Artigos e EntrevistasSínodo para a Amazônia 2019

“Com os povos indígenas aprendi a ser uma Igreja não apenas mestra, mas discípula e aprendiz” Entrevista com Romy Gallegos
Por Luis Miguel Modino

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Uma Igreja discípula, aprendiz, que escuta, mas não porque o Papa Francisco está nos pedindo agora, mas porque isso ajuda a tornar novos caminhos realidade, a fazer carne o Evangelho, a assumir compromissos, especialmente na Amazônia. Não é uma escuta instrumental, uma escuta para continuar agindo da mesma maneira. A partir dessas suposições, pode ser mais fácil trazer de volta ao território tudo o que foi vivido até agora no processo sinodal.

Quem nos conta tudo isso é Romy Gallegos, que faz parte da equipe do Secretariado da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM. Em seu trabalho, nos últimos anos, ela descobriu que “a Igreja no território tem o papel principal e são eles que podem gerar as reais mudanças que o Papa Francisco sonha e que a própria realidade exige”. Isso é essencial, pois ela própria reconhece a necessidade de “estar atentos aos novos tipos de colonização dos povos”, um aviso que o Papa Francisco faz em Querida Amazônia, no início do sonho social.

Uma atitude fundamental é apoiar o que já está sendo feito, o que é muito, independentemente de isso ter sido incluído nos documentos que surgiram ao longo do processo do sínodo. Romy Gallegos afirma que “como Igreja, temos muita história, um longo caminho percorrido, um longo processo e muitas luzes e sombras”. A partir daí, ela insiste muito em promover os processos de formação, “especialmente ligando as questões de inculturação, ecologia integral, diálogo intercultural e liderança feminina”.

Tudo o que recolhe esta entrevista é algo que Romy Gallegos lhe permite sonhar, “com uma Igreja coerente”, para tornar carne o que ela diz e escreve, com uma Igreja que age imediatamente diante de necessidades, “que não espera ter um documento para transformar…, com uma Igreja que sente e escute”, uma Igreja que não impõe o que os outros deveriam ser, mas “constrói o que ela pode ser primeiro e depois dialoga com os outros”. Ela também sonha “com uma Igreja sempre pronta para a mudança …, que leva a sério a questão da alienação de grandes empresas extrativas …, que não tem medo de mudar sua estrutura e instituição, que escute Cristo Encarnado e deixe-se levar por ele e, portanto, seja um modelo e uma forma da Igreja do Povo de Deus ”.

Com a publicação de Querida Amazônia, o processo pós-sínodo foi promovido, o que muitas pessoas concordam que é o momento em que tudo o que tem sido refletido durante o processo do sínodo vai ser colocado em jogo. Qual a importância que o território e os povos do território podem ter nesse processo pós-sínodo?

Nesse novo momento, depois de toda a alegria, toda a empolgação, toda a geração de tantas expectativas, é hora de encarnar, trabalhar, assumir compromissos e bons desejos, para que realmente se transformem em ações e somente do papel principal do território isso pode se tornar realidade.

Acredito que os territórios têm, ou deveriam ter, a maior responsabilidade de dar vida ao sonho que o Sínodo suscitou. Agora é a hora de voltar ao que as pessoas disseram, sonharam, pediram durante o processo de consulta, mas também para retomar o que tem sido o sonho de tantos anos sobre o modelo da Igreja na América Latina, e especialmente na Amazônia. Devemos pegar todo o positivo e o bem que ele nos deixou, tanto o Documento Final da Assembléia como a Exortação, mas, acima de tudo, retornar a tudo o que o povo propôs e que pode não ser literal ou diretamente incluído na Exortação ou nos documentos, mas isso é uma aposta e um sonho das pessoas nos territórios. A Igreja no território tem o papel principal e são eles que podem gerar as reais mudanças que o Papa Francisco sonha e que a própria realidade exige.

Na Querida Amazônia, especificamente no número 32, fala-se da grande variedade de povos como conseqüência do território em que vivem. Poderíamos dizer que, seguindo o que você acabou de dizer, independentemente de ter aparecido no Documento Final ou na Exortação, é hora de retomar, a partir do território, elementos que surgiram no processo de escuta?

