Depois de ter acompanhado as comunidades eclesiais de base durante mais de 50 anos, podemos dizer que o Padre José Marins é um dos grandes conhecedores desse jeito de ser Igreja que pretende recuperar a forma de viver o Evangelho das primeiras comunidades cristãs, algo que o Padre Marins avalia desde uma perspectiva histórica, que foi evoluindo até os dias de hoje.
Ele considera que o Vaticano II tentou recuperar esse modo de ser Igreja, mas “o clero se tornou a grande dificuldade para construir comunidades”, fazendo com que as comunidades ficassem “como uma coisa de élite”. Segundo o teólogo e assessor continental das CEBs, “as comunidades, nessa altura, deveriam sintonizar plenamente com Francisco e com o que ele vai dizendo, especialmente com o Sínodo da Amazônia”. Ele chega a afirmar que “esse Sínodo da Amazônia é tão precioso como foi o Vaticano II, abriu muitas portas possíveis”, o que deveria fazer com que “as comunidades de base deveriam ter uma grande sintonia com o Sínodo da Amazônia, conhece-lo, tomar todos os seus elementos”.
Um dos grandes problemas da Igreja é que “os grandes desafios do mundo, depois do Vaticano II, não foram assumidos pela hierarquia e pelos presbíteros, e também pelas comunidades de base”, provocando “uma distância entre o caminhar da sociedade” e a Igreja, inclusive dentro das comunidades eclesiais de base, onde muita gente “não fez uma atualização para viver de acordo com o novo processo”. Isso se percebe sobretudo no mundo urbano, onde “cada paróquia é uma ilha, ela vive em torno dela mesma, não interessa as outras ilhas, não há pontes, cada um faz a sua experiência”, sem capacidade para a Igreja “pensar o mundo no modelo urbano”.
Por isso, segundo José Marins, “o mundo não precisou mais, não perguntou mais nada para a Igreja e a Igreja perdeu a capacidade de acompanhar”. A alternativa que ele propõe é uma Igreja onde “praticamente acabasse o clero, e fosse o Povo de Deus que assume a responsabilidade”, voltando assim à prática da Igreja primitiva.
Depois de mais de 50 anos acompanhando as comunidades eclesiais de base em América Latina, o que o senhor pensa que as comunidades eclesiais de base significam para a Igreja?
Eu distinguiria em duas parte, primeira parte aquilo que eu acho que deveria ser no seu conteúdo fundamental, e na segunda parte é o que de fato acontece ou não acontece. Então, a primeira parte, evidente, o que a Igreja foi desde o começo, era um encontro comunitário onde todos se conheciam e se ajudavam. Basta olhar os Atos dos Apóstolos 12, 12, sem Jesus, se reúnem na casa de Maria, mãe de João Marcos. E aí, cada um apresentava a sua situação, a sua esperança, a sua realidade comunitária. Era a Igreja da casa, isso durou quatrocentos anos.
O que é que faziam esses cristãos, era uma presença de base da Igreja, compartiam o que tinham, escutavam a Palavra de Deus, os apóstolos ajudavam os mais necessitados e anunciavam a proposta de Jesus. A comunidade de base é retomar o primeiro nível da Igreja, como os bispos disseram, primeiro e fundamental nível da Igreja. Isso significa a Igreja segundo aquilo que foi pensado ou querido, buscado por Jesus e os primeiros cristãos. Ela influi, para onde for, esse é o estilo de ser seguidor de Jesus. Durante muito tempo era um grupo pequeno que se distinguia em qualquer parte porque o que chamava a atenção é que como é que essa gente se quer, como é que essa gente vivem como irmãos não sendo irmãos de sangue.
A comunidade eclesial seria, no começo da Igreja, a referência fundamental para ser Igreja. De tal maneira que daí vem o modo de ser Igreja maior. A partir do século IV, com o Império Romano abraçando e tomando conta da Igreja, perde-se o aspecto da comunidade na casa, porque de um dia para outro, com Constantino, a Igreja se torna a religião oficial do Império Romano, e depois com Teodósio, fica obrigatório para um romano ser cristão. De um dia para outro, aquelas comunidades que tinham 20, 25 membros, talvez, passaram a ter 200, 300, 400, que muitas vezes não se batizavam, mas ficavam como catecúmenos, esperando durante a vida para só em caso praticamente de morte pedir o batismo. Porque a tradição cristã nesse momento, na maioria, não dava uma segunda oportunidade de perdão para quem tendo sido batizado não era fiel.
Os imperadores romanos cederam os edifícios públicos para a reunião dos cristãos. A comunidade passa do grupo conhecido na casa para as grandes estruturas do Império Romano, as basílicas, perdemos a experiência do cristianismo comunitário, personalizado. O sonho da gente era recuperar este primeiro nível, que a partir do século IV desapareceu, e o que aconteceu foi o que se chamou a paróquia, que é a comunidade dentro da perspectiva da cristandade. A Igreja é um lugar de encontrar-se com coisas emocionais, grandiosas e poderosas. A autoridade da Igreja é uma autoridade igual a autoridade do Império.
