“O Papa quer colocar o Sínodo numa posição chave no governo da Igreja”, entrevista com o Padre José Oscar Beozzo

Por Luis Miguel Modino


O Concílio Vaticano II, mesmo depois de mais de cinquenta anos desde seu encerramento, ainda precisa avançar em alguns pontos que não tem sido aplicados na vida da Igreja. Um dos grandes estudiosos do Concílio e de suas conclusões é o Padre José Oscar Beozzo, que em sua longa trajetória teológica tem aprofundado os ensinamentos recolhidos na última grande assembleia da Igreja universal.

A Igreja se prepara para mais uma assembleia, o Sínodo para a Amazônia, bem menor é claro do que o Concílio, mas que na linha do Vaticano II pretende buscar novos caminhos, que fazem referência não só àquilo que está ao interior da Igreja, mas também à questão da ecologia integral, uma preocupação cada dia mais presente na sociedade. O Padre Beozzo define o Sínodo como um grande teste nesse campo.

Na entrevista ele faz uma leitura histórica das últimas décadas da Igreja, tentando mostrar elementos que possam ajudar a entender alguns dos aspectos que aparecem no processo sinodal, numa tentativa de abrir perspectivas de cara ao futuro da missão da Igreja na Pan-Amazônia e dos povos que a habitam, especialmente os povos originários, guardiões ancestrais da Mãe Terra, da Casa Comum.

Recentemente o Papa Francisco falou que o Sínodo para a Amazônia é filho da Laudato Si’, a gente poderia dizer que o Sínodo para a Amazônia também é filho do Vaticano II?

Todos os sínodos nascem com a decisão de Paulo VI na última sessão do concilio (1965), de instituir essa instância colegial no vértice da Igreja, uma novidade depois de mais de mil anos, em que o governo geral da Igreja fora se concentrando nas mãos dos Papas.

O Sínodo foi pensado como um senado, um conselho, formado não apenas pelo colégio dos cardeais. Depois de aprovada a colegialidade episcopal no capítulo 23 da Lumen Gentium, pensou-se em associar todo o colégio episcopal toda à caminhada pastoral da Igreja e à discussão dos temas mais importantes para sua vida, a começar pelos presidentes das conferências episcopais. Também cada Igreja local devia eleger representantes segundo uma proporção: 1 bispo para as conferências que contavam entre 01 e 25 membros; dois para as que tivessem entre 26 e 50; 03, entre 51 e 100 e 04, para além de 100.  No caso do Brasil são quatro os bispos eleitos para cada sínodo, o que configura uma nítida sub-representação para um episcopado que conta com mais de 300 membros ativos. Na regra de três para os primeiros cem, o Brasil deveria eleger pelo menos outros seis para os 200 seguintes, o que daria 9 e não apenas 4 representantes para o Brasil.

No Vaticano II, os padres conciliares haviam pedido que o Sínodo fosse uma espécie de Senado permanente, um elo de contato com todas as Igrejas locais, investido da responsabilidade de zelar, junto com o Papa pelo conjunto da Igreja. O sínodo, entretanto, não nasce como um organismo permanente, pois a Assembleia se dissolve após cada convocação. Por outro lado, não é um organismo da cúria romana, mas sim uma instância do colégio episcopal. Ele é convocado a cada vez. Também não é uma assembleia deliberativa como os concílios, mas sim um organismo consultivo. Pode tornar-se deliberativo, se o Papa assim o decidir. Então aquele sonho de conselho permanente e deliberativo, isso não se concretizou até hoje. Só que há uma mudança com o Papa Francisco. Ele propõe uma nova configuração para o Sínodo e recupera em muito a intuição inicial de que o colégio episcopal é chamado a assumir a “sollicitudo omnium ecclesiarum”, o cuidado com todas as Igrejas, junto com o bispo de Roma. Com a Constituição Apostólica Episcopalis Communio de 15-09-2018, que substitui o Motu Proprio Apostolica Sollicitudo de Paulo VI de 15-09-1965 e o Ordo de Bento XVI de 2006, o Papa Francisco eleva a instituição sinodal a um novo patamar. Esta passa a ser regida por uma Constituição Apostólica, o documento mais solene e empenhativo que o Papa pode promulgar. Assim se expressa o Papa Francisco no preâmbulo da Constituição:

