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Conservadorismo religioso: um projeto em expansão?

Por Jorge Alexandre Alves

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Estamos entrando em uma era de obscurantismo no Brasil, com forte matriz religiosa cristã. Candidatos e grupos religiosos invadindo eventos e debates para denunciar o comunismo que estaria se infiltrando nos ambientes eclesiais, reuniões públicas para defender o anti-feminismo, a tentativa de se representar politicamente e o uso das mídias sociais para defender uma versão fundamentalista do catolicismo que procura desqualificar e intimidar pessoas e grupos de outras correntes ilustram parte desse obscurantismo.

As raízes desse fenômeno não são recentes. Em duas décadas assistimos a consolidação e a radicalização de grupos originalmente ligados ao pentecostalismo católico, por um lado; o crescimento de (inicialmente) grupos tradicionalistas-integristas por outro, com um deles conquistando muito espaço eclesial, com grande aporte financeiro; e a consolidação de outros grupos ultraconservadores de grande poder político e força econômica, estes últimos atuando desde meados do século XX, exercendo considerável influência dentro e fora da Igreja. Hoje temos a possibilidade muito concreta de termos um presidente da república ligado ao mais poderoso destes grupos.

Esse caldo de cultura esteve engrossando na vida eclesial através do apoio do Papa João Paulo II e depois por Bento XVI.  Mesmo com Francisco alguns desses grupos continuam ampliando espaços, ou já se tornaram tão fortes e organizados que não há indícios de que serão desmontados em semanas ou meses. Isso explica a descarada e ostensiva oposição que alguns desses grupos fazem ao atual Bispo de Roma, que tem buscado orientar a “Barca de Pedro” para outras direções.

Esses agentes eclesiais parecem fazer enorme barulho, desproporcional ao seu tamanho.  Porém, sua presença nas redes sociais tem milhares de seguidores, alguns de seus líderes falam para multidões, aparecem nos canais de TV e pregam retiros para seminaristas e clérigos nas mais importantes dioceses brasileiras.  Então, mesmo que consideremos alguns desses grupos pequenos, mas estridentes, fato é que tem alcançado e influenciado muita gente nos meios católicos.  Se durante os papados anteriores um “ethos” muito conservador se consolidou na vida de paróquias e comunidades em certas circunscrições eclesiásticas, hoje parece que esse fenômeno ganha escala nacional.

Em boa parte do tempo, católicos não fundamentalistas assistiram atônitos a expansão desse modelo eclesial. Perseguidos, tidos como hereges, afastados da vida pastoral, os mais progressistas não tiveram meios para resistir onde lhes faltavam estrutura pastoral e apoio de um bispo comprometido com as premissas do Concílio Vaticano II, de Medelín e de Puebla. Com o desaparecimento desses prelados mais engajados e a censura teológica imposta contra a Teologia da Libertação, os fundamentos dessa matriz teológica comprometida com a renovação eclesial passaram a ecoar cada vez menos de forma sistemática nas paróquias e dioceses brasileiras. Isso alterou drasticamente a formação dos candidatos ao sacerdócio e, em que pese os esforços em resistir a “volta à grande disciplina”, o campo progressista hoje se tornou minoritário no catolicismo brasileiro.

Importante levarmos em conta que esses grupos fundamentalistas não necessariamente morrem de amores uns pelos outros.  Contudo, fica cada vez mais explícito que eles possuem uma agenda mínima comum, aparentemente baseada naquilo que o Papa Ratzinger chamou de “princípios inegociáveis”, vinculados à moral católica.  Portanto, fica evidente que esses princípios são a espinha dorsal para um projeto de poder não apenas eclesial, mas também político.  Este tem o propósito de ressuscitar uma certa cristandade na qual todas as dimensões da vida social passavam pelo magistério papal e faziam da Igreja fonte legitimadora do exercício do poder temporal. Tais elementos se materializam nas liturgias cada vez mais formais e triunfalistas – cheias “de panos”, na insistência de certa parte do clero em ostentar seus símbolos de poder religioso (batinas e clergymans) a todo momento, e no apoio político a lideranças ultraconservadoras em matéria moral, ultraliberais em termos econômicos e, por vezes, protofascistas em termos políticos.

