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CF 2018 e a Violência contra a mulher: a expressão mais dramática da desigualdade de gênero no Brasil

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Iniciamos esse artigo apresentando alguns números de pesquisas que, por si só, demonstram o quanto, no Brasil, a mulher sofre de violência pelo fato de ser mulher.

– A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez uma pesquisa com 83 países sobre o assassinato de Mulheres. Nesse ranking o Brasil ocupa a 5.ª posição com uma taxa de 4,8 homicídios de mulheres a cada 100 mil. Esse é um indicador que os índices do País são excessivamente elevados (Mapa da Violência, 2015);

– O Mapa da Violência (2015) aponta que, entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram por sua condição de ser mulher. As mulheres negras são ainda mais violentadas, entre 2003 e 2013, houve aumento de 54% no registro de mortes, passando de 1.864 para 2.875 nesse período. Muitas vezes, são os próprios familiares (50,3%) ou parceiros/ex-parceiros (33,2%) os que cometem os assassinatos;

– No Brasil, 4.606 mulheres foram vítimas de homicídio no ano de 2016, portanto, 12 mulheres foram assassinadas a cada duas horas. Mas, apenas 621 casos foram classificados como feminicídios, demonstrando as dificuldades no primeiro ano de implementação da lei do feminicídio, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2017);

– Em números absolutos, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2017), o Brasil teve 49 mil casos de estupro[1] em 2016, o que corresponde a uma taxa de 24,0 para cada grupo de 100 mil habitantes nesse ano.

– Em relação a violência doméstica e familiar contra a mulher o Relógio da Violência do Instituto Maria da Penha aponta que a cada 2 segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil.

A partir dos dados apresentados, cabe a seguinte indagação: “O que é violência contra a mulher?

Ao conceituar a violência contra a mulher enquanto uma violência baseada no gênero a Organização dos Estados Americanos (OEA) através da Convenção de Belém do Pará (1994) reconhece que há violências cometidas contra as mulheres apenas pelo fato de serem mulheres, que não se restringe à família, agregando outras situações, dentre as quais: o estupro por estranhos; os assédios sexuais no trabalho; o tráfico de mulheres a prostituição forçada; a “pornografia de vingança”[2]; e o “cyberbullying”[3] e, que são consequências de uma sociedade em que prevalece a desigualdade de gênero.

No Brasil, fruto da luta dos movimentos de mulheres e feministas, desde a década de 1980, tivemos no âmbito das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres algumas conquistas tanto no marco legislativo, quanto na esfera institucional.

No marco legislativo, a promulgação da Lei 11.340/2006 conhecida por “Lei Maria da Penha”, a mudança do Código Penal sobre o crime de estupro (2009) e a criação da Lei 13.104/2015 (Lei do Feminicídio) são marcos na proteção dos direitos da mulher e na coibição das situações de violência doméstica e familiar, do crime de estupro e dos homicídios de mulheres pelo fato de serem mulheres. No entanto, com e apesar desses avanços, ainda são muitos os desafios em âmbito municipal, estadual e nacional na efetividade das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres.

Na esfera institucional, dentre outras, a criação dos serviços especializados no atendimento à mulher em situação de violência, que atendem exclusivamente a mulheres e que possuem expertise no tema da violência contra as mulheres são exemplos dessa conquista, composta por: Centros de Atendimento à Mulher em situação de violência (Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos de Atendimento à Mulher em situação de Violência, Centros Integrados da Mulher), Casas Abrigo, Casas de Acolhimento Provisório (Casas-de-Passagem), Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Postos ou Seções da Polícia de Atendimento à Mulher), Núcleos da Mulher nas Defensorias Públicas,  Promotorias Especializadas, Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, Ouvidoria da Mulher, Serviços de Saúde voltados para o atendimento aos casos de violência sexual e doméstica, Posto de Atendimento Humanizado nos aeroportos (tráfico de pessoas) e Núcleo de Atendimento à Mulher nos serviços de apoio ao migrante.

No entanto, esses avanços no que tange o atendimento qualificado e humanizado as mulheres em situação de violência, são insuficientes em quantidade e em qualidade. Para tanto, iremos apresentar alguns desafios que necessitam ser enfrentados pela sociedade civil, pelos governos, pelo legislativo e pelo poder judiciário em todos os níveis da federação (municipal, estadual e federal).