A Comunhão Episcopal, com Pedro e sob Pedro, manifesta-se de maneira peculiar no Sínodo dos Bispos, o qual, instituído por Paulo VI em 15 de setembro de 1965, constitui um dos legados mais preciosos do Concílio Vaticano II.[1]Desde então o Sínodo, novo quanto à instituição mas muito antigo na sua inspiração, presta uma eficaz colaboração ao Romano Pontífice – segundo as modalidades por ele mesmo estabelecidas – nas questões de maior importância, isto é, naquelas que requerem especial erudição e prudência, para o bem de toda a Igreja. Deste modo, o Sínodo dos Bispos, «agindo em nome de todo o Episcopado católico, mostra ao mesmo tempo que todos os Bispos em comunhão hierárquica participam da solicitude por toda a Igreja”.

Mesmo nos concílios, as constituições são os documentos chave, fundamentais. Então, o sínodo, passa a ser regido por uma constituição apostólica. O Papa quer colocar o Sínodo numa posição chave no governo da Igreja.

O Vaticano II foi uma tentativa de abrir a Igreja à realidade do mundo, de escutar os sinais dos tempos uma tentativa de falar para o mundo todo. O Sínodo para a Amazônia aborda o tema da ecologia integral, que uma realidade que atinge a todas as pessoas, independentemente da sua crença, da sua condição. Como o Sínodo para a Amazônia pode repercutir na vida da sociedade, na realidade mundial hoje?

Houve dois momentos nos últimos sessenta anos em que a Igreja colocou um tema fundamental para a vida do mundo todo. O primeiro foi a Encíclica Pacem in Terris, após a crise dos mísseis em Cuba, em outubro de 1962. Frente à crise que levou o mundo à beira de um confronto nuclear entre os Estados Unidos e  a União Soviética, o Papa São João XXIII conclamou Kennedy e Kruschev a se entenderem. Face às novas circunstâncias e à gravidade dos riscos, pela primeira vez, o Papa aprofunda a doutrina tradicional da Igreja em relação à assim chamada guerra justa. Ele diz literalmente que diante das armas modernas, químicas, biológicas e nucleares, nenhuma guerra é justa. Sempre houve na doutrina tradicional correntes teológicas que consideravam justa a guerra defensiva. João XXIII enfatiza que a Paz com justiça é o bem maior da humanidade e que nenhuma guerra pode ser considerada justa diante do desastre, da hecatombe que ela certamente produzirá com as novas armas de destruição de massa. A encíclica Pacem in Terris de abril de 1963, dois meses antes da morte do Papa, foi acolhida com gratidão no mundo todo. É o primeiro documento na história da Igreja que não é dirigido apenas às pessoas da Igreja católica. Todos os documentos eram endereçados aos cardeais, aos arcebispos, bispos, religiosos e aos fiéis. Essa Encíclica é dirigida a todos os homens de boa vontade, a gente diria hoje, aos homens e mulheres de boa vontade.

A Laudato Si’, sobre o cuidado com a Casa comum, é o segundo documento da Igreja que eu diria tem um impacto tão amplo e profundo quanto a Pacem in Terris, porque de novo trata de uma crise de sobrevivência da própria humanidade, ameaçada pelo aquecimento global e um desastre socioambiental que põe em risco o sistema vida. O Sínodo da Amazônia, eu acho que é um grande teste para se saber o quanto a Igreja, nessa área tão sensível, como é a Amazônia, em relação ao clima mundial, questões da água, da preservação ambiental, do respeito aos povos que vivem outras formas de vida, vai ser capaz de realmente de assumir no seu dia a dia, na sua realidade as grandes propostas da Laudato Si’.

A Laudato Si’ é um documento que repercutiu na vida da sociedade, às vezes até despertou mais interesse do que dentro de alguns ambientes da própria Igreja. Depois de quatro anos de publicação da Laudato Si’, como a gente percebe que isso está tomando corpo, está se introduzindo dentro da sociedade, dentro da vida da Igreja?

