No âmbito cristão, talvez um dos conceitos que mais se esvaziou de sentido foi o de “evangelização”. Ganhou um tom extremamente proselitista, isto é, tem sido quase exclusivamente sinônimo de conseguir fiéis para as igrejas. No contexto católico, apesar de dois belíssimos documentos que sintetizam de forma magnífica o que é evangelizar, Evangelli Nuntiandi – EN, do Papa São Paulo VI, 1975; e Evangelli Gaudim – EG, do Papa Francisco, 2013, o problema não é menor.
A crise civilizatória que estamos atravessando, tem levado a priorizar a mídia como uma grande ferramenta no processo de evangelização. E aqui está um grave problema. Não se trata de “demonizar” a mídia, mas se faz necessário aprofundar qual é a pretensão cristã em um dado contexto cultural. Indiscutivelmente não há ponto de retorno no uso das mídias, principalmente as digitais. Mas é preciso, como diz São Paulo VI, não confundir o essencial com o secundário (EN 25). É isso que os documentos acima citados fazem. Lembra-nos do essencial.
No número 18 da EN São Paulo VI nos apresenta uma definição bem precisa: “Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade”; e no número 20 ele conclui: “importa evangelizar não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial”, sendo necessário ir até “as raízes da cultura”. E o que se está priorizando nas últimas décadas? O parecer ser. O agradar multidões fluidas, o não aprofundamento de questões essenciais.
Ora, muitas igrejas, incluindo a católica, tem passado verniz superficial por aí. Por isso, concluímos que o Papa Francisco julgou necessário retomar o tema colocando desdobramentos fundamentais relativos ao mundo de hoje, como a “dimensão social da evangelização”, dimensão que o Papa Bento XVI já tinha lembrando na Encíclica “Deus é Amor” (25).
O verniz está sendo colocado por cima de uma madeira não tratada. É isso que as mídias podem fazer. Vivemos no interior de uma grande confusão conceitual. Precisamos das ferramentas midiáticas, mas se não as usamos bem, podemos mais estragar do que apresentar o projeto de Jesus de Nazaré, o Reino de Deus, como questão central do processo. Assim, entra-se em uma lógica de concorrência que vence quem “se comunica” melhor. Mas este melhor pode estar sendo medido não pelos critérios do Caminho de Jesus Cristo, mas sob critérios performáticos.
Um exemplo recente é o caso do Pe. Júlio Lancelloti. Júlio que, em certa medida, também é um fenômeno midiático. Contudo, inegavelmente, muitos de nós não colocamos em dúvida que ele evangeliza mais pelo testemunho do que pela mídia. No episódio da CPI na Câmara de Vereadores de São Paulo, muitos, inclusive quem escreve esta coluna, esperava uma palavrinha solidaria dos artistas padres ao irmão presbítero da arquidiocese paulista, mas não veio. São Paulo VI vai afirmar, por seis vezes, na EN, a importância do testemunho para o processo de evangelização.
Estamos assistindo uma grande confusão dentro das igrejas, inclusive com discurso de ódio em seu interior. Pior, autoridades eclesiásticas que fazem vista grossa em muitas direções, como casos de abuso, assédio moral, desvios de recursos econômicos, de autoritarismo, de perspectivas nas quais, no caso católico, que consideram até mesmo o Papa Francisco um herege.
Como evangelizar com mentiras, com “fake news”, com discurso de ódio? Como evangelizar pautando o tema do aborto com certa exclusividade? E, por favor, não recorte a frase para dizer que a coluna está defendendo o aborto. O que se quer salientar é a existência de um conjunto de fatores sociais que exigem, tanto quanto sobre o aborto, um posicionamento forte. Como evangelizar apresentando uma liturgia como espetáculo e não como introdução ao Mistério? Criticam-se posturas progressistas como ideológicas como se os que criticam não tivessem ideologia, fossem puros de interesses.
Como diz o filosófo Byung-Chul Han, estamos debaixo de uma “ditadura do igual”, sociedade onde cada vez mais a discordância é vista como um tipo de crime. Ora, neste sentido, as mídias contribuem, mesmo que não seja a razão de fundo. Portanto, quando se afirma que a mídia não evangeliza se está afirmando que o processo supõe muito mais do que “visibilidade”. Ainda com Han, é preciso enfrentar um “regime de informação” que mais confunde do que aprofunda. É preciso enfrentar a “caixa-preta algorítmica”. O “like” não comunica, ou seja, seguindo o filósofo, “mídia é dominação”.
Evangelizar supõe encontro pessoal. Evangelizar supõe formação de comunidade. Evangelizar supõe iniciação cristã. Evangelizar supõe compromisso com a vida em todas as suas manifestações. Evangelizar supõe querer fazer da nossa vida, a mesma coisa que Jesus de Nazaré fez com a dele, necessariamente não morrendo na cruz, apenas se for uma exigência, mas como diz o Apóstolo Paulo, é preciso “ter os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5).