos pobres e empenhada em suas lutas por justiça, dignidade, igualdade e solidariedade”. O texto-compromisso possuía 13 itens. Francisco, em seu estilo, parece que fez deste pacto programa de seu ministério episcopal e pontifício. Destacamos aqui alguns destes princípios, numerados conforme o texto original:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

A ideia de uma Igreja dos pobres (ou pobre para os pobres como disse Francisco) já era discutida durante o próprio Concílio. Essa era a ideia de João XXIII, foi defendida pelo Cardeal Lercaro (arcebispo de Bolonha) numa das sessões conciliares. Dom Hélder foi um dos principais articuladores dessa ideia. Infelizmente, a questão dos pobres ficou para segundo plano no Concílio.

Porém, as inspirações presentes naquela missa nos subterrâneos de Roma influenciaram profundamente a Igreja latino-americana. Isso foi decisivo para a atualização do Concílio em nosso continente. A conferência episcopal de Medelín, em 1968, e a Teologia da Libertação beberam generosamente das proposições assumidas pelos signatários do pacto das catacumbas. Hoje, esse documento certamente inspira o pontificado de Francisco.

Pouco mais de meio século depois, a sua atualidade impressiona. Seu cumprimento pelo colégio universal dos bispos teria levado a Igreja para outro patamar. Será que alguns bispos e cardeais da Igreja teriam a coragem de assumir tal compromisso?

Ao longo do tempo, outros bispos aqui no Brasil tomaram o Pacto das Catacumbas para si, fazendo dele a base do exercício de seus respectivos episcopados. Verdadeiros homens de Igreja, figuras que marcaram o catolicismo brasileiro, a começar por Hélder Câmara, passando por figuras de inegável estatura moral como José Maria Pires, Adriano Hypolito, Waldyr Calheiros, Paulo Evaristo Arns, Luciano Mendes de Almeida, Fernando Gomes, Angélico Bernardino, Tomás Balduino, Erwin Krautler e, sobretudo, Pedro Casaldáliga. Como seria diferente se hoje tivéssemos um episcopado brasileiro que, em seu conjunto, tivessem essas figuras como referência e o “pacto” farol de sua pastoral…

É sinal de esperança para a Igreja ter um papa tão identificado com esses princípios. Sua defesa intransigente dos mais pobres, seu projeto de Igreja, a forma como se relaciona com as pessoas e sua simplicidade fazem de Francisco um bispo (sim, o papa é, antes de mais nada, o Bispo de Roma) profundamente semelhante com os signatários do “Pacto das Catacumbas”. É fácil mirar em Bergoglio e se lembrar daqueles bispos tão corajosos.

Para que sejamos uma Igreja em saída, como propõe o Papa Francisco, é necessário que nossos pastores sejam, de fato, autênticos mestres da fé. Que eduquem o Povo de Deus pelo exemplo, pela profecia e pelo desprendimento. Uma Igreja servidora passa pela simplicidade no vestir-se e no trato por parte daqueles chamados ao episcopado.

Hoje, nesse verdadeiro kairós que vivemos por causa do Sínodo para a Amazônia, não há como deixar de se remeter ao “Pacto das Catacumbas”. A defesa do bioma, da floresta e das populações amazônicas convergem indiscutivelmente para uma Igreja dos pobres. Consequentemente, são necessários bispos tão corajosos quanto aqueles 40 prelados em 1965.

As causas ambientais, a questão climática, a defesa dos direitos dos povos originários são todas questões que apontam para a necessidade de uma Igreja pobre para os pobres. Por isso, os elementos de ostentação do poder clerical deveriam ser revistos. Hoje a Igreja precisa, mais do que nunca, de bispos servidores, desprovidos de ambições de dominação, e solidários aos apelos dos homens e mulheres de boa vontade deste mundo.

Tais apelos, verdadeiras inspirações do Espírito Santo, emergiram do instrumento de trabalho que antecedeu o Sínodo. Ratificar essas intuições em nome da fé, do Reino de Deus e do Evangelho deveria ser compromisso de todo padre sinodal. A questão dos “viri probati” (ordenação de homens casados), a presença da mulher na Igreja (por que não um diaconato feminino?) e os ministérios leigos são elementos urgentes para a vida eclesial. A Igreja não pode se omitir nessas temáticas em nome de uma falsa tradição que imobiliza e aprisiona a vontade divina.

Essas mudanças são fundamentais para que não se cale a voz profética daqueles que denunciam as ambições do capital e dos governantes. Estes, acólitos do deus Mercado, entendem a Amazônia como produto a ser comercializado, mesmo que isso represente a morte, a degradação e a destruição. A Igreja, sob pena de cair na hipocrisia, não pode pretender guardar o vinho novo do profetismo e da conversão eco ambiental nos velhos odres do clericalismo e das instituições tridentinas.

Seria muito significativo que os padres sinodais, abertos ao Espírito de Deus, nesse momento primaveril do Sínodo, resgatassem os princípios daquele compromisso firmado por quatro dezenas de prelados em 1965. Em nome de uma Igreja pobre e servidora, ouçam o apelo do Povo de Deus. Nesse momento propício de conversão pastoral, por que não, nas mesmas catacumbas de 54 anos atrás, um novo pacto?

Padres sinodais, o tempo urge, e é tempo para mudar! Nesse espírito franciscano e, certamente com o apoio do Bispo de Roma, não seria a hora de um Pacto pela Amazônia? Hoje, mais do que em outras épocas, ecologia integral, libertação dos oprimidos e uma Igreja pobre e em saída não podem estar dissociadas.

Vivemos um momento de tantas resistências, de tanto ódio, de tanta mentira no seio da Igreja. A melhor resposta dos padres sinodais seria uma releitura das inspirações e propostas pelo Concílio e por aqueles que os precederam na sucessão apostólica. Os senhores bispos, inspirados pelo que fizerem seus antecessores e nas mesmas catacumbas de Domitila, bem que poderiam firmar um novo pacto. Que o Espírito os ilumine.

Referência:

BEOZZO. José Oscar. Pacto das catacumbas: por uma igreja servidora e pobre. São Paulo: Paulinas, 2015.

*Jorge Alexandre Alves é Sociólogo e Professor do IFRJ. Possui mestrado em Educação pela UFRJ. Foi catequista do Crisma e da Pastoral da Juventude e hoje atua no Movimento Fé e Política.

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