Eu penso assim, a Laudato Si’, como ela tem esse destino amplo, acolhe e leva em conta toda pesquisa sobre do aquecimento global, a reflexão dos cientistas; cita diretamente aquele painel do Clima da ONU, evoca a Carta da Terra e a Eco 92 no Rio de Janeiro, acolhe inteiramente as conclusões do cientistas e as toma como ponto de partida, Laudato Si’ vai de encontro à angústia e também aos anseios da humanidade. Na Encíclica, Francisco recolhe a prática da Igreja no mundo inteiro, e isso é muito importante. Acolhe e incorpora a reflexão nas Igrejas locais sobre sua caminhada em relação à crise ambiental. Há um belo documento das Filipinas, tendo por título: “What have you done to our beautiful country?”, “O que vocês fizeram com o nosso lindo país?”, por causa da poluição do ar e das águas, a destruição das matas, a contaminação dos rios e oceanos. Acolhe igualmente documentos da Igreja do Brasil, como A Igreja e a questão ecológica de 1992, assim como documentos da Igreja da França, da Alemanha, do Japão, do Paraguai, do Chile, da Argentina, da Bolívia, dos povos originários do México, da Federação das Conferências episcopais da Ásia, dos Estados Unidos, Canadá, Portugal, Nova Zelândia, África do Sul. A Encíclica acolhe a caminhada dos Igrejas locais nessa questão e não apenas o magistério pontifício de seus antecessores.

Mas depois, traz um belo respiro na questão espiritual, que vai buscar inspiração na tradição das outras Igrejas e religiões. Logo no começo, os números oito e nove da Laudato Si’, são textos de Bartolomeu, o patriarca ecumênico de Constantinopla,  um dos grandes defensores da questão do compromisso das Igrejas com a questão ecológica. Recolhe ainda documentos do Conselho Mundial de Igrejas, mas depois vai além.  Parte à escuta dos mestres espirituais, começando por São Francisco de Assis, passando por Teilhard de Chardin, por filósofos como Paul Ricoeur, literatos, como Dante Alighieri a Borges da Argentina e pelos místicos como São João da Cruz. Volta-se também para a sabedoria que vem das diferentes religiões. Evoca o mestre sufi da tradição muçulmana, Ali Al-Khauwas: “Há um segredo sutil em cada um dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados conseguem captar o que dizem o vento que sopra, as árvores que se balançam, as águas que correm, … o canto dos pássaros, o som dos instrumentos de corda e das flautas, o suspiro dos enfermos, o gemido dos aflitos…”. É uma escuta benevolente e acolhedora dessas vozes todas. Trata de uma caminhada da humanidade, com um selo de autoridade moral que nenhum outro documento tem. Laudato Si´ foi decisiva para o Acordo de Paris, sobre as mudanças climáticas. Ela o precede em alguns meses e aquilo foi um empurrão para o acordo, que ninguém esperava que pudesse acontecer.

Daí para frente, eu vejo assim, muitas universidades que lidam com a questão ambiental, adotam a Laudato Si´ como livro de texto, de leitura obrigatória, para várias cadeiras das universidades. Ela traz não só dados científicos, mas um grande aporte nessa busca, por parte de pessoas de boa vontade, dos movimentos ambientalistas, da juventude, dos partidos verdes, de ecologistas do mundo inteiro. Muitos ficaram encantados, porque é um texto de grande qualidade, de grande profundidade e apelo. Então, acho que a Laudato Si’, você tem razão, encontrou um eco favorável em ambientes fora da Igreja, enquanto na própria Igreja, há pessoas e setores que não a abraçaram com o mesmo entusiasmo e seguem muito voltados só para questões internas, para a liturgia, as regras do direito canônico.  Veem a Laudato Si’ como algo estranho, mas não é, e sim um texto que está preocupado com o destino da humanidade, preocupado com a crise socioambiental e que nos interpela como humanos e como cristãos.

O senhor falou sobre o encontro de Paris, um dos seus grandes defensores hoje é o presidente da França, Emmanuel Macron, que de fato, ele insistiu para na última reunião do G7 falar sobre a Amazônia desde esse ponto de vista da preservação ambiental e do cuidado do planeta. Ele chegou colocar no Twitter que nossa casa tinha pegado fogo o que provocou até um conflito diplomático entre o Brasil e a França. Poderíamos dizer que aquilo que o Papa defende nesse campo da ecologia integral está no mínimo provocando questionamentos, uma reação dos líderes políticos no mundo?

