No final do ano de 2020, em contexto de terra arrasada pela superexploração do sistema capitalista – máquina de moer vidas -, com nosso país desgovernado pelo antro de fascistas elevados ao poder por fake news, antipetismo, aversão a partidos políticos e pela ingerência funesta de (neo)pentecostais da igreja católica e de muitas outras igrejas na política brasileira, com ideologia da prosperidade, redução da dimensão religiosa a autoajuda e difusão de preconceitos, discriminações, fundamentalismos e moralismos que se tornam pessoas religiosas cúmplices de um governo genocida e de uma espiral de violência social estimulada por homofobia, racismo estrutural e antifeminismo, faz bem fazermos um pouco de retrospectiva sobre a luta pela terra em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, sabedor de que sem a partilha e a democratização do acesso à terra no Brasil, não conquistaremos a superação das gravíssimas injustiças e desigualdades que continuam se reproduzindo cotidianamente no país.
No município de Salto da Divisa, temos uma das maiores concentrações fundiárias do mundo, senão a maior. Em tese de doutorado de 2017, na UFMG, constatamos que apenas duas famílias – Cunha Peixoto e Pimenta – estima-se que sejam proprietárias de 97,5% do território do município de Salto da Divisa, com a maior parte de terras devolutas griladas e/ou propriedades improdutivas que não cumprem a função social. Com muita luta, suor e enfrentando muita perseguição e ameaças de morte, os camponeses Sem Terra de Salto da Divisa, com o acompanhamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com o apoio de uma significativa Rede de Apoio, já conquistaram dois Assentamentos: P.A Dom Luciano Mendes, com 25 famílias assentadas, e P.A Irmã Geraldinha, com 50 famílias assentadas, e uma Comunidade Quilombola, a de Braço Forte, que segue firme na luta pelo resgate de seu território, com dezenas de famílias quilombolas.
As petições encaminhadas pelo fazendeiro José Alziton da Cunha Peixoto, ex-presidente da Fundação Tinô da Cunha Peixoto, de Salto da Divisa, ao juiz da Comarca de Jacinto, responsável também por Salto da Divisa, revelam a ira dos latifundiários contra as freiras, freis e padres que defendem a luta pela terra. “Esses simpatizantes, aliados e defensores da ditadura do proletariado, transvestidos de grupos religiosos ou de pretensos defensores dos direitos do cidadão ou de defesa do meio ambiente, infelizmente têm influenciado o digno promotor”, afirma uma das petições. Em outro documento, a ideologização e o preconceito se exacerbam ao afirmar: “Alicerçados na Teologia da Libertação e amparados pelas Comunidades Eclesiais de Base, estes segmentos pífios, embora barulhentos da Igreja Católica – desprezados e condenados pelo Papa Bento XVI e a maioria do clero contemporâneo, considerados os responsáveis pelo êxodo dos fiéis – têm de forma irresponsável, sob o discurso da proteção aos excluídos, causado cizânia em diversas regiões do país. No caso em pauta, trabalharam decisivamente para a invasão das terras da Fundação” (Trecho de documento anexo a uma petição que o fazendeiro José Alziton protocolizou no processo de reintegração de posse na Comarca de Jacinto, MG).
A subserviência da polícia militar aos fazendeiros da região era – e ainda é em muitos municípios – algo execrável em Salto da Divisa. Exemplo disso, antes de ser destituído por má administração da presidência da Fundação Tinô da Cunha Peixoto, José Alziton levou policiais militares para sequestrar os animais dos posseiros da Fazenda Monte Cristo. “Pegaram os animais sem a nossa ordem e levaram. Trouxeram soldados para nos intimidar”, conta um dos posseiros que teve os animais roubados na presença da Polícia Militar (Cf. RODRIGUES, 2010, p. 25-29).[1] Enquanto fazia minha pesquisa de doutorado e ouvia os depoimentos sobre a ação dos latifundiários e seus sequazes no município de Salto da Divisa, impossível não vir à mente a obra que se tornou clássica sobre a política brasileira: Coronelismo, Enxada e Voto, de Víctor Nunes Leal, 1ª edição de 1949. Nela, Nunes Leal desvela a trama que faz latifundiários terem poder político e privado, habilitando-os por meio da propriedade da terra a se tornarem donos dos votos do povo camponês – voto de cabresto -, o que acontece no que se chama de coronelismo, que é prepotência do senhoriato rural.