Totalmente, acho que a maior tarefa do Sínodo foi dar-nos esperança de que a Igreja possa se sentar para escutar, que a Igreja não seja apenas o bispo, nem os sacerdotes, nem os missionários, mas que a Igreja seja todos nós, a Igreja é o Povo de Deus, o leigo, o povo vinculado, o crente, o povo que transforma a realidade dia a dia com seu testemunho, o povo que acredita em um Cristo Ressuscitado e encarnado em sua realidade. Penso que uma das maiores expressões de esperança que o Sínodo nos deu é que isso só pode se tornar realidade se realmente transformar esse sonho nas pessoas, nos povos, em todos e em cada um.

Nos permitimos sonhar, ousamos pensar que os sonhos podem ser possíveis, eles nos deram esperança de que é possível levantar todas essas questões, ser ousados e ousadas no que propomos. E agora nos é devolvido para que o sonho não permaneça um sonho, e que o que foi possibilitado e encorajado graças aos documentos, ao trabalho dos Bispos, auditores, especialistas e do próprio Papa Francisco, seja fortalecido. Devemos encontrar maneiras de continuar pressionando as propostas e urgências relativas a todas as culturas que vivem na Pan-Amazônia, às populações, às mulheres, aos povos indígenas, às culturas afro, às culturas ribeirinhas, à cultura urbana, etc. Por esse motivo, acredito firmemente que é o Povo de Deus que está dando o ritmo dessas mudanças e dessas apostas.

Muitos concordam que o Documento Final, e especialmente Querida Amazônia, são textos que abrem muitas possibilidades para o futuro. Como a Igreja e os povos que habitam o território poderiam tirar proveito dessas possibilidades?

Acredito que já existam uma história e processos, consolidados com os documentos do Sínodo e que nos permitam continuar com novos caminhos. Vejo com grande emoção e potencial toda a dimensão dos processos de formação. Penso que este é um caminho muito interessante, com muitas arestas e que os dois documentos nos incentivam a repensar os processos formativos, em todos os níveis, para todos os membros da Igreja e, acima de tudo, vincular as questões da inculturação, ecologia, diálogo intercultural abrangente e liderança feminina.

Temos que voltar para as pessoas envolvidas nos processos e que sonharam com isso também. Sinto que devemos ser muito encorajados a sentir como nossa voz e o sonho comum são encontrados nos documentos e, se não nos sentirmos reconhecidos, identificar como fortalecer os espaços de esperança e construção que temos em nossa jurisdição eclesiástica, para continuar possibilitando espaços. propor outros sonhos ou outras apostas / propostas também. A primeira parte é lembrar, é voltar ao que foi dito no começo. Há também a fonte de como as pessoas podem sentir que isso é seu e que não é imposto, que não vem de fora.

Porque também ouvimos em alguns espaços que talvez as pessoas não saibam ou não soubessem muito sobre o processo inicial de escuta. Portanto, ele não consegue reconhecer de onde isso vem, por que esses temas são propostos, ou por que essas coisas saem, ou por que outros temas estão faltando, etc. O grande poder que o processo sinodal nos deu é repensar a maneira como estamos sendo Igreja e essa tem sido a grande possibilidade de transformação. Já nos fazendo essa pergunta, em cada território, em cada pastoral, em cada diocese os prelazia, em cada espaço da Igreja, com as culturas, já se abre não apenas para levar em consideração os números e propostas do Documento Final e da Exortação Apostólica, ao contrário, exige que construamos planos pastorais que tornem realidade as propostas ditas por esses territórios e proponham os novos caminhos que se estabelecem em cada realidade.

Você fala de repensar nosso modo de ser Igreja, de escutar. No número 70 de Querida Amazônia, que seria um dos principais objetivos, porque o Papa sempre falava de uma Igreja com rosto amazônico e indígena, ele diz que a Igreja precisa escutar sua sabedoria ancestral e reconhecer a riqueza do estilo de vida das comunidades de povos originários. Por que a Igreja deve escutar os povos, mesmo neste momento, que já está aplicando as decisões do Sínodo, precisa continuar a conhecer, escutar e estar atenta à realidade em que deseja proclamar o Evangelho?