Eu penso assim, como eu disse antes, a posição do Papa Francisco tão clara, tão decisiva, tão superior e acima das picuinhas políticas. que podem ter, e existem, e são normais, essa posição superior de um apelo à humanidade toda, foi decisiva para que se chegasse a um acordo que se achava impossível, por exemplo da parte dos Estados Unidos e da  China, os maiores responsáveis pela queima de combustíveis fósseis que provocam o aquecimento global. Pelo bem da humanidade toda, houve uma convergência e aceitação de metas de redução das emissões de CO2. E como isto aconteceu em Paris, evidentemente, a França se sentiu um pouco madrinha do acordo. Eram todos os países, mas ela sentiu essa conferência como própria.

Eu penso que o presidente Macron, é defensor de um empenho em favor do meio ambiente, antes dessa crise que envolve a Amazônia, desse momento, mas também ele está espicaçado pelo fato de que, nas recentes eleições para o parlamento europeu, o seu partido afundou. A segunda força política na França tornou-se o Partido Verde, e em vários outros países da Europa. O político sempre procura sentir para onde o vento está soprando, e o vento sopra neste momento na direção da crise socioambiental, que está reclamando uma política mais severa é mais responsável em relação ao meio ambiente.

O desastre que o governo Bolsonaro tem provocado na área ambiental tem assustado a todos. Todos os anteriores ministros do meio ambiente aqui do Brasil escreveram uma carta aberta denunciando o desastre ambiental para o qual caminhamos de modo particular na Amazônia São ministros do meio ambiente, de governos tão diferentes como Sarney, Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma. Todos os ministros, unanimemente, já vinham denunciando esse descaso com a Amazônia, com o meio ambiente, e de modo particular com essa total indiferença em relação ao desastre que está acontecendo na Amazônia, acusando Deus e todo mundo, e não a própria política governamental. Esses ministros todos, dirigiram carta aberta ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre, pedindo uma moratória e uma suspensão de todas as medidas legislativas em tramitação,  que ferem o meio ambiente e que são muitas, como a abertura das áreas indígenas e de proteção ambiental à mineração, ao garimpo e à exploração florestal, um verdadeiro desastre.

Eles pedem uma moratória legislativa e se colocam à disposição para uma consulta pública no país, sobre o meio ambiente e sua preservação. Prontificam-se perante o parlamento para estar presentes numa consulta pública, trazer cientistas e que o parlamento assuma suas responsabilidades, já que o governo federal é um disparate. O atual ministro de meio ambiente, e tudo o que o governo não só vem falando, mas executando, desmonta o IBAMA, desmonta o ICMBio, o INPE e todos os organismos governamentais que cuidam do meio ambiente. Foram realmente desarticulados, destroçados, por esse atual governo.

Outra das questões que aparece no Vaticano II, mas que depois perdeu muita força é a questão de uma igreja ministerial. O Instrumento Laboris do Sínodo para a Amazônia quer recuperar essa Igreja ministerial, e inclusive insistindo no protagonismo das mulheres. Como isso pode repercutir na vida da Igreja na Amazônia e na vida da Igreja Universal, essa tentativa de recuperar uma das linhas principais do Vaticano II?

A grande virada teológica do Vaticano II, no plano eclesial, ela tem duas pernas, se a gente pode dizer assim, a primeira e principal é a de deslocar a definição da Igreja da hierarquia para o povo de Deus. Quando estudei teologia na Gregoriana em Roma, entre 1960 e 1964, a primeira tese do tratado de eclesiologia era sobre o Romano Pontífice, a segunda sobre o Primado do Romano Pontífice e assim por diante ficando os fiéis e mesmo os bispos relegados para o final do tratado. Do mesmo modo, o primeiro esquema preparatório do Vaticano II começava pela hierarquia, e foi uma grande batalha para saber qual deveria ser o capítulo II da Lumen Gentium, após o capítulo inicial de caráter bíblico que recolhia as grandes figuras da Igreja no Antigo e no Novo Testamento. Devia se seguir o esquema preparatório em que o capítulo II dizia respeito à hierarquia ou fazê-lo preceder pelo capítulo dedicado ao Povo de Deus, como principal definidor daquilo que é Igreja? O voto majoritário da Assembleia conciliar inclinou-se pela definição da Igreja, como o Povo de Deus, que devia ocupar o capítulo II da LG, seguido só então do capítulo III, consagrado ao Ministério hierárquico.