Esse período de cristandade chega até o Vaticano II, que tentou e vai produzir isso, renovar e reconstruir o primeiro nível, porque a paróquia deixou de ser o primeiro nível, ela ficou sendo um nível multitudinário da Igreja. A comunhão das comunidades formariam a paróquia, a comunhão das paróquias formariam a Igreja local. Esse seria o sonho, mas aí vem a segunda a parte, isso não aconteceu. Primeiro porque o clero sentiu-se que se ele abrisse a perspectiva da comunidade, perderia o lugar de pastor que coordena o Povo de Deus, e as comunidades tem que ter uma autonomia. Os presbíteros não estavam preparados para isso, eles não tiveram um estudo do que seria uma comunidade de base, muitos nasceram depois do Vaticano II, então não tiveram nenhuma perspectiva do modelo de Igreja comunitário, básico, e ao mesmo tempo, transformador do mundo.
O clero se tornou a grande dificuldade para construir comunidades, com exceção de alguns que sempre ajudaram e estão ajudando. Mas a maioria não entendem, e por não entender, não quer a comunidade de base, eles colocaram na categoria de movimento. Em alguns dos encontros, depois de Medellín y depois de Puebla, se tentou colocar a comunidade, junto com os leigos, não no primeiro nível da Igreja, mas um grupo de leigos que na Igreja tem, a partir da Palavra, a partir da oração, algum serviço para os pobres, mas como se fosse um movimento. Quer dizer, aquilo que a gente sonhou com o Vaticano II, o que vai acontecendo é que deixa de ser uma novidade, mas passa a ser uma continuidade dos movimentos para a paróquia que queira ou deseje.
Desde essa perspectiva do Vaticano II, dentro dessa Igreja que deixa de ser uma Igreja de cristandade, como as comunidades de base poderiam ajudar de cara ao futuro no caminhar da Igreja e na evangelização do povo?
Como todo processo da Igreja, a paróquia demorou mais de 500 anos para poder ser plenamente viável, as comunidades também vão ter um tempo grande. Tiveram, logo depois do Vaticano II, mais ou menos 20 anos de grande novidade, grande procura, quase todas as conferências episcopais procuraram formar comunidades de algum modo. Isso acabou dentro do pontificado de João Paulo II e depois de Ratzinger, que perdeu essa perspectiva. Antes de ser o Papa Bento XVI, ele faz uma declaração em 1985, dizendo que realmente as comunidades foram mais problema do que ajuda, foram uma grande esperança que se perdeu.
Dentro desse período, que vem até Aparecida e depois de Aparecida, as comunidades ficaram, mais ou menos, como uma coisa de élite, é um grupinho que se querem pode fazer, na melhor das hipóteses pode fazer comunidade, mas na prática, a maioria do clero não está interessado e a maioria dos bispos também não está interessado. Eu falo da América Latina, fora da América Latina houve um desejo na Ásia, na África, mas eu estou aqui dirigindo à perspectiva latino-americana.
O Papa Francisco tenta fazer realidade uma Igreja a partir da sinodalidade, da comunhão, que é uma dimensão sempre muito presente nas comunidades eclesiais de base. Como as comunidades eclesiais de base poderiam ajudar nessa tentativa que o Papa Francisco está propondo?
As comunidades, nessa altura, deveriam sintonizar plenamente com Francisco e com o que ele vai dizendo, especialmente com o Sínodo da Amazônia. Creio que esse Sínodo da Amazônia é tão precioso como foi o Vaticano II, abriu muitas portas possíveis. O Papa diz mesmo no documento papal que tudo aquilo que foi proposto não está cancelado e ele dá campo aberto para que as dioceses peçam aquilo que acham que é importante e dá força à Igreja local. As comunidades de base deveriam ter uma grande sintonia com o Sínodo da Amazônia, conhece-lo, tomar todos os seus elementos, não só na Amazônia, mas também para nós, e aquilo que o Papa está proclamando, retomar os documentos e o testemunho do Papa Francisco na Igreja.
Esse é o grupo que vai apoiar o Papa, porque a maioria do episcopado está aplaudindo o Papa, mas não está acompanhando, a não ser uns poucos. Aplaudem, até gostam, mas não transformam a sua diocese naquela perspectiva que o Papa anuncia.
E por que essa dificuldade de muitos bispos, presbíteros, em assumir essas propostas do Papa e traduzi-las em uma organização das paróquias e das dioceses?
Eu sinto que o Vaticano II, para a maioria dos bispos que vieram depois, ainda tem que ser inaugurado. Muitos nasceram depois do Vaticano II mas não tiveram uma preparação, e aquele estímulo que apareceu no começo no Vaticano II, nos 20 primeiros anos depois do Vaticano II, onde nós, pelo menos na América Latina, e no Brasil de um modo muito especial, tivemos um episcopado extraordinário, que realmente motivou e recomeçou um processo novo. Passado esse episcopado, não fomos capazes de preparar uma segunda geração, ficamos esperando e apoiando naquilo que esses bispos, Luciano Mendes, por exemplo, para dizer um entre eles, que eles fizeram muito bem.
