ColunistasJoaquim Jocélio

Deus orienta seu povo no caminho da libertação

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Seguimos nossa Introdução à bíblia falando hoje do primeiro bloco de livros. Como vimos, a nossa divisão do Antigo Testamento é diferente da divisão hebraica; não só pela quantidade de livros, mas também pelos blocos onde eles se encaixam. Os judeus dividem a Escritura, que para eles equivale ao nosso AT, em Lei, Profetas e Escritos. Nós a dividimos em Pentateuco, Livros Históricos, Livros Sapienciais e Livros Proféticos. Hoje conversaremos sobre o Pentateuco.

Ele corresponde aos cinco primeiros livros da bíblia, considerados por muito tempo os 5 livros escritos por Moisés, hoje sabemos que não foi Moisés quem os escreveu. Esse bloco tem a mesma quantidade e ordem dos livros tanto na bíblia hebraica dos judeus quanto na bíblia católica. Chamamos esse bloco de Pentateuco em referência aos cinco estojos onde se guardavam os rolos de cada livro. Mas os judeus chamavam de Torá, ou seja, instrução; que foi traduzido para o grego como Lei. Ele reúne códigos de Leis de diferentes períodos, narrativas, genealogias, recenseamentos, cânticos, orientações diversas. O Pentateuco, segundo alguns estudiosos, tem uma estrutura quiástica, ou seja, no começo e no fim tem temas semelhantes e no meio o tema mais importante. No caso, o meio seria o livro do Levítico e no centro dele o capítulo 17 tratando o Dia do Perdão. Seria, assim, o perdão, a misericórdia de Deus o coração da Torá (Lei/Instrução).

A formação desse bloco de livros durou séculos. Desde o final do século 19 d.C., a teoria mais bem aceita, ainda que com modificações, era a hipótese documentária. Ela foi melhor desenvolvida pelo alemão Wellhausen e defendia que o Pentateuco foi formado a partir de quatro fontes principais: Javista (J), Eloísta (E), Deuteronomista (D) e Sacerdotal (P). A fonte Javista usava o nome Javé para se referir a Deus e teria sido escrita na época de Salomão no séc. 10º a.C. no Reino do Sul (Judá); a Eloísta usava o nome Elohim para se referir a Deus e teria sido escrita no século 9º e 8º a.C. no reino do Norte (Israel). Gênesis e Êxodo teriam tomado muito dessa fonte. A fonte Deuteronomista teria sido escrita no reinado de Josias no Sul no séc. 7º a.C. e seria basicamente o Deuteronômio. A fonte Sacerdotal teria sido escrita no Exílio da Babilônia e, principalmente, depois dele no séc. 6º a.C. e corresponderia em boa medida ao Levítico.

Hoje, essa hipótese não é mais aceita. Pode-se falar em tradições que influenciaram o Pentateuco, mas não documentos completos já escritos como a teoria anterior defendia. Houve sim uma forte tradição deuteronomista e sacerdotal; uma tradição, não um escrito. O pentateuco foi possivelmente concluído e fechado no início do século 4º a.C. por alguma escola de sacerdotes e escribas de Jerusalém. Mas é bom recordar que os cinco livros que o formam foram escritos independentemente uns dos outros em épocas bem diversas; depois unidos nesse bloco. Alguns recolhem histórias de quase mil anos antes de sua escrita, como as narrações dos patriarcas. Outros recolhem leis do início da formação do povo de Israel. Tudo isso sendo aprimorado e reelaborado ao longo dos séculos até sua redação final.

Os nomes dos cinco livros em português vêm da tradução grega dos mesmos, ou seja, da bíblia chamada Septuaginta (LXX). No grego, os nomes têm a ver com o conteúdo do livro. Mas na língua original em que foram escritos, isto é, no hebraico, eles recebem o nome das palavras iniciais do livro. Gênesis (gr. génésis = “origem”; heb.  bereshît = “no começo”); Êxodo (gr. exodos = “saída”; heb. shemôt = “nomes”); Levítico (gr. lévitikon = levítico; heb. wayyiqerá = “ele chamou”); Números (gr. arithmoi = “números”; heb. bemidebar = “no deserto”); Deuteronômio (gr. deutéronomion = “segunda lei”; heb. debarîm = “palavras”).

As narrativas e leis do Pentateuco servem para orientar o povo no caminho da libertação. Deus fez aliança com um povo fraco e pequeno e o fez forte. O tirou da escravidão para que ele seja livre e viva a fraternidade. É verdade que muitas narrações e até leis estão carregadas com um tom de violência. Mas é preciso lembrar que a bíblia é “Palavra de Deus em linguagem humana”, ou seja, temos que entender e perceber a visão da época dos autores e suas limitações. Contudo, existem histórias e leis fantásticas que mostram a parcialidade fundamental de Deus pelos pobres e como é preciso viver sua vontade na justiça e igualdade para ser feliz. Por exemplo, a história da escrava Agar em Gênesis 16: “Deus, portanto, escuta também as orações mudas de mulheres, escravas e estrangeiras. Agar não precisou exprimir a sua aflição. A aflição era em si mesma um grito para Deus” (J-L. Ska). 

As leis, nesse sentido, são abundantes: “Não maltrate a viúva nem o órfão” (Ex 22,21). “Você, durante seis anos, semeará a terra e fará a colheita. No sétimo ano, porém, deixe a terra em descanso e não a cultive, para que os necessitados do povo encontrem o que comer…” (Ex 23,10-11). “Se você encontrar, extraviados, o boi ou jumento do seu adversário, leve-os ao dono. Se você encontrar o jumento do seu adversário caído debaixo da carga, não se desvie, mas ajude a erguê-lo” (Ex 23,4-5). Aqui percebemos a força da fraternidade: “a lei ensina que a solidariedade há de ser mais forte que o eventual desejo de vingança” (J-L. Ska). Havia também a preocupação em evitar o acúmulo de terra, pois havia a compreensão que o único dono da mesma era Deus: “A terra não poderá ser vendida para sempre, porque a terra me pertence, e vocês são para mim imigrantes e hóspedes” (Lv 25,23). 

Até os escravos tinham direitos e participavam das celebrações e festas litúrgicas que eram expressão da verdadeira fraternidade em Israel: “E você fará uma festa diante de Javé seu Deus – junto com seu filho e sua filha, seu escravo e sua escrava, com o levita que vive em sua cidade e o imigrante, o órfão e a viúva que vivem em seu meio” (Dt 16,11). Isso porque o “escravo e escrava não são pessoas sem importância. São ‘irmãos’ ou ‘irmãs’ (‘seu irmão’, Dt 15,12). O código deuteronômico insiste na fraternidade e na solidariedade que devem unir todos os membros do povo de Israel” (J-L. Ska). 

Que possamos seguir estudando o Pentateuco como essa grande instrução de Deus para vivermos a libertação e a fraternidade, construindo um mundo mais justo e solidário. Que possamos ser cada dia mais comprometidos com o Deus que vê a miséria do povo, ouve os gritos dos oprimidos e nos envia para com Ele libertá-los (Cf. Ex 3,7-10).

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