Isso altera profundamente a base sobre a qual você pensa a Igreja, que é o Povo de Deus. Você desloca da hierarquia, do Sacramento da Ordem, como estruturante da Igreja, para o sacramento do batismo. A marca fundamental do cristão é a da sua condição de batizado numa radical igualdade entre todos os membros da Igreja: “Na verdade os que creem em Cristo, os que renasceram não da semente corruptível mas incorruptível pela Palavra do Deus vivo, não da carne mas da água e do Espírito Santo, são finalmente constituídos em ‘linhagem escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido… que outrora não eram, mas agora são povo de Deus (I Pd 2,9-10)’ (LG 9). O apostolado, a chamada à santidade, estão presentes em todas as pessoas, pelo seu batismo e não, como se dizia na Ação Católica, que o apostolado só podia ser exercido pelos leigos e leigas, em virtude de um mandato da hierarquia, que deputava a alguns leigos a missão de exercer o apostolado em nome do bispo. Não, não é mandato posterior, mas o mandato para a missão e o apostolado nasce do batismo. Daí deriva uma concepção diferente de ministérios. Batizado deveria estar facultado para todos os ministérios, em virtude do seu batismo. Cabe a Igreja regular isso.

Cada batizado poderia, em si, desabrochar para todos os diferentes ministérios na Igreja. Isso aconteceu no pós-concilio. Em todas Igrejas, houve uma profusão de novos ministérios, e muitas Igrejas particulares reconhecem esses ministérios e dedicam mesmo um dia especial para tanto. Em muitas dioceses, no dia de Pentecostes há uma grande cerimônia, onde o bispo confirma esses serviços de ministros extraordinários do batismo, do matrimônio, de ministros extraordinários da Eucaristia, ministérios esses conferidos a cristãos leigos e leigas. Já há um caminho, e as comunidades, elas mesmas criam os seus ministérios, Quando o padre não está presente, a comunidade não fica à mingua. Elas tem os ministérios necessários, para sua edificação pela Palavra, pelos serviços aos pobres e doentes, a catequese. São quase sempre mulheres as que dirigem a comunidade, organizam as celebrações, que pregam a Palavra, distribuem a Eucaristia, cuidam da catequese, organizam os demais serviços e as visitas. Você tem esses ministérios bíblicos dentro da Igreja. O que falta é um passo de se ter um selo de reconhecimento oficial desses ministérios dentro da Igreja.

Antes do Concílio, por ocasião do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1955 e da primeira Conferência do episcopado latino-americano, Pio XII acedeu ao pedido dos bispos que queriam um organismo colegiado para toda a América Latina, nos moldes na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, criada em 1952. Foi assim instituído o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano), com sede em Bogotá. Depois do Vaticano II, o CELAM foi o responsável pela organização da II Conferência geral  do episcopado latino-americano, em Medellín (1968), na Colômbia; pela terceira, em Puebla (1979), no México; pela quarta, em Santo Domingo (1992) e pela quinta, em Aparecida (2007).   É bom notar que essas Conferências do episcopado latino-americano desenvolveram um aspecto bastante diminuído da colegialidade episcopal. Ao contrário dos Sínodos elas tem sido deliberativas, com documentos próprios do episcopado que tem recebido a chancela do Papa, mas que permanecem documentos próprios do magistério episcopal latino-americano.

 Depois do Sínodo da América que incluiu todas as conferências episcopais do continente da América Latina, do Caribe e as dos Estados Unidos e Canadá, em 1997, o Papa Francisco respondeu positivamente ao pedido dos bispos da Amazônia brasileira, para a convocação de um Sínodo envolvendo todas as Igrejas, dioceses, prelazias, prefeituras apostólicas dos nove países da bacia amazônica: Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Brasil. 

Em nível Pan-Amazônico, a REPAM (Rede Eclesial Pan-amazônica), foi uma tentativa, não só desde o episcopado, mas desde a Igreja como um todo, de articular essa caminhada do conjunto da Amazônia. . Uma das sugestões do Instrumento de Trabalho é a de incentivar ainda mais essa articulação Pan-Amazônica, no intuito de ajudar a Igreja da Pan-Amazônia a tomar consciência de que a caminhada, a luta, não só da Igreja, mas também dos povos na Pan-Amazônia são comuns. Como caminhar nessa direção de uma Igreja Pan-Amazônica que vive a fé e caminha junto na esperança?