No Brasil, estruturalmente injusto desde a invasão pelos brancos portugueses em 1500, com a ampliação dos direitos políticos, em contexto de uma arcaica estrutura fundiária e social, os latifundiários passaram a ter um massacrante poder econômico e político. A propriedade da terra constitui o fundamento que sustenta o coronelismo. Proprietário de terras e dono de votos, eis a essência do coronel. “O prestígio próprio dos coronéis, grandes proprietários de terras, e o prestígio de empréstimo que o poder público lhes concede são mutuamente dependentes e funcionam ao mesmo tempo como determinantes e determinados. Sem a liderança do coronel – firmada na arcaica e iníqua estrutura agrária do país -, o governo não se sentiria obrigado a um tratamento de reciprocidade e, sem essa reciprocidade, a liderança do coronel ficaria sensivelmente diminuída” (NUNES LEAL, 1976, p. 43).
A época áurea do coronelismo se deu na I República ou República Velha: do início da República, em 1889, até 1930, quando ocorreu a chamada Revolução de 1930. Mas o coronelismo persiste até hoje no interior, nos municípios com pequena população – Salto da Divisa é um exemplo disso – e também onde há ainda uma fortíssima presença das oligarquias agrárias. Adverte Víctor Nunes Leal: “Parece evidente que a decomposição do coronelismo só será completa quando se tiver operado uma alteração fundamental em nossa estrutura agrária” (NUNES LEAL, 1976, p. 257). Essa “alteração fundamental” só será feita com a implementação de uma Reforma Agrária Popular, o que só se viabilizará com luta pela terra que realmente seja mola propulsora para processos de emancipação humana da classe camponesa.
Enfim, a estrutura cada vez mais latifundiária sustenta a reprodução de coronéis no Brasil, muitas vezes travestido de ‘produtores’ que, na realidade, são agronegociantes que não produzem alimentos, mas apenas commodities para exportação e acumulação de capital. Além dos coronéis no campo, está também encastelado no desgoverno federal mais de 6 mil militares, entre os quais muitos generais e coronéis. A latifundiarização do país e a consequente falta de reforma agrária têm, nas últimas cinco décadas, expulsado do campo para as periferias das grandes cidades milhões de brasileiros. Nas favelas, novas senzalas e também novos quilombos, os corpos da juventude negra continuam sendo transpassados por tiros do braço armado do Estado e pelo narcotráfico que usa e abusa de crianças, adolescentes e jovens, e logo depois os assassinam na cega corrida pela acumulação de capital usando a droga como isca. Mais de 700 mil jovens negros e da periferia já foram encarcerados nos presídios brasileiros que são outros navios negreiros, outros campos de concentração. O racismo estrutural e a estrutura fundiária pautada no latifúndio seguem imolando no altar do ídolo capital milhões de corpos de jovens violentados na sua dignidade desde o ventre materno.
Entretanto, os coronéis, sejam do campo ou das casernas, ora desgovernando nosso país, matando o povo de mil formas – necropolítica -, envenenando a mãe terra, a irmã água, o ar e os alimentos com mais de 500 tipos de agrotóxicos, parecem invencíveis, mas são vencíveis, porque estão recheados de contradições e mentiras, têm pés de barro e serão derrubados dos seus tronos, e isso não tardará. Prefiro acreditar na força infinita dos pobres e injustiçados, que na luta coletiva e popular, como Maria, a mãe de Jesus, bradam a utopia revolucionária: “Os poderosos serão derrubados de seus tronos, e os humildes, elevados! Os famintos serão saciados, e os enriquecidos, despedidos de mãos vazias!” (Evangelho de Lucas 1,52-53).
29/12/2020.
Por Gilvander Moreira[1]
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – Comunidade Quilombola Braço Forte, em Retomada/Salto da Divisa, MG/A luta pela terra/09/6/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=G19WGcI6fVs
2 – Clamor por terra: Sem Terra João Augusto – Acampamento Dom Luciano/Salto da Divisa, MG – 04/03/2012
https://www.youtube.com/watch?v=l9P7o9KxUa8
3 – Famílias do Acampamento Dom Luciano na posse da Fazenda Monte Cristo, em Salto da Divisa. 22 10 14
https://www.youtube.com/watch?v=nY2mlrDqCXc
[1] Cf. Reportagem de RODRIGUES, Lúcia. Irmã Geraldinha, mais uma freira na mira do latifúndio: Marcada para morrer. In: Revista Caros Amigos, n. 154, janeiro de 2010, p. 25-29.