Para tanto não se furtam a estabelecer alianças de ocasião com outros segmentos religiosos que sempre buscaram travar uma guerra santa contra o catolicismo. A aliança ora tácita, ora explícita que aconteceu em 2016 no segundo turno das eleições cariocas constitui um exemplo deste argumento.  O beneficiário desta aliança foi uma liderança religiosa de uma denominação neopentecostal que, 20 anos atrás, teve uma de suas autoridades chutando a imagem de Nossa Senhora Aparecida em cadeia nacional de TV.

Jovens aderem ao véu para participarem das missas. Foto: Olhar de modéstia.com

Também parecem unidos na oposição à descriminalização do aborto, da união civil entre pessoas do mesmo sexo. São contrários ao feminismo e distorcem todo o debate acadêmico de gênero, reduzido na visão limitada deles à condição de ideologia.  Se opõem frontalmente à laicidade do Estado, são contrários aos direitos humanos (alegam ser sinônimo de defesa do aborto) e em geral demonizam as esquerdas em geral.  Neste caso, usam adjetivos ultrapassados, dos tempos da Guerra Fria. Por isso, tudo que lhes pareçam progressista vira imediatamente infiltração comunista, sejam nas igrejas ou na sociedade.

Vale dizer que no campo evangélico, tensões entre modelos eclesiais estão postas também. Há uma tentativa em curso de intimidação de pessoas e denominações mais identificadas com uma teologia progressista e com uma ação pastoral mais sintonizada à pauta dos direitos humanos. O fundamentalismo protestante não pode ser identificado com a totalidade das igrejas evangélicas. Ele é minoritário na maioria das denominações históricas, forte no pentecostalismo e poderoso no neopentecostalismo protestante.  Assim como no catolicismo, ele faz parte, mas não representa o todo.

Lideranças evangélicas como a Pastora luterana Lusmarina Campos (por sua intervenção no STF no debate sobre a descriminalização do aborto) e o Pastor batista Henrique Vieira (por seu engajamento partidário) são tão perseguidos internamente por ultraconservadores (no caso deles também por pessoas e grupos de outras igrejas protestantes) quanto são o Padre Júlio Lancellotti, o movimento IPDM (Igreja Povo de Deus em Movimento), a Pastoral da Juventude ou as CEB’s na Igreja Católica. Portanto, é equivocado confundir fundamentalismo com protestantismo. Trata-se de fenômeno mais enraizado dentro do cristianismo de uma forma geral do que pensa o senso comum.

Tais semelhanças no campo conservador tem estimulado os ditos “catolibãs” a imitar seus pares neopentecostais, lançando candidatos à cargos públicos, sobretudo para a atividade parlamentar.  Em suma, sua ação política cada vez mais parece refletir um certo “ecumenismo fundamentalista”, refletindo uma lógica segundo a qual se afirma que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Estariam apostando em novas estratégias para alcançar o poder? Suas atitudes refletiriam desespero face às mudanças eclesiais postas em curso e ao magistério social de Francisco? É necessário investigar.

A aliança desses dois segmentos é conjuntural.  Em algum momento ela se romperá e antigos antagonismos emergirão novamente. O fundamentalismo católico que hoje parece estar na moda teve sua expansão apoiada por parcela da hierarquia eclesial. Parcela das autoridades eclesiásticas acreditou que este modelo eclesial traria de volta à Igreja os fiéis que começaram a abandonar o catolicismo a partir do final dos anos oitenta do século XX.

Contudo, este objetivo fracassou retumbantemente. Seus esforços não estancaram o esvaziamento eclesial nas últimas décadas.  Ao contrário, é possível constatar estatisticamente que, nas regiões onde o plano neoconservador católico foi mais aplicado, mais ele perdeu fiéis. Ao que parece, esses grupos falam aos já convertidos.  Será que um projeto internamente fracassado conseguirá reconquistar uma nação cada vez mais secularizada e agnóstica nos setores médios urbanos e pentecostal nas periferias?  Numa possível luta contra o pentecostalismo evangélico que não para de crescer, serão bem-sucedidos?  Os próximos anos dirão.

Jorge Alexandre Alves – Sociólogo católico, professor do IFRJ, participante do movimento fé e política e colaborador voluntário do ISER-Assessoria.

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