Essa consciência da singularidade da Amazônia nasceu bem antes. Há iniciativas como a do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), aqui no Brasil, fundado em 1972. Nesse mesmo ano, uma assembleia dos bispos e prelados da Amazônia brasileira, elaborou uma espécie de carta de princípios e diretrizes pastorais para uma Igreja com rosto amazônico. Pouco depois, começou uma articulação dessas mesmas questões, por exemplo indígenas, com o Peru, a Bolívia, o Equador. Houve em seguida todo o esforço de se partir à escuta da caminhada espiritual de cada povo originário e de se elaborar uma teologia índia, ter uma consciência da própria identidade, ter um selo de pertença.

Essa sempre foi uma região chamada entre aspas de missionária. Nesse momento, significava uma Igreja menor, incapaz de caminhar com as próprias pernas, que dependia do estrangeiro que vinha aqui, retalhada em muitos pedaços, onde cada um era confiado a uma congregação missionária. A primeira prelazia confiada aos franciscanos alemães foi criada em Santarém, em 1904 e abrangia toda a bacia do rio Tapajós.  Isso foi sendo superado com uma articulação, com um acréscimo nessas dimensões, mas não ia no coração do problema, que era a questão indígena. Acabou havendo uma espécie de articulação no cuidado dos povos indígenas na região Amazônica.

Claro que a REPAM acabou consolidando esse caminhar, trazendo outros elementos, e está sendo fundamental na preparação do Sínodo da Amazônia, através do amplo processo de escuta de todos os povos, grupos e segmentos populacionais da área. Então, é possível que se consolide uma articulação mais permanente e reconhecida, dentro de estruturas como o CELAM que tem seu departamento de missões, que tem esse espaço amazônico, como aconteceu com o sul de México, com as dioceses de San Cristóbal de Las Casas em Chiapas, Tehuantepec, Oaxaca e outras dioceses deste estado com a maior população indígena de todo o México. Isto também aconteceu com a Amazônia peruana. Depois muito dessa articulação foi se perdendo com a política de nomeação de bispos que vigorou durante o pontificado de João Paulo II e Bento XVI. Nessas regiões havia um ímpeto missionário, criação de uma igreja de comunidades, com seus ministérios e uma formação adequada para tanto.

Estou pensando no Equador com Leónidas Proaño em Riobamba, Mons Gonzalo Lopez em Sucumbios, nos bispos dominicanos na Amazônia peruana ou então nos diáconos tsetales, tzoziles na selva lacandona de Chiapas, com o bispo Samuel Ruiz e Raul Veras. Tudo isso foi muito desarticulado, mas pode ser reorganizado. O Sínodo está sendo um teste para tanto e um chamado para que os bispos assumam novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral na Amazônia.  A região amazônica é uma área que exige um trabalho no dia-a-dia da Igreja, não de manutenção de estruturas, mais de criação de novas formas de pastoral, de acompanhamento e de se viver a Igreja.

Então, a REPAM pode ser um espaço onde essas coisas são chocadas e nascem, e o Sínodo pode dar uma institucionalidade ampla, e não apenas regional. E aí a discussão seriam os trabalhos de como se tecem os laços mais fortes, como acontece no Brasil com a CNBB, como acontece no CELAM e uma articulação missionária aqui na Amazônia. Sempre que se cria um organismo novo, tem que se garantir a liberdade de cada membro desse organismo, mas também tecer e fortalecer os laços de cooperação e este é um desafio.

Na CNBB, nos diferentes episcopados que fazem parte da Pan-Amazônia, realmente existe essa consciência pan-amazônica que possa ajudar diante das ameaças que a Amazônia e seus povos estão sofrendo hoje?

Eu penso que essa é uma consciência crescente, que não se pode ignorar o desafio de se sensibilizar áreas aparentemente desligadas dos problemas enfrentados pela Amazônia. Mas eu penso assim, num centro industrial como São Paulo, há um pouco de dificuldade, como Igreja e como sociedade, para dizer, bom a Amazônia é uma problema meu também. Embora hoje, com todos os estudos científicos, fique claro que São Paulo não sobrevive sem os rios aéreos que trazem a umidade da floresta amazônica e provocam chuvas em São Paulo e até em Buenos Aires e a Patagônia argentina. Eles também trouxeram há duas semanas uma nuvem de fumaça preta oriunda das queimadas na Amazônia e que escureceu a cidade, como se fosse noite.   Uma consciência dessa interligação e que a Amazônia não é questão de pulmão do mundo, pois solta oxigênio e ela mesma o absorve oxigênio, mas que ela é um regulador climático fundamental para essas regiões do sul do país, onde estão quase dois terços da população e três quartos dos PIB nacional.

