Juventude e religião: o que há de novo?

O artigo foi publicado no site da revista Senso em 16 de outubro de 2017. https://revistasenso.com.br/2017/10/16/juventude-e-religiao-o-que-ha-de-novo/

Ao falar de juventude podemos observar com mais clareza mudanças mais amplas da sociedade, por isto mesmo são os/as jovens que nos permitem visualizar o que vem se modificando no interior movimentado campo religioso brasileiro. Sua “vida religiosa” e “seus pertencimentos” só podem ser compreendidos se levarmos em conta características da sociedade contemporânea em suas inter-relações  entre territórios e redes.

Em um passado, não muito distante, nosso campo religioso era marcado pela hegemonia católica reconhecida pela cultura, legitimada pelo Estado, evidenciada na conformação do território e pelo calendário oficial. “Ser católico” era natural. Por isto mesmo, em as estratégias de apresentação social uma parte significativa dos brasileiros/as omitiam (e/ou secundarizavam) suas ligações com as religiões de matriz africana e/ou com o espiritismo kardecista. Por outro lado, os protestantes históricos ou de migração eram sempre vistos “minorias”, pois quase não ultrapassavam um crescimento vegetativo.

Contudo, mesmo administrando uma convivência subordinada com as religiões de matriz afro-brasileiras e mediúnicas, com o passar do tempo, sobretudo na segunda metade do século XX, o catolicismo não logrou evitar as rupturas: as conversões às denominações evangélicas pentecostais cresceram e introduziram a concorrência explicita no campo religioso.

Assim, neste século XXI, diferentemente do que ocorria quando seus avós e pais que viviam em territórios marcados pela centralidade da Igreja Católica (frequentemente instalada na Praça principal e nos lugares mais altos), os jovens de hoje convivem com uma proliferação de Igrejas. O catolicismo ainda é a religião da maioria, mas perdeu espaço e influência que justificavam ocultações e definiam estratégias de apresentação social.

Os dados oficiais dos Censos do IBGE expressam estas mudanças. A diminuição da transferência geracional do catolicismo já estava evidente no Censo de 1991 e se confirmou em 2010. Além disto, este último Censo também trouxe outras informações que estão a exigir mais conhecimento e reflexão sobre as vida religiosa dos jovens.

Neste pequeno artigo vamos destacar duas destas “surpresas” que — a meu ver  — estão relacionadas com as experiências e a novas subjetividades juvenis. São elas: 1) o aumento significativo (com 9,2 milhões de respondentes) de “evangélicos não determinados” e 2) o crescimento dos “sem religião” que subiu de 7,4% para 8,0% (14,5 milhões de respondentes) remetendo ao universo urbano, jovem e masculino.

Comecemos pelos “evangélicos não determinados”. Segundo o Censo de 2010, os evangélicos somam 22% da população assim distribuídos: 4% de evangélicos de missão/históricos, 13,3% de evangélicos pentecostais e 8% os “evangélicos não determinados”.

As explicações para a existência destes “evangélicos não determinados” podem remeter a vários fatores, tais como: a flutuação dos fiéis, a adesão comunitária mais frouxa de Igrejas classificadas como neo-pentecostais, a existência de frequentadores esporádicos que buscam os templos apenas em momentos de aflição ou mesmo a rotatividade de fiéis que circulam entre denominações e igrejas.

Mas, quando falamos em “jovens evangélicos não determinados” é importante atentar para o que se passa nas redes de internet e nos canais do youtube; para os eventos que ocupam avenidas e praças públicas em diferentes cidades; para a indústria fonográfica de música gospel; para grupos de hip hop gospel, entre outros.

Sem dúvida, entre os jovens se expressam com mais nitidez mudanças na lógica de “pertencimento evangélico”. Duas ou três décadas atrás “ser evangélico” no Brasil era traduzido, sobretudo, por alta frequência nos templos e assiduidade às atividades religiosas. Hoje, novas vinculações implicam em convivências e televivências; em combinações entre a realidade contigua e a web- realidade. Hoje, para atual geração juvenil, há também outras formas de “fazer parte”: pode-se “baixar” cultos e louvores a qualquer hora do dia ou da noite. Tudo isto não é sem consequências para os pressupostos do pertencimento denominacional.

