A luta desigual das ‘Marielles” na política brasileira

Marielle não estava só nem é a única.

Ela se tornou, com sua morte,

 o rosto vivo de um fenômeno coletivo cada vez mais forte…

(Eliane Brum)

A realidade das mulheres no Brasil e no mundo é marcada por desigualdades e múltiplas violências cotidianas. Vivemos em uma sociedade politicamente organizada de forma a dar poder para alguns grupos dominarem, explorarem e oprimirem outros de acordo com gênero, raça, etnia, classe social, orientação sexual e contextos político, econômico e cultural. Nesta gramática sociopolítica excludente, as mulheres, principalmente as pobres, negras e indígenas, são as principais vítimas das violências e dos abusos de poder, tanto no ambiente privado como no público. As estatísticas e os meios de comunicação revelam escandalosamente este cenário a cada dia.

É inegável a força organizativa das mulheres para vocalizar suas demandas nos diversos espaços sociais e políticos, nas últimas décadas. Visibilizamos um histórico e heroico percurso de lutas e conquistas quanto a escolaridade, a inserção no mundo do trabalho, a ocupação de espaços de lideranças, a garantia de políticas públicas e ao direito de votar e ser votadas. Temas como violência de gênero, assédio, cultura do estupro, feminicídios, direitos reprodutivos, autonomia e empoderamento vêm sendo discutidos amplamente na sociedade e ganhando espaço no cenário político. A Lei Maria da Penha e a lei de tipificação do crime de feminicídio são, sem dúvida, grandes avanços.

No entanto, a construção democrática e a participação efetiva nos espaços políticos com paridade e equidade de gênero ainda está longe de ser uma realidade para as mulheres no Brasil. Infelizmente as trigêmeas estruturas do patriarcado, do racismo e do capitalismo continuam reinando com práticas de dominação, exploração e exclusão das mulheres dos espaços de cidadania política. Além das formas de violências domésticas objetivamente visibilizadas, as mulheres ao buscarem ocupar aos espaços públicos de poder e governança, sofrem de forma orquestrada uma série de violências políticas sexistas que limitam suas inserções nestes espaços.

O conjunto dessas violências disseminadas – seja de forma física, sexual, psicológica, simbólica e econômica, permeadas de preconceitos e estereótipos morais e estigmatizantes, racistas e machistas e misóginos – é um dos relevantes motivos que impedem as mulheres de se elegerem e atuarem nos espaços políticos. Por vezes, esta violência é tão brutal que resulta em feminicídio político, como foi a morte da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, no dia 14 de março de 2018. Um assassinato paradigmático, que atingiu a democracia como espaço de construção de alternativas, ferindo todas e todos que por ela lutam.

Segundo o Inter-Parliamentary Union, o Brasil é um dos piores países em termos de representatividade política feminina, ocupa o 152° lugar no ranking mundial e o terceiro na América Latina em menor representação parlamentar de mulheres. Isso reverbera no cenário de baixíssima representatividade feminina nas esferas de poder e em cargos eletivos em todos os estados da federação, e em todos os níveis de poder político, das Câmaras de Vereadores ao Senado.

Para nós mulheres, o exercício da política é um dos maiores interditos à nossa cidadania. Na democracia brasileira, mais que a metade da população está sub-representada. Somos 52% da população e somente 10% das cadeiras no Congresso Nacional são ocupadas por mulheres, mesmo depois de mais de 20 anos de cotas, estabelecendo que um terço das candidaturas dos partidos sejam femininas. Essa representação é ainda mais baixa para a população negra e indígenas. Se a pluralidade das pessoas de uma sociedade não está representada nos locais onde se propõem, se discutem e aprovam as políticas públicas e a garantia dos direitos, a democracia não só se configura de baixa intensidade, como é injusta e ineficiente.

Embora se apregoe um crescimento da participação política das mulheres, nas eleições municipais 2020, essa participação seguiu tímida e minoritária, apenas 1 a cada 10 candidaturas para as prefeituras era de mulher. Foram 2.496 mulheres candidatas para o Executivo municipal num total de 19.141 candidatos, correspondendo a 13% do total. O baixo número de candidaturas de mulheres também se manteve na disputa para as Câmaras Municipais. As mulheres foram 34%: 175.312 candidatas, de um total de 509.969 candidatos ao cargo. E no tocante ao resultado, não obstante algumas conquistas simbólicas importantes, como a eleição de Mônica Benício, companheira da ex-vereadora Marielle Franco no RJ, das primeiras vereadoras negras em Vitória e Curitiba, de duas mulheres trans, respectivamente em Belo Horizonte e São Paulo e algumas poucas vitórias de candidaturas coletivas em alguns estados. o desfecho final não evidenciou relevantes avanços numéricos. A porcentagem de vereadoras eleitas nas capitais é 18% apenas. E para prefeitura das capitais, apenas uma mulher eleita no primeiro turno e quatro com chances de serem eleitas, no segundo turno.

Para nós, mulheres, a democracia nunca foi substantiva. Permanece a abissal disparidade de gênero nos espaços políticos. Fato que nos desafia a todas a seguirmos assumindo a participação política como uma luta de resistência, insistindo em sermos todas ‘Marielles’, sujeitos de nossas próprias vidas, nos organizando e reinventando-nos para superar essa iníqua e injusta realidade.

A história tem mostrado pelos contextos e fatos que, para construir espaços políticos realmente democráticos, é imperativo atuar coletivamente de forma afirmativa para ampliar a inclusão das mulheres na vida política do País. Para isso, urge compreender as complexas conexões de gênero, raça e classe social como componentes estruturantes das desigualdades. E torná-los pautas prioritárias nos processos formativos e organizativos, não só dos movimentos feministas, mas de todos e todas, nas comunidades, nas organizações e movimentos populares e nos partidos políticos.

Nesta direção, as CEBs, compostas majoritariamente por rostos femininos, são um importante espaço para a formação e valorização da liderança e empoderamento das mulheres, de incentivo e apoio a sua participação e inserção nos espaços políticos, de superação das violências e desigualdades de gênero e raça, e de gestação de práticas alternativas de democracia plural e participativa. Tudo isso a partir da inegociável relação entre fé e vida, fé e política, oração e ação, sonho e luta por uma sociedade de igualdade, justiça e inclusão.

Leia o primeiro artigo da irmã Eurides através do link: https://portaldascebs.org.br/2020/10/21/somos-gente-de-resistencia-esperanca-e-profecia-por-irma-eurides-alves-de-oliveira/?fbclid=IwAR2Fu6Aump2ppLrRlIFhVpEaV__A9VqYEcTk_L36yn1BkLXqp9UaJOV-hl0

 

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