Elas se tornariam um deserto, como é o Atacama no Chile, ou o Saara no norte da África. São desertos no sul e no norte do Equador, como o deserto de Sonora no México ou o deserto de Gobi, na China, tudo na mesma faixa, onde não chove, pela rotação dos ventos. Isso acontece em todos os lugares, menos aqui na América do Sul, porque a floresta amazônica é a chave para se manter úmidas e férteis regiões que, de outro modo, seriam áridas, como no restante do mundo. Além da constante evaporação fornecida pela floresta amazônica, que é responsável pelos rios aéreos que viajam para o sul, ela guarda um imenso lençol subterrâneo com lâmina de água doce de cerca de 500 metros, o maior do mundo, o Álter do Chão, muitíssimas vezes superior ao Aquífero Guarani.

O Rio Amazonas, por sua vez despeja no oceano 18 milhões de metros cúbicos de água por segundo. Isto é mais do que a soma de todos os outros nove maiores rios do mundo, e além disso tem esses rios aéreos que são chave na agricultura, também até na Argentina, e que estão ocupando o debate científico, o debate climatológico, e tem clara consciência que essas regiões dependem disso. A expressão de que tudo está interligado nesta casa comum, aqui é muito mais verdadeiro e sério. Nós vivemos e dependemos da Amazônia e de sua floresta, mesmo em zonas que estão distantes a milhares de quilômetros de lá.

A consciência de tudo isso foi muito despertada com o projeto de Igrejas irmãs. Aqueles agentes de pastoral, padres, religiosas, leigos e leigas, que saíram de igrejas de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, e enviaram seus missionários para prelazias e dioceses da Amazônia, cujos os bispos foram visitá-los, ganharam uma consciência maior dessa corresponsabilidade eclesial. Não é geral, mas já é diferente de uma total indiferença que havia antes. Lá era para os estrangeiros, não para nós. Essas igrejas não tinham uma conexão, nem faziam parte da CNBB que, no seu início, era constituída apenas por um reduzido número de cardeais e arcebispos. Depois foram incorporados os bispos e só mais tarde os prelados das áreas missionárias.

Só que na convocação do Concilio, João XXIII disse que todos os que tinham responsabilidade ministerial num território deviam vir para o Concilio, e seriam padres conciliares, a mesmo título dos cardeais, patriarcas, arcebispos e bispos do mundo todo. Os prelados ganharam um selo de maioridade eclesial e de corresponsabilidade com o restante dos bispos. Desse modo, os titulares das prelazias foram incorporados à vida ordinária da CNBB. Nos últimos anos, foi criada uma comissão da CNBB para a Amazônia, da qual o titular é o arcebispo emérito de São Paulo, o cardeal Dom Cláudio Hummes. Dom Cláudio assumiu com tanto empenho e entusiasmo essa missão, que creio que isso contribuiu para mudar o panorama aqui, e em outros países da região amazônica. Sua nomeação como relator do Sínodo só reforça sua autoridade e responsabilidade nesse momento.

De todas as intuições que trouxe o Vaticano II, que a gente sabe que depois nem todas foram concretizadas, aquelas que ainda faltam concretizar, até que ponto o Sínodo para a Amazônia pode ajudar nisso?

Eu assinalo dois déficits na recepção do Vaticano II, na questão eclesiológica. Há três documentos eclesiológicos que são aprovados solenemente e publicados no mesmo dia, no dia 21 de novembro de 1964, a Lumen Gentium, o decreto Unitatis Redintegratio, que é parte integrante do projeto de Igreja, com suas relações ecumênicas, e também o decreto Orientalium Ecclesiarum, o documento consagrado às Igrejas católicas orientais. Segundo o maior eclesiólogo católico no século XX, o dominicano Pe. Yves Congar, elevado ao cardinalato no fim da vida, a Igreja respira por dois pulmões, o pulmão oriental, antigo e venerável, e o pulmão ocidental, latino. Ela vinha respirando com apenas um dos pulmões. E a gente dizia e repetia tantas vezes, a Igreja faz assim ou assado, mas na verdade estávamos falando apenas de seu ramo ocidental, latino, como se fosse toda a Igreja. Por exemplo, repetiu-se tantas vezes, mesmo na aula conciliar: os padres não casam na Igreja.