Um desafio é produção de dados oficiais[4], qualitativos e quantitativos, sobre a violência contra a mulher no Brasil. A necessidade da realização de pesquisas, bem como o monitoramento e avaliação da efetividade dessas políticas públicas são fundamentais para a construção de estratégias de enfrentamento da violência contra a mulher nas diversas instâncias (delegacias, judiciário, defensoria pública, Ministério Público e instituições de atendimento nas diversas áreas da política social).

A criação dos serviços especializados em si não são garantias efetivas no atendimento as mulheres em situação de violência, pois fatores culturais, políticos e os escassos recursos econômicos e humanos, influenciam o desenvolvimento das ações de proteção e repressão à violência contra a mulher.

Uma vez ocorrida a violência contra a mulher, essa mulher nem sempre procura a Deam e outras demoram meses ou anos para formalizarem a denúncia, devido a vários fatores, dentre eles: as patologias que desenvolvem em detrimento da violência sofrida; o vínculo afetivo; a dependência econômica de seu parceiro íntimo; a vergonha; o medo; a ausência de apoio por parte de familiares; e, as incertezas diante de seu destino.

As mulheres que conseguem fazer a denúncia na delegacia, no entanto, deparam com uma série de dificuldades, como a comprovação da violência, que em se tratando da violência física fica mais evidente, mas quando diz respeito a violência psicológica, acaba sendo negligenciada, apesar de sabermos que a violência física geralmente é acompanhada de violência psicológica ou na maioria dos casos, esta cria as condições para que a outra aconteça. Além disso, a falta de profissionais capacitados/as tanto nas delegacias especializadas, quanto nas distritais, acabam tornando-se entraves no acesso da mulher à justiça.

A atual crise econômica vem acelerando o desmonte das políticas públicas de caráter social, que preconizado pelo neoliberalismo, enfatiza a desresponsabilização do Estado e sua intervenção mínima no social. Desta forma o fortalecimento dos serviços especializados no atendimento as mulheres em situação de violência em quantidade e qualidade, está na contramão desta tendência atual de sucateamento e precarização das políticas públicas.

Diante desse contexto, é imperativo que os movimentos de mulheres e feministas, os movimentos sociais, as CEBs, as pastorais sociais da Igreja Católica, as religiões como um todo, de forma continua e permanente, estabeleçam estratégias de mobilização; de articulação; de denúncia; de monitoramento; e, de controle social das políticas públicas de enfrentamento à mulher em situação de violência no âmbito federal, estadual e municipal assim como a priorização das políticas que promovam a transversalidade de gênero e o enfrentamento à violência contra a mulher enquanto a expressão mais dramática da desigualdade de gênero na sociedade brasileira.

 

Luciene Medeiros

Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social do Departamento de Serviço Social da PUC/Rio. Professora do Departamento de Serviço Social da PUC/Rio, onde leciona no curso de graduação; coordena e leciona nos cursos de Pós-graduação Lato Sensu (Especialização) em “Políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher”; e, “Atendimento à criança e adolescente vítima de violência doméstica”. É autora do livro “Em briga de marido e mulher o Estado deve meter a colher: políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica”. Coordenou a Revista O Social em Questão “Gênero, Feminismos, Políticas Públicas e Interseccionalidades”. Participa do Fórum Municipal dos Direitos da Mulher e do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Duque de Caxias. Tem experiência na área de Serviço Social e História com ênfase em estudos sobre gênero, feminismo, movimentos de mulheres, políticas públicas de gênero e violência contra a mulher.

 

[1] Com a mudança do Código Penal Brasileiro em 2009, o crime de estupro passou a incluir além da conjunção carnal, o ato libidinoso e o atentado violento ao pudor. Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça, definiu que o estupro e o atentado violento ao pudor constituem crimes hediondos mesmo sem causar lesão corporal grave ou morte da vítima.

[2] A “pornografia de vingança” pode ser definida como o compartilhamento de vídeos e fotos íntimos pela internet sem a autorização dos/as envolvidos/as com a intenção de causar humilhação da vítima.

[3] O cyberbullying diz respeito ao uso de ferramentas do espaço virtual, como as redes sociais e os celulares, para difundir comentários depreciativos.

[4] Podemos citar os dados produzidos pelo Mapa da Violência 2015- Homicídios de mulheres no Brasil, elaborado por Julio Jacob Waiselfisz – que passou a partir dos anos de 2012 a produzir um relatório focado especificamente em uma abordagem de gênero – e pelo Dossiê Mulher produzido pelo Instituto de Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro.

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