Se eu tenho fome, o
problema é meu.
Se meu irmão, minha irmã tem fome,
o problema é nosso.
Dom Helder Câmara
A campanha da Fraternidade 2023, nos convida a rezar, refletir e agir para a superação da fome e de suas causas em nosso País. Tarefa que nos mobiliza para a partilha solidária e a profecia oferecendo socorro aos que não tem o pão e denunciando as causas estruturais desta vergonhosa realidade que atinge milhares de pessoas no Brasil e no mundo.
A fome é uma das expressões da desigualdade que historicamente caracteriza a sociedade brasileira. Mesmo produzindo alimentos em quantidade suficiente para alimentar toda a população, a reprodução da pobreza impede que milhões de pessoas tenham acesso à alimentação saudável. Nos últimos anos, esse problema tem se agravado trazendo consequências terríveis para a saúde de uma parcela expressiva da população brasileira.
A principal causa do flagelo da fome em nosso país são, sem dúvida, as abissais desigualdades sociais ocasionadas pela injusta distribuição de renda e oportunidades, que acirradas pela pandemia da COVID 19 e o desmonte das políticas públicas que nos últimos anos fez com nossa pátria se reinserisse no mapa da fome. Convivemos com 33 milhões de pessoas passando fome e em torno de 58% das famílias brasileiras em situação de insegurança alimentar, o equivalente a mais de 15% da população nacional. Uma realidade que deve nos inquietar, indignar e mover desde as entranhas para ações de compaixão e práticas Evangélico-Políticas de transformação, anunciando que a alimentação é um direito humano básico para todos e todas e que a fome é um escândalo social, fruto de uma sociedade injusta, excludente e desumana.
Neste cenário injusto e desumano, chamo a atenção nesta coluna para um aspecto relevante, o fato de que a fome tem um recorte de gênero muito bem delineado. Majoritariamente a fome no Brasil, tem rosto de mulher pobre, negra e periférica. Dados do IBGE e outras pesquisas realizadas no pós-pandemia, têm demonstrado que a ‘feminização da pobreza’, termo cunhado em fins dos anos 70, para apontar para uma presença maior de mulheres entre os pobres, é um fator determinante no aumento do drama da fome e insegurança alimentar no país, 47% dos rostos e corpos maltratados pela fome no Brasil são mulheres, em sua maioria mães pretas e solos, desempregadas ou subempregadas. As casas chefiadas por mulheres somam mais de 50% das famílias brasileiras que estão abaixo da linha da pobreza.
No tocante ao trabalho, 54,6%, de mulheres jovens com crianças de até três anos estão desempregadas, e a taxa de desocupação das mulheres em geral é 67,2%. E as que têm emprego formal, muitas ganham 70% do salário dos homens no geral. E são também maioria nos empregos informais. Dados reveladores das históricas desigualdades de gênero, sustentadas pelo capitalismo patriarcal que segue reinante nas estruturas econômicas e políticas de nossos dias, evidenciando a “feminização da fome”. Fator que coloca as mulheres e seus filhos e filhas numa espiral de privações, desigualdades e vulnerabilidades múltiplas. Dentre elas, as redes de exploração, violências e exclusões. Na maioria dos casos, as mulheres vítimas de violência doméstica são dependentes econômica e financeiramente de seus agressores, desassistidas pelo Estado e em situação de vulnerabilidade, seja pela fome, seja pela violência física, psicológica e/ou sexual. Desta forma a fome configura hoje um fator causa-efeito para o trabalho infantil, a exploração sexual de crianças, adolescentes e mulheres, o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e tantas outras formas de vulnerabilidades.
Frente a isso, não se pode tratar o problema da fome de forma geral e contentar-se em “dar pão a quem tem fome”, de forma assistencial e caritativa, isso é necessário, mas não suficiente. Como tem sido amplamente afirmado pelos movimentos sociais, sobretudo pelas feministas, a superação da desigualdade de gênero desempenha um papel fundamental para libertar o mundo da fome e da má nutrição. A feminização da fome, não atinge só a vida e os corpos das mulheres, mas sim todo um contingente geracional que delas dependem e é condição para o desenvolvimento saldável e toda a humanidade.
Desta forma, o retorno das políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades de gênero, os programas de transferência de renda para as mulheres, a equiparação salarial entre homens e mulheres, o investimento na educação, profissionalização e o empoderamento das mulheres e meninas, são, sem dúvida, essenciais para a superação da feminização da pobreza e da fome.
A grande maioria de nossas comunidades são compostas por mulheres que compõem este universo de dor e luta pela superação da fome. Aproveitemos, pois, a Campanha da Fraternidade que nos coloca o tema/realidade da fome, como apelo à vivência do amor solidário, e ultrapassemos o genérico, o obvio, coloquemos na pauta de nossas reflexões, orações e ações este relevante aspecto, que não é um detalhe, mas algo estruturante na manutenção do mapa da fome em nosso país.
Não haverá ‘sociedade do bem viver’, não haverá ‘pão nosso de cada dia’, nem ‘pão em todas as mesas’ se não houver um empenho pessoal e coletivo na superação das desigualdades socioeconômicas de classe, gênero e raça. Portanto, não esqueçamos, as mulheres precisam ser contadas e incluídas tanto nos números da fome, como nas iniciativas de superação da mesma. Como afirma o texto base da CF/2023, tudo começa com o ato de ver, de levantar os olhos, ver e trazer para o centro a pessoa que sofre, eis o apelo, procuremos ver e enfrentar a realidade nesta perspectiva, trazendo a realidade das mulheres, seus gritos, suas lutas para o centro dos debates e compromissos de nossas Comunidades Eclesiais de Base demais espaços de nossas igrejas.