Na realidade, falava-se da realidade da Igreja latina, romana, o que não era verdadeiro para todas as outras 19 Igrejas católicas, onde normalmente os monges não se casam, nem os bispos, mas os padres responsáveis das paróquias, sim. Numa Igreja que é a grandona, católica, ocidental, tem-se este um regime de um clero secular celibatário. O mesmo vale para outras questões, como a da língua litúrgica. O latim era obrigatório até o Concílio, para o Missal romano e o ritual dos demais sacramentos. Mas isto não é verdade para as Igrejas católicas orientais, que usam o copta no rito alexandrino da Igreja no Egito e na Etiópia; o grego no rito bizantino católico; o armeno, na Igreja católica da Armênia ou ainda o siríaco, em todas as Igrejas que adotam o rito antioqueno na Síria, nas comunidades do Iraque ou entre os sírios malabares e sírio malankares na Índia.

Você tem no seio da Igreja una, católica e apostólica uma rica diversidade de ritos, e isso é reconhecido e apreciado na Sacrosanctum Concilium, na Orientalium Ecclesiarum e na Lumen Gentium. Essa diversidade faz parte do mesmo bloco eclesiológico aprovado conjuntamente com a Lumen Gentium. Ela caminha de braço dado com toda a busca da unidade a ser restaurada pelo ecumenismo e de braço grudado com o reconhecimento da diversidade e da riqueza litúrgica, patrística, teológica e de organização eclesial própria das Igrejas católicas orientais.

Esse é um déficit, a Igreja continua só pensando na Igreja latina, não pensa que a Igreja católica é formada pela Igreja latina e por 19 outras Igrejas que não são latinas, mas são também católicas, e tem regimes distintos e vivem a sinodalidade de maneira muito profunda. O Patriarca Maximos IV da Igreja Melquita, fez uma intervenção memorável no Vaticano II. No discurso não utilizou a língua oficial que era o latim. Levantou-se e se dirigiu aos 2.500 padres conciliares em francês, desafiando o regulamento. Não que não soubesse latim perfeitamente, mas queria levantar uma questão eclesiologicamente relevante, a da diversidade e não uniformidade dentro da Igreja.

E depois disse, as Igrejas do Oriente não devem nada à Igreja de Roma, nem na sua teologia, nem na sua eclesiologia, nem na sua liturgia, nem nos Padres da Igreja, que são do Oriente. Estamos em comunhão com Roma, mas não somos romanos. O patriarca Maximos IV provocou um abalo no Concilio, com sua intervenção. Então, esse para mim é um déficit, quando se trata a Lumen Gentium, separada dos dois outros documentos eclesiológicos, o do Ecumenismo e o das Igrejas orientais aprovados no mesmo dia e que fazem parte de um único e mesmo bloco eclesiológico.

O segundo déficit é que a eclesiologia apoia-se em duas pernas, uma que é a Lumen Gentium e outra que é a Gaudium et Spes, a Constituição Pastoral da Igreja no mundo de hoje. A Igreja não existe para si. Ela tem uma missão no mundo, ela existe para fora, para a missão de santificar o mundo. Não se pode pensar a Igreja sem amarrar essas duas pontas. Eu me recordo na preparação para a celebração dos cinquenta anos do Vaticano II. Eu fazia parte da comissão preparatória da CNBB e vi que estava já praticamente decidido que um ano seria dedicado à constituição sobre a liturgia, a Sacrosanctum Concilium, outro ano à Palavra de Deus na Constituição dogmática Dei Verbum e outro à Igreja na Constituição dogmática Lumen Gentium. Intervi para perguntar: e onde fica a Constituição Pastoral Gaudium et Spes? Parecia que não havia lugar para a mesma.

Aí se estendeu a memória do Concílio, por mais um ano, ficando o ano de 2015 para o estudo da Igreja na sociedade, do seu serviço à sociedade. Não sei o quanto nos seminários e na formação em geral assume-se essa dupla face da eclesiologia presente uma na Lumen Gentium e outra na Gaudium et Spes.  Não somos católicos, não somos fieis ao Concilio se não amarramos essas duas pontas e se não tomamos consciência e traduzimos isto para a prática, de que o regime interno da Igreja está ligado à sua missão no mundo. Essa é outra grande questão, esse é outro grande movimento eclesiológico fundamental para que a Igreja não se feche em si mesma como vem acontecendo nos últimos tempos.

 

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