Porque, como Igreja, temos muita história, um longo caminho percorrido, muito progresso e muitas luzes e sombras. Se há algo repetido com grande força nos encontros de escuta sinodal, foram as dores e feridas que existem nos territórios, nos vários povos indígenas e não indígenas. Eu acho que algumas dessas feridas foram as que ocorreram durante a colonização, e elas não queriam ser de propósito, mas são dores que marcaram muito a história dos povos da Amazônia e envolvem diretamente a Igreja que estava chegando naquele momento, é uma história que deveria ser compensada.

Precisamos escutar com mais atenção e, em todos os casos que o justifiquem, continuarmos a pedir desculpas pelas sombras de nossa Igreja. O Papa Francisco fez isso em várias ocasiões, dando o exemplo de como devemos continuar fazendo isso. A REPAM, em muitas de suas reuniões de diálogo com os povos indígenas, também ofereceu esse pedido de desculpas, porque somente dessa maneira ela pode tentar propor novas maneiras de se relacionar. Em uma ocasião, uma liderança indígena nos disse que não basta pedir perdão, que a Igreja deve ir além, e essas foram palavras que penetraram profundamente para entender melhor essa complexa história.

A escuta envolve levar a sério o exercício de repensar o que somos e como somos. Porque não vamos escutar para continuar agindo da mesma forma, e é preciso ter cuidado para que a escuta não se torne instrumental. Precisamos de um espírito sincero que nos permita er e respeitar as culturas indígenas e não indígenas da Amazônia. O Papa Francisco fala muito claramente no início do sonho social: “atenção aos novos tipos de colonização dos povos”.

Poderíamos escutar os povos e não construir realmente novas formas de ação como Igreja, porque poderíamos nos transformar superficialmente e talvez não estivéssemos fazendo a verdadeira conversão necessária. Com respeito e cuidado, ouso dizer que essa conversão começa nos perguntando se o que estamos fazendo realmente responde às necessidades pelas quais os povos gritam e pelas quais estão perdendo suas vidas. Pessoalmente, sonho com a forma de melhorar essa resposta, para que esse processo sinodal que nasceu com os territórios e que agora lhes é devolvido não seja um exercício de nova colonização. Sonho com uma verdadeira conversão e transformação eclesial, que exige que repensemos como estamos nos permitindo ser tocados pela realidade que sangra e que nos pede para responder ao estilo de Jesus.

Durante todo esse tempo em que trabalhou no secretariado da REPAM, participou de muitos momentos de escuta e aprendizado sobre o que os povos vivem. O que isso lhe ensinou pessoalmente, especialmente para o futuro, e qual seria sua perspectiva para que possa ser assumido por mais pessoas?

Aprendi muito sobre os diferentes estilos, formas e particularidades de ser Igreja na Amazônia do Brasil, Colômbia, Peru e Equador, mas acho que aprendi muito no espaço de escuta dos povos indígenas de toda a Pan-Amazônia, realizados na comunidade Monilla Amena, em Leticia – Colômbia. Este espaço estava realmente no meio dos povos, escutando como eles falam, talvez sem a necessidade de traduzi-lo para nós, mas apenas estando presente. Esse espaço me fez sentir como somos pequenos, aprendi como é ser uma Igreja que não é apenas uma mestra, mas tornar-se uma Igreja discípula, uma Igreja aprendiz com eles. Este foi um dos maiores e mais representativos momentos do que significa ficar em silêncio e escutar. O mesmo aconteceu com o encontro das mulheres, a possibilidade de sentir as diversas formas e a diversidade das mulheres, dos territórios, das realidades e sentir com grande humildade e privilégio estar lá no meio, escutando e documentando qual é o voz e a vida da Pan-Amazônia.

Penso que é importante esclarecer que não existe uma única resposta e que a REPAM não tem a última palavra. Acredito sem dúvida que este momento na história do mundo, da humanidade e da Igreja exige que todos nos sentemos. Embora demoremos mais, é necessário falar, escutar e decidir juntos. Isso convoca a todos nós, àqueles que vivem na Pan-Amazônia e nas “outras florestas” que decidem o futuro deste território.

