Medellín: 50 anos depois

Por Edward Guimarães

Só podemos compreender bem a figura do papa Francisco tendo presente o significado da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, celebrada na cidade de Medellín, na Colômbia, de 24 de agosto a 6 de setembro de 1968.

Para o teólogo José Comblin, a Conferência de Medellín pode ser considerada a ata de nascimento da Igreja latino-americana, com seu rosto próprio, sua identidade, suas opções pastorais, suas comunidades de base, a leitura popular da Bíblia, a Teologia da Libertação, sua luta pela justiça e seus mártires.

O Observatório da Evangelização publicou esta síntese elaborada pelo prof. Edward Guimarães do livro 50 anos de Medellín. Revisitando textos, retomando o caminho organizado por Manoel Godoy e Francisco Aquino Junior, publicado por Edições Paulinas em 2017.

Segue a publicação:
Depoimentos e balanços significativos atestam que a consciência da relevância eclesial, social e política da Conferência de Medellín continua viva e crescente ao longo das últimas cinco décadas.
I – Medellín no calor da hora

Dom Helder deixou-nos um vívido relato daqueles dias, escritos no calor da hora, no qual, além de compartilhar, com inquietação, as controvérsias e incertezas que pairavam sobre os rumos da Conferência, traça seu balanço pessoal da Conferência. Captou imediatamente o sentido excepcional daquele evento: as Conclusões de Medellín terão para a América Latina sentido comparável ao dos documentos do Vaticano II para o mundo inteiro. Nas palavras de Dom Helder, por um lado, haviam ameaças:

O Santo Padre, em sua vinda a Bogotá (para o Congresso Eucarístico Internacional e a abertura oficial da 2ª Conferência), nas suas 20 e tantas alocuções, mais freou do que abriu… O documento de trabalho, preparado com extremo cuidado (houve um documento preliminar elaborado por técnicos de grande valor; este documento, enviado às Conferências Episcopais ligadas ao Celam, de todas recebeu pareceres e observações; uma Comissão de 80 Bispos e Peritos pôde, então, transformar o documento preliminar em Documento de Trabalho), estava sendo atacado, de público, por Episcopados inteiros: da Argentina, da Colômbia, da Venezuela… Dos três legados do Papa, os dois Cardeais eram sabidamente conservadores e extremamente prudentes; o Cardeal Samoré fez-se cercar de vários colaboradores, Bispos e Sacerdotes, que levavam às Varias Comissões sua palavra de… recomendação e advertência; Os primeiro avisos, as primeiras medidas deixavam entrever completo controle das Conferência pela CAL (Pontifícia Comissão para a América Latina). 

Mas, por outro, para Dom Helder, havia elementos que favoreciam:

  1. Avelar, no Discurso de abertura, apoiado pelos técnicos, teve a inspiração salvadora de dar uma interpretação inteiramente positiva das Alocuções do Papa (o que foi coragem: a seu lado, o cardeal Samoré não escondia a desaprovação e o descontentamento). Sem este Discurso, as Alocuções do Papa pesariam, negativamente, durante toda a Conferência; houve, é claro, distribuição estratégica de Bispos e Peritos pelos vários Grupos de Trabalho. O método de trabalho adotado pelo Celam foi perfeito e montado a nosso favor: duas palestras, de gente nossa, criando clima, mentalizando; sete palestras, praticamente todas de gente nossa (menos uma) comentando o documento de trabalho… Vieram as observações (os modos): foram examinados por Bispos e Peritos. Vieram as votações prévias, as votações definitivas. Repetiu-se o milagre do Concílio: temos grandes textos, que servirão de esplêndido ponto de apoio para tudo o que há de urgente e importante a empreender na América Latina. Tornou-se impossível, honestamente, chamar-me de subversivo e comunista, sem, ao mesmo tempo, taxar de subversivo e comunismo toda a Hierarquia Latino-americana… Entre os fatores positivos, guardei o maior, o Espírito Santo era quase tangível; os Anjos eram quase visíveis! Apelara tanto para a Rainha dos Anjos! Te Deum! Magnificat!

Para o teólogo José Comblin, a Conferência de Medellín pode ser considerada a ata de nascimento da Igreja latino-americana, com seu rosto próprio, sua identidade, suas opções pastorais, suas comunidades de base, a leitura popular da Bíblia, a Teologia da Libertação, sua luta pela justiça e seus mártires.

II – Balanço da recepção nas duas décadas seguintes

A preparação para a III Conferência do Episcopado Latino-americano, convocada para acontecer em Puebla, México, aos dez anos de Medellín, desatou um profundo processo de debate, rejeição e recepção de Medellín. Travou-se uma verdadeira batalha eclesial no sentido de manter viva a herança de Medellín e de suas intuições mais decisivas… Perfilavam-se os propósitos do novo Pontificado de João Paulo II (1979-2005), que apontavam para o que João Batista Libanio chamou de “a volta à grande disciplina” e a tentativa de enquadramento da Igreja Latino-americana (LIBANIO, João Batista. A volta à grande disciplina. São Paulo: Loyola, 1984)… Se Medellín significou o batismo da Igreja da América Latina, Puebla pode ser considerada a celebração da sua confirmação.

A minoria do Concílio acabou impondo-se no centro romano. Difundiu-se, a partir daí, como única legítima a interpretação que encontrou acabada, formulação às vésperas do Sínodo Extraordinário de 1985, aos vinte anos da clausura do Vaticano II, no livro de entrevistas do Cardeal Joseph Ratzinger ao jornalista Vittorio Messori, Rapporto sulla Fede (MESSORI, Vittorio. A fé em crise: O cardeal Ratzinger se interroga. São Paulo: EPU, 1985; BEOZZO, José Oscar (org.) Vaticano II e a Igreja Latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1985).