Vamos ver se isso continua, mas não se comprometeram naquela proporção em que o bispo se comprometeu, e desapareceu a comunhão dos assessores, falo na América Latina, os assessores que durante e depois do Vaticano II significaram um grande processo de atualização, desapareceram. Por muitas razões, porque terminou, eles ficaram mais velhos, ou outros pensaram que bastava chegar onde haviam chegado, e não continuaram atualizando o Vaticano II nas propostas que ele fazia. De tal maneira que a Igreja da comunidade de base ficou aqui, mas o mundo foi muito mais na frente.
Os grandes desafios do mundo, depois do Vaticano II, não foram assumidos pela hierarquia e pelos presbíteros, e também pelas comunidades de base que vieram depois disso. De maneira que há uma distância entre o caminhar da sociedade, basta ver nos jovens, que hoje deixam a Igreja e nem tem ideia de pertencer a uma comunidade. Então, na comunidade nós temos gente com muita idade, que tem 10, 20, 30 anos de experiência de comunidade, mas não fez uma atualização para viver de acordo com o novo processo.
A Igreja ainda não foi capaz de integrar-se com o processo urbano do mundo, nas grandes cidades do mundo, e o mundo tem cada vez mais maioria de cidades, o mundo rural está terminando, e o que existe prepara para não ser mundo rural. Todos os filhos do pessoal do mundo rural terminam sendo professores, advogados, médicos, saindo do mundo rural, a maioria não volta para o mundo rural, o mundo está se transformando. Dentro da cidade, a teologia permanece como se fosse ainda a cristandade e o rural. O que é o mundo urbano, praticamente não acontece nas paróquias, cada paróquia é uma ilha, ela vive em torno dela mesma, não interessa as outras ilhas, não há pontes, cada um faz a sua experiência.
O urbano não nos tomou de surpresa, mas nós não fomos capazes de pensar o mundo no modelo urbano, e os processos que estão acontecendo no mundo são muito rápidos. Por exemplo, a Bíblia, que todo mundo usava a Bíblia, hoje o pessoal usa o celular, e no celular tem a Bíblia, e é muito menor, não tem peso nenhum, e é muito mais rápido para achar uma citação bíblica. Mas nós estamos preocupado em manter o livro e sempre fazer através daquele livro grande e pesado. Esse é um exemplo de que a maioria está no mundo do celular e nós estamos ainda no mundo do papel, da imprensa, do Gutemberg, que é do século XVI.
Por que a gente poderia dizer que a Igreja hoje não apaixona mais os jovens?
Não há uma só causa, há várias causas. Na minha opinião, primeiro foi o descredito da Igreja, que sempre, tudo o que foi novo do mundo moderno, primeiro a Igreja o condenou, ou ficou esperando para ver o que ia acontecer. No fim do século XIX a Igreja não aceitou a vacina, os papas daquele tempo fizeram um documento contra a vacina, contra o trem, dizendo que esse trem ia levar todos para o inferno. Depois o psicoanálise, a psicologia, tudo a Igreja deixou de lado. O mundo não precisou mais, não perguntou mais nada para a Igreja e a Igreja perdeu a capacidade de acompanhar. Segundo, o tema de abuso de menores, etcétera. Terceiro, a formação clerical, que é muito mais para a cristandade do que para o mundo de hoje. Eu colocaria pelo menos esses três aspectos que nos tocam mais fortemente.
De cara ao futuro, o que o senhor sonha para as comunidades de base na América Latina, para a Igreja e para o mundo como um todo?
Para o mundo eu sonharia terminar com as diferenças entre o conjunto das nações, que a terra é de todos, não é de um país. De tal maneira que a ONU, seria muito mais poderosa se dissesse as áreas que juntos cuidam das pessoas existentes, de tal maneira que não precisasse os povos sair do seu território para outros territórios, mas aí teria o necessário. Então, eu queria um tipo de ONU diferente do que temos hoje, que não decide as coisas pela guerra, mas decide por um processo deles.
Na linha da Igreja, eu esperaria que praticamente acabasse o clero, e fosse o Povo de Deus que assume a responsabilidade, e alguns ministros que apoiam o Povo de Deus, e que ajudam o Povo de Deus. Mas o clero não foi instituído por Jesus, foi instituído pela Igreja, a Igreja passou pelo menos 400 e 500 anos sem ter clero. Era o bispo das grandes cidades, só grande cidade tinha bispo, e depois que o Império Romano apoiou e se misturou com a Igreja, então multiplicaram bispos para cidades menores. Então, perdeu aquele sentido de que a Igreja não está ajudando o sistema econômico, ela ajuda as pessoas a se chegar na sua plenitude humana, e não entrar no sistema que chamamos religioso e que controla toda a vida da pessoa.
A figura do bispo seria outro tipo de figura, mais próximo ao começo do cristianismo, que se reúne, que acompanha as pessoas e não precisa ser um bispo para 4 milhões de pessoas, pode ser muito maior o número de bispos, porque não vai ter nada de precioso para comprar e para vestir, senão a simplicidade. Aquele que hoje nós teríamos como um presbítero seria o bispo do futuro, e o presbítero desaparece e fica muito mais claro o Povo de Deus assumindo.