Por outro lado, os espaços de escuta me deram, em nível pessoal, a possibilidade de desenvolver uma nova maneira de escutar, separar o que podem ser expectativas pessoais e dispor o coração para sempre nos surpreendermos com o que os povos indígenas e outros culturas pan-amazônicas precisam nos dizer, e como sua palavra contribui para a própria vida. Em todos os espaços em que pude participar, senti muito fortemente como sua vida e sua luta inspiram a um nível de transformar apostas pessoais, pessoas concretas, realidades concretas, alimentando-me de maneiras que eu não conhecia, alimentando meu coração, minha consciência de luta e resistência, de construção coletiva e de esperança na experiência de uma Igreja encarnada em sua realidade e, acima de tudo, contribuíram para o sentido de missão da minha vida e trabalho.

Essa experiência também me permitiu reconhecer e ver como a gente é pequena demais para ver a magnitude da expressão do Deus vivo nessas realidades, do que Deus é para nós e que outros nomes podem ser para os outros povos e outras culturas, ou mesmo sem chamá-lo assim diretamente. Reconhecendo que o mistério da vida e da encarnação vai muito além, e sentindo mais uma com eles, sentindo-me em família, sentindo o que o povo Munduruku me ensinou, especialmente Arnaldo, Juarez e Daniela, a maneira como somos parentes, filhos e filhas do mesmo pai e mãe, embora tenham nomes e origens diferentes, mas estamos unidos pela mesma luta e unidos pelo mesmo território. Um mistério de se sentir parente na Pan-Amazônia.

Outra coisa que os povos nos mostram é a esperança. Fico extremamente surpresa que, após cada espaço de dor, violação de direitos, ameaças, criminalização, assassinato, morte e sangue, os povos tenham luz nos olhos, esperança e realmente acreditem que a Igreja pode mudar e tornar-se uma verdadeira aliada em suas lutas e ajudá-los. Eles têm uma confiança especial que acho que nem sempre temos ou que a perdemos mais facilmente. Eu acho que é uma das maneiras mais transformadoras de entender a vida.

Ainda existe muito da Panamazônia que ainda não temos como entender, porque talvez não se comece por entender com a cabeça, mas seja entendido com o coração. Em nível pessoal, sempre me senti muito emocionada e provocada em cada espaço, muito confrontada, muito desafiada, por reconhecer qual é meu papel no meio disso que é revelado e de tudo o que essa realidade exige. Um desafio que faz parte do serviço da rede, que é encurtar distâncias, servir de ponte e fortalecer a articulação nos territórios, a partir deles, com suas capacidades, sem forçar as coisas.

O Papa Francisco sonha, a Igreja sonha, mas você, pessoalmente, com o que sonha para o futuro da Amazônia e os povos que a habitam, especialmente para o futuro dos povos indígenas?

Sonho com uma Igreja coerente, que o que diz na fala, que o que escreve nos documentos realmente o faça carne. Sonho com uma Igreja que não espera ter um documento para se transformar, mas pode reconhecer na realidade que está sendo violada e nos irmãos e irmãs, os parentes que estão sendo violados, encontra maneiras de acompanhá-los imediatamente. Sonho com uma Igreja que se senta e escuta antes de julgar uma mulher, pelo que ela faz, pelo que ela para de fazer, pelo que deve dizer.

Sonho com uma Igreja que não pretende estabelecer esse dever para todos, mas constrói o que pode ser primeiro e depois dialoga com os outros. Sonho com uma Igreja que esteja sempre pronta para a mudança, que o que agora temos como garantido, se daqui a dez anos, não faz mais sentido, depois repensar, que não espera mais um Sínodo para reconhecer tudo o que pode fazer, para responder à realidade que grita, não esperemos anos para mudar o que agora requer repensar. Sonho com uma Igreja que leve a sério a questão da alienação de grandes empresas extrativas, para que isso nunca nos impeça de denunciar os abusos e violações que elas cometem. Sonho com uma Igreja que não tem medo de mudar sua estrutura e instituição, que ouve Cristo Encarnado e deixa-se levar por ele, e assim seja a Igreja Povo de Deus em modelo e forma.

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