Imagem: Janderson Araujo

Além de levar em conta as intercessões entre o presencial e o virtual, tratando-se de jovens criados por mães e/ou pais evangélicos é preciso também refletir sobre o lugar que as Igrejas evangélicas ocupam na sociabilidade de jovens que vivem em territórios marcados pela ausência de poderes/serviços públicos e pela violência do tráfico de drogas e das polícias. Nestas Igrejas, jovens das favelas e periferias encontram um lugar de agregação social e uma rede de proteção. Ali encontram espaços de lazer, aprendem a cantar, participam de ações sociais na comunidade. Muitos deles ficam por ali apenas temporariamente, até pegar seu rumo próprio. Ao redefinir suas trajetórias de vida e seu percurso religioso, possivelmente, parte deles se tornam “evangélicos não determinado” e outros tantos dirão “tenho fé mas não tenho uma religião”.

Analisando os resultados do Censo, a antropóloga Clara Mafra (2012) chama também a atenção o fato da maioria dos jovens “sem religião” ter baixa escolaridade, estar na base da pirâmide e se auto- classificar como pardos. A autora lembra que jovens das periferias, criados aos cuidados de uma mulher evangélica, aprenderam com suas mães/avós/tias que “ter religião” é sinônimo de “frequentar uma igreja”. Assim sendo, por não estarem frequentando uma igreja naquele momento, ao serem indagados, responderiam “não tenho uma religião”.

Para além desta possibilidade, no conjunto, parecem ser bem mais diversificadas as trajetórias dos jovens que se declararam “sem religião” no Censo de 2010. Em comum estes jovens não negam ter fé e, por isto mesmo, não se enquadram alternativas agnósticos ou ateus. O que, então, haveria em comum entre eles?

À primeira vista destaca-se a negação do pertencimento institucional.  Desconversão, desfiliação, desafeição são palavras que têm sido usadas para traduzir críticas e decepções com as religiões de origem. Isto tem acontecido. Porém, há outros aspectos a considerar.

Em trabalho anterior (Novaes, 2004), sugeri que declarar-se “sem religião” pode significar: a) um ponto de partida para se descolar das religiões de família. Por esta via, se configuraria um cenário para “interagir” – sem vigilância das famílias e autoridades – com pessoas de outras religiões; b) um interregno entre distintos pertencimentos. Seria um “estado” que também abre espaço potencial para (re)iniciar adesões institucionais; c) e, por fim, poderia ser um ponto de chegada a uma síntese própria/pessoal por meio da combinação entre rituais e crenças de diferentes tradições religiosas, inclusive orientais, islâmicas ou esotéricas.

Ou seja, para os jovens de hoje existe um significativo conjunto de percursos e arranjos religiosos socialmente possíveis. Contudo, e por fim, cabe indagar: como relacionar estas possibilidades com (velhos e novos) conservadorismos ou com engajamentos políticos socialmente definidos como progressistas? O mundo mudou muito, mas os interesses materiais e as disputas de valores ainda movem a sociedade e estão presentes no campo religioso.

Certamente, não há como negar: crenças e religiões oferecem orientações morais que funcionam como espaços de (re)produção hierarquias e de discriminações. Nestes espaços religiosos, assim como na sociedade, há jovens que aderem, enfatizam e proclamam valores que se contrapõem à valorização da diversidade.

Mas, por outro lado, isto não significa dizer que para todos os jovens as religiões deixaram de ser espaço para engajamentos político-sociais religiosamente motivados.  Quem prestar a atenção verá como se posicionam as Pastorais da Juventude da Igreja Católica (PJs); a Rede Ecumênica de Juventude (REJU); a Rede FALE; as várias Igrejas evangélicas Inclusivas que reúnem jovens LGBT; os jovens dos Povos dos Terreiros, certos grupos de jovens espíritas, bem como outros tantos grupos juvenis ecológicos e culturais. Quem entrar no youtube também poderá ouvir jovens católicos, evangélicos e do candomblé valorizando a diversidade e condenando preconceitos que produzem sofrimento e exclusão.

Enfim, não são tão poucos os jovens que têm encontrado caminhos para relacionar questões de fé com as urgências de justiça e da solidariedade. Importante torná-los mais visíveis e (re)conhecidos.

BIBLIOGRAFIA:

MAFRA, Clara. 2012. O percurso que faz o gênero. Religião e Sociedade 32 (2).

NOVAES, Regina. Os jovens ‘sem religião’: ventos secularizantes, ‘espírito de época’ e novos sincretismos. Notas preliminares. Revista Estudos Avançados, v.18, nº 52, 2004, p 321-330.

Regina Novaes é Antropóloga, fez mestrado na UFRJ e doutorado na USP. Tem feito pesquisa e assessoria junto a órgãos governamentais, entidades internacionais e ONGs voltadas para políticas públicas de juventude. Como pesquisadora do CNPq desenvolve trabalhos com o tema juventude, religião e política.

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