III – Nos 30 anos, uma enquete entre seus protagonistas

Por ocasião dos 30 anos de Medellín, num encontro realizado em Riobamba, no Equador, em agosto de 1998, e destinado a comemorar a vida e obra de Mons. Leonidas Proaño (1910-1988), foi feita uma pesquisa entre os cerca de setenta bispos e teológos participantes sobre o significado de Medellín e os elementos fortes que promoveu para a vida da Igreja da América Latina. Dentre o conteúdo recolhido, merece destaque:

IV – Aos 40 anos, a V Conferência de Aparecida. Sínodo ou conferência, evento episcopal ou eclesial?

Depois de Santo Domingo aconteceu o Sínodo da América, em 1997, que interrompeu a série das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano. Quando o CELAM solicitou uma nova Conferência para o início do novo milênio que permitisse a Igreja da América Latina e do Caribe refletir sobre as novas circunstâncias e propor o rumo de sua caminhada, a resposta do Cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado foi dura e direta: um Sínodo, sim; uma Conferência, não. Sínodo em Roma, sim; na América Latina, não, devido à saúde do Papa, que gostaria de participar.

O CELAM levou a questão diretamente ao papa João Paulo II, reafirmando o desejo de se realizar uma V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. O Papa solicitou uma consulta aos cardeais latino-americanos e as Conferências episcopais do continente. Resultado: 18 dos 30 cardeais e 21 das 22 Conferências episcopais manifestaram a opção pela Conferência e não pelo Sínodo. O Papa determinou, então, que se seguisse a tradição da Igreja latino-americana.

Esta tradição inaugurada com Medellín, que não tem outra similar na África, Ásia e Europa, forjou um modelo de exercício da colegialidade de caráter deliberativo, mais próximo de um Concílio Ecumênico do que de um Sínodo apenas consultivo.

Manter esta tradição é crucial para a América Latina, mas também para a Igreja universal, no sentido de que floresçam, em comunhão com a Sé romana, as igrejas locais, com sua pastoral, sua teologia, seu magistério e instrumentos próprios, cada vez mais enraizados e inculturados na realidade de cada região e do continente.

Com todos os atrasos e com a morte de João Paulo II, a V Conferência prevista para Quito, no Equador, e depois para Buenos Aires, na Argentina, veio, por decisão do novo papa, Bento XVI, para Aparecida, no Brasil.

A realização num santuário mariano de grande afluxo popular provocou alterações significativas: as celebrações durante o evento foram na grande Basílica e abertas ao povo. Essa nova situação provoca a reflexão sobre o caráter teológico de uma Conferência Episcopal: ser um evento não apenas episcopal, mas profundamente eclesial, ou seja, que a dinâmica de sua preparação, de seu desenrolar e de sua recepção interessam e envolvem a participação de todo o povo de Deus, e não apenas do corpo episcopal.

V – Povo de Deus, colegialidade, conciliaridade, ecumenicidade e Reino de Deus

A forma de compor a Assembleia de Aparecida explicita cinco verdades eclesiais de grande importância:

  1. Que o bispo é sempre bispo de uma porção do povo de Deus, de uma Igreja particular à qual está unido, em comunhão com os demais bispos e com o bispo de Roma, com os quais compartilha a solicitude de todas as Igrejas;
  2. Que em uma Conferência pode acontecer a forma rica e mais completa de colegialidade episcopal, a deliberativa, e não apenas a consultiva, como nos sínodos;
  3. Que em uma Conferência, pode brilhar de forma eminente a catolicidade e a conciliaridade da Igreja, guiada pelo Espírito Santo. Desde a Conferência do Rio de Janeiro, os presidentes das Conferências Episcopais de outros países são convidados a participar, bem como das Conferências Continentais. Em Aparecida, por exemplo, participaram os presidentes das Conferências Episcopais do Canadá, Estados Unidos, Espanha, Filipinas, Portugal e das Conferências Continentais da África, Ásia e Europa. Desde a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, a de Medellín, o Papa faz a abertura solene e confirma o evento com o selo do ministério de Pedro. O papa Paulo VI fez a abertura de Medellín; João Paulo II fez a de Puebla e a de Santo Domingo, e Bento XVI fez a de Aparecida. O local e o universal se dão as mãos num momento eclesial tão importante.
  4. Há apenas uma única Igreja de Cristo que subsiste, como diz o Vaticano II, na Igreja Católica, mas que está também nas outras igrejas da unidade. O ecumenismo é nota essencial da Igreja de Jesus Cristo e a busca da unidade, um mandamento solene do Senhor. Assembleias, Conferências, Sínodos e Concílios de uma Igreja cristã interessam de perto às demais igrejas cristãs, todas elas partes do mesmo e único corpo de Cristo. Por isso são sempre convidados observadores fraternos das outras igrejas cristãs.
  5. A Igreja não existe para si, mas para os outros e para a salvação e libertação do mundo, pois está destinada, em sua missão, a seguir os passos de Jesus, no anúncio e implantação do Reino de Deus. Anunciar e instaurar o Reino de Deus, reino de justiça e de paz, de fraternidade e de solidariedade foi o propósito de Jesus e deve ser o de sua Igreja, continuadora de sua obra.

Prof. Edward Guimarães – Secretário Executivo do Observatório da Evangelização.

Esta síntese foi publicada em oito de maio de 2018, no site Observatório da Evangelização através do link.  https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/2018/05/08/medellin-seu-contexto-em-1968-e-sua-relevancia-50-anos-depois/

https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/2018/05/10/medellin-seu-contexto-em-1968-e-sua-relevancia-50-anos-depois-ii/

O livro foi disponibilizado pelo site das Paulinas https://www.paulinas.org.br/pub/loja/livros_degustacao/531430.pdf

 

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