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O ego perdido nos celeiros

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Padre Adroaldo

“Atenção! Tomai cuidado com todo tipo de ganância” Lc 12,15)

No caminho para Jerusalém, por entre incidentes, encontros e palavras que aquecem a viagem, o evangelista Lucas aproveita dos diferentes episódios para nos revelar como Jesus vai formando seus (suas) discípulos(as) no verdadeiro seguimento. No domingo passado, aprendemos a orar com Jesus; no próximo do-mingo, seremos motivados a alimentar uma atitude de vigilância frente às responsabilidades que nos são confiadas; neste domingo, o evangelho ensina a nos preservar das falsas seguranças, que consistem em acumular bens materiais para si mesmo, em vez de compartilhá-los com os outros.

A questão que nos é colocada é a seguinte: queremos nos tornar ricos de celeiros ou de coração?

O relato tem duas partes: na primeira, Jesus se nega a ser árbitro em um conflito de herança; na segunda, Ele nos adverte do risco de centrar nossa vida em buscar segurança nos bens terrenos, distanciando-nos do verdadeiro sentido de nossa existência.

Expandir a verdadeira Vida não depende de ter mais ou menos, mas de ser.

Se o primeiro objetivo de todo ser humano é ativar ao máximo sua humanidade e o evangelho nos diz que ter mais não nos faz mais humanos, a conclusão é muito simples: a posse de bens de qualquer tipo, não pode ser o objetivo último de nenhum ser humano. A armadilha de nossa sociedade de consumo está nisso: quanto maior capacidade de satisfazer necessidades nós temos, maior número de novas necessida-des despertamos; com isso, não há possibilidade alguma de marcar um limite. Já os antigos santos padres diziam que o objetivo da vida não é aumentar as necessidades, mas fazer com que essas diminuam cada dia que passa. Esse seria o sentido inspirador da vida, ou seja, vida des-centrada, oblativa, aberta…

É muito difícil manter um equilíbrio nesta matéria. Não há nada de mal buscar nível melhor de vida. Deus nos dotou de inteligência para que sejamos previsores. Prever o futuro é uma das qualidades próprias do ser humano. Jesus não está criticando a previsão, nem o empenho por uma vida mais digna. Critica, sim, que façamos isso de uma maneira egoísta, afastando-nos de nossa verdadeira meta como seres humanos.

Alimentar necessidades é estar centrado em si mesmo, nutrindo o próprio “ego”.

A parábola deste domingo revela que a cobiça nos incapacita para viver uma vida mais humana. Cobiçar é desejar com ânsia aquilo que dá sensação de segurança ao nosso “ego”.

O rico da parábola não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade. Só vive para acumular, armazenar e aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em encher seus celeiros e dedicar-se à boa vida; não está no seu horizonte que os outros também precisam se alimentar. Só vive para alimentar seu instinto de posse: “meus celeiros”, “meu trigo”, “meus bens”. Não percebe que seu “ego” apodrece em meio aos vastos celeiros.

O homem insensato do evangelho vive para “inflar seu ego”. Contudo, o ego não é o seu verdadeiro “eu”, não é ele. É uma falsa imagem de si mesmo. É a ilusão de que ele é um indivíduo separado, independente, isolado e autônomo. Seja qual for a imagem que cada um tem de si, todos, efetivamente, fazem parte de um universo imenso, em que tudo é interdependente e tudo está intimamente ligado entre si. Todas as divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos nascem da ilusão de um “ego” que se sente  separado e independente dos outros e da natureza.

O “eu ensimesmado” tende a ser depredador e exigente; quer toda a realidade a seu serviço. Então, tudo fica desfocado, tudo se desvia, tudo se perverte, porque falta aquela atitude “reverente”, ou seja, viver na alteridade diante do Deus da Vida, das suas criaturas e diante dos outros…

O “ego inflado” se transforma em centro autônomo: fundamento, farol e vigia de toda a realidade. Com isso, o ser humano perde a dimensão de ser criatura. A “dependência” para com o Criador é sentida como ameaça à capacidade de decisão sobre a própria vida.

O ego não tem consistência própria: é uma construção mental e uma identidade transitória e, portanto, parasitária. Para subsistir – para ter uma sensação de existir -, necessita aferrar-se a qualquer “objeto” que o alimente: tudo o que seja ter, poder ou aparentar. Vive para ter e acumular, para conseguir poder e impor-se, para figurar e destacar.

Em tudo isso acredita encontrar segurança, estabilidade e, em definitiva, consistência.

Quando nos sentimos genuinamente movidos por sentimentos de compaixão para com as pessoas neces-sitadas, quando ativamos o espírito solidário, quando compartilhamos agradecidamente tudo o que somos e temos, então é o nosso “verdadeiro eu” que está se manifestando. Quando reconhecemos um momen-

to de honestidade e sinceridade no nosso desejo de conhecer a verdade acerca de nós mesmos ou do sentido de nossa vida, esse é o nosso verdadeiro eu. Nos momentos em que agimos com uma coragem e valentia inexplicáveis e fora do normal, isso também brota de um impulso que provém das profundezas do nosso próprio ser.

Quando começamos a sentir uma grande gratidão pelos inúmeros dons que a vida nos oferece, podemos ter a certeza de que isso não provém do nosso ego. O ego é completamente incapaz de sentir gratidão. Sentir uma gratidão imensa por todos os dons e graças que recebemos é um sentimento que brota do mais profundo do nosso coração.

Se, alguma vez, já experimentamos a alegria tranqüila de deixar de lado nosso ego, fazendo alguma coisa pelos outros, sem receber qualquer recompensa ou agradecimento, e sem que ninguém o saiba, então en-tramos em contato com o nosso “eu mais original e divino”. E quando nos sentimos invadidos por uma onda de assombro e deslumbramento, quer dizer que estamos deixando o nosso verdadeiro eu se expandir.

No centro da mensagem de Jesus encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igual-dade e da fraternidade de todos os seres humanos. A criação de uma comunidade onde o compartilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.

Contra a tendência de querer apropriar-nos de tudo como busca de segurança e como defesa hostil diante dos outros, Jesus nos convida a viver a partilha, como abertura aos outros e como possibilidade para a criação da “nova comunidade”, que se constitui como alternativa frente às relações interpessoais funda-das na acumulação e no consumismo.

Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevo-lente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância.

Dito positivamente: trata-se de um convite a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.

A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, a do favorecimento da vida, a do descentramento de si mesmo em favor do serviço ao outro, o das obras em favor dos mais pobres e desfavorecidos. Isso é “ser rico para Deus”.

Texto bíblicoLc 12,13-21

Na oração: Não permaneça na superficialidade do teu ego; desça mais ao fundo de ti mesmo e descobrirás a harmonia. Teu verdadeiro ser é paz, é mansidão, é bondade. Vai mais além de teu falso ser!

Empenha-te em deslanchar teu verdadeiro ser: mais oblativo e solidário.

Dentro de ti está a plenitude, está a felicidade no viver descentrado. Descubra-a!

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