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O RICO E LÁZARO: sobre escolhas e suas consequências
Revda. Dra. Lilian Conceição da Silva

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Convido-nos a revisitarmos o texto bíblico do Evangelho segundo Lucas 16:19-31. Por amor, leia a versão que você tiver em sua casa. Sei que todas nós já ouvimos e/ou lemos este texto uma ou mais vezes. Mas a releitura é fundamental para que dialoguemos hoje sobre o que podemos aprender para nos fortalecer nestes dias de pandemia.

Do versículo 19 ao versículo 24, a narrativa de Jesus sobre duas personagens: um homem rico sem nome e um homem pobre cujo nome significa “Deus ajuda”. Com destaque às condições opostas da vida de cada qual.

Nos versículos 25 e 26, Abraão ressalta sobre o abismo existente entre os dois, situando-se do mesmo lado que Lázaro.

Os versículos 27 a 31, segue-se o diálogo de apelo do homem rico e a afirmação de Abraão que à essa altura não mais há o que fazer.

Faço eco à teóloga Kátia Rejane Sassi, em seu comentário sobre este mesmo texto (https://cebi.org.br/noticias/o-rico-e-o-pobre-lazaro-lucas-1619-31-katia-rejane-sassi/), afirmando que, como ela, não é propósito do texto nos apresentar uma “geografia do céu e do inferno”. Afirmo que enxergo no texto uma oportunidade de ampliar nossa enxergância aqui e agora, neste mundo, como pessoas encarnadas, chamadas por RUAH para colocarmos em prática os ensinamentos de Jesus Cristo.

O capítulo 16 do Evangelho segundo Lucas inicia e termina com parábolas (comparações) que oportunizam ensinamentos para o dia a dia. Vejamos:

Lucas 16:1-13, apresenta a parábola do administrador desonesto ou infiel. Destaco o versículo 13, para chamar nossa atenção para dois lados distintos:

ÓDIO X AMOR                                                                                                     DINHEIRO X DEUS

Antes da parábola final, Lucas 16: 14-17, apresenta quem eram os outros, além dos discípulos, que ouviam tudo o que Jesus dizia: os fariseus. Entretanto, estes, os fariseus (amigos do dinheiro, avarentos – versículo 14) ouviam com desdém (ridicularizando, zombando – versículo 14).

Estas informações destacadas acima nos ajudam a melhor compreendermos a comparação apresentada no texto sobre o rico e Lázaro.

Os dois lados, opostos entre si, estão separados por um ABISMO intransponível. Quem está de um lado, não pode sequer visitar o outro lado.

AMOR AO DINHEIRO/ ÓDIO  

ABISMO

 

DEUS/AMOR

 

Uma interpretação possível desta parábola do rico e Lázaro desvela muito das escolhas que estão em jogo hoje em dia. O sistema capitalista vigente põe de um lado o amor ao dinheiro, que destila ódio por quem opta priorizar a vida (o outro lado). O que está em jogo é QUE LADO ESCOLHER?

Permitam-me um breve testemunho: conheci bem o que é odiar e nunca senti algo mais terrível do que isto. Lembro-me bem. No dia 11 de setembro de 2001 eu estava em Porto Alegre, no escritório da Província da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), onde eu trabalhava no departamento de missão. Chegou-me a notícia de que as torres gêmeas foram atingidas por ataques terroristas. No meu íntimo, vibrei. Alegrei-me porque a arrogância e a empáfia do estado norteamericano foi atingida visceralmente. Até que alguém ligou uma pequena televisão e assistimos estarrecidas pessoas se jogando janelas abaixo, desesperadas diante do cenário que as cercavam. Quando vi aquelas cenas, senti um remorso doído que me atravessou a alma e de pronto pedi perdão a Deus por ter me deixado contaminar pelo mesmo ódio que sempre critiquei nos opressores norteamericanos que exploravam (e exploram) países considerados, na ocasião, terceiro mundo; em detrimento do lucro. Pois para o sistema capitalista o que importa é o lucro, sem levar em conta que vidas têm sido precarizadas e mortas em nome do enriquecimento de alguns poucos donos das maiores concentrações de riquezas no mundo.

Provocada pela querida teóloga Ivone Gebara, percebo o quanto este episódio desvela de como o abismo entre os dois lados não se contenta com o simples dualismo entre o bem e o mal, mas explicita o quanto cada qual de nós é canal e que nossas escolhas implicam consequências.

Hoje, as decisões políticas de chefes de estados que têm pesado como mais relevantes o não atingimento do que é mais caro ao capitalismo, o dinheiro, desvela a mais cruel face deste sistema opressor: a morte criminosa, oposição mais radical à vida ofertada por Deus.

A parábola do rico e Lázaro nos convida a repensarmos nossas escolhas, e a buscarmos resgatar o valor mais caro e mais importante para a continuidade da humanidade: a vida.

A escolha é de cada qual de nós. No entanto, importa muito sabermos que a escolha individual terá consequências coletivas. Pois não há um só indivíduo que não seja corresponsável pela existência comunitária. Estamos interligados, mesmo que não queiramos admitir. O contágio do vírus, em escala nunca vista antes, desafia à ciência e afirma a nossa correlacionalidade. Estamos ligados e ligadas por uma teia invisível. Se queremos viver, a vida de cada pessoa deve importar igualmente, independente do quanto ela tenha acumulado em dinheiro.

Voltemo-nos às sabedorias ancestrais dos povos originários, solapadas pelo sistema capitalista. Mesmo cumulados séculos de exploração, genocídio e tentativas constantes de extermínios, os povos originários insistem em existir, resistindo a partir de suas compreensões sobre o Bem Viver e o Ubuntu: Filosofias de vida que consistem em dedicar esforços e ações voltadas ao comunitarismo, por compreenderem que cada pessoa só é se todas as pessoas forem conjuntamente.  Não há vida mais importante que outra vida. Só há vida, se coexistirmos.

Não se trata de uma escolha para o pós morte, mas uma escolha para já, aqui e agora. Nesta vida como encarnadas e encarnados que somos. Mas para quem tem fé e acredita que nossas escolhas aqui terão consequências no pós morte, cumpre pensar e repensar muito antes de decidir e afirmar de qual lado quer ficar.

Ressalto ainda que a pandemia nada tem a ver com a vontade de Deus, como um castigo para a humanidade. Deus não é vingativo. O que acima escrevi me fortalece a compreensão de que esta pandemia, assim como muitos outros males que nos afligem, são consequências das escolhas feitas. E toda escolha traz consigo consequência.

Que aproveitemos a oportunidade que a pandemia nos impõe, de sermos pessoas melhores para nós mesmas e para as outras.

Amém! Amemo-nos!

Santo Antônio da Patrulha, 29 de março de 2020, 5º Domingo da Quaresma.

Revda. Dra. Lilian Conceição da Silva

Foto de capa: CEBI

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