Por Rudá Ricci
Há poucos dias, Frei Betto escreveu um artigo intitulado “Cabelos brancos” em que citava, quase em tom de alerta, um encontro nacional de Fé e Política realizado em BH em que apenas 30% tinham cabelos escuros. O restante, perto das faixas de idade dele (perto dos 80 anos) e da minha (acima de 60).
O artigo assume a função de para-raio e sintetiza o que tantos engajados de minha geração vêm se queixando: envelhecemos, o que parece normal, mas, conosco, envelheceu o engajamento pela mudança social, pela justiça social, pela ousadia política, pela solidariedade. Viceja pela sociedade o hiperindividualismo, a projeção do sucesso individual e certo desencanto com a aventura humana.
Resolvi comentar o artigo não para fazer coro ao seu conceito, mas para problematizá-lo.
O primeiro obstáculo que gostaria de saltar é sobre as novas gerações. Vou destacar dois aspectos, dentre tantos. Não se trata de juventude, mas de juventudes, no plural. São tribos, coletivos e comunidades virtuais que professam de tudo, até mesmo os hikikomoris japoneses que não saem de seu quarto e se fecham em grutas urbanas. Temos os identitários que, não sabem, mas professam individualismos e conservadorismos porque, a despeito da agressividade na defesa de seu direito de fala e existência, não se projetam em discursos solidários, não falam sobre o mundo, sobre política econômica, sobre muitos outros assuntos que não sejam de seu interesse grupal exclusivo.
Podemos pinçar, dentre tantas juventudes, a Geração Z, tão comentada atualmente. Ela pode ser a lâmina a ser examinada no nosso microscópio. Esta geração nasceu a partir de 1995 e se forjou a partir das redes sociais e múltiplos aplicativos, de maneira que possuem uma vida dupla, entre o mundo concreto, offline, e o mundo virtual, online. Alguns autores sugerem que não possuem uma visão sequencial do tempo, mas tempos sobrepostos. São pragmáticos e práticos, tolerantes em relação às diferentes formas de viver e se apresentar, ativistas de coletivos e causas gerais, avessos a rótulos, adeptos da acessibilidade e simplicidade. O estranho para minha geração é que esta fica alheia ao ambiente e às relações interpessoais de primeira hora, se fechando no teclado do celular por horas. Aqui aparece uma dissonância cognitiva, entre o que pensa e projeto e o que realmente faz. Projeta um mundo melhor e participação em pautas de lutas por direitos – incluindo os dos animais -, mas vive fechado no mundo das comunidades virtuais. Uma maneira de socialização profundamente distinta das de Frei Betto e da minha.
Há, ainda, a derivação desta geração para a altamente sexualizada, como a dos funkeiros: coloridos, exuberantes, agressivas e quase debochadas, que operam nas redes sociais e se expressam pela música, sensualizando e se apresentando por inteiro, nas confusões e insuficiências. Esta é a geração de Anitta, uma das personalidades mais ousadas e inventivas desta subcultura juvenil.
Em meio a esta explosão de juventudes peculiares, emerge a dos jovens conservadores e reacionários. Não tão conservadores, mas que são vistos pela minha geração como tal. Comecemos pelos jovens aparentemente conservadores. A revista evangélica americana Relevant divulgou uma reportagem apontando que muitos evangélicos solteiros mantêm relações sexuais antes do casamento com a mesma frequência que os jovens não-cristãos: 80% dos solteiros evangélicos entre 18 e 29 anos afirmaram que já tiveram relações sexuais, quase o mesmo percentual que os 88% de solteiros adultos não evangélicos. Há igrejas e vertentes evangélicas que envolvem jovens com comportamentos e vestimentas pouco conservadoras.
No caso dos jovens reacionários, o cenário é ainda mais dissonante. Não apresentam, evidentemente, semblantes pacatos e recatados. Gritam, estrebucham, e agridem beirando o sadismo, como fazem os jovens do MBL. Mas, há casos ainda mais instigantes, como os de Carluxo e Nikolas Ferreira. Sabemos de suas aventuras sexuais até mesmo retratados em fotos. O olhar dos dois tem algo provocador e sexualizado. Parecem professar o não binário, tons não muito definidos de sua vida íntima, algo de misterioso e histriônico. Se falam algo que tateie o ideário conservador, seu semblante e sua história apontam para outra direção. Carluxo, nas redes sociais, estimulava o mistério. No primeiro Carnaval brasileiro sob o domínio do governo Jair Bolsonaro, ocorreu a postagem nas redes sociais, atribuída à Carluxo, de um vídeo exibindo um Golden Shower. Adota uma postura “goy”, homens que não se identificam com a homossexualidade e a bissexualidade, mas que também não se identificam com a heterossexualidade.
Este lusco-fusco e alta pluralidade de ideários e comportamentos jovens confundem as gerações mais velhas e não se alinham com padrões pré-estabelecidos.
Aliás, o que dizer dos mais velhos? Novamente, o plural para nos descrever. Se temos idosos progressistas, subproduto da revolução sexual e cubana, temos os idosos destroçados pelo tédio, pregados em seus porta-comprimidos ou à espera de alguma aventura tresloucada como a de 8 de janeiro.
Mas, para não fazer novo périplo à pluralidade de uma geração, vou destacar a dos progressistas. E, aqui, destaco um ícone quando jovem: Zé Dirceu.
Zé foi um líder dos estudantes universitários. Até hoje, desperta suspiros de mulheres que vivenciaram aqueles dias de passeatas e palavras de ordem em praças públicas e avenidas. Cabelos compridos, alto, discursos explosivos e seguros, transpirava um “sex appeal” que causava invejas e ressentimentos.
Pois bem, nos últimos meses, Zé Dirceu assumiu o papel de cavaleiro do anti-clímax. Repreendeu publicamente o diretório nacional de seu partido e Gleisi Hoffman por terem criticado a política econômica do governo federal. Exigiu que se alinhassem ao governo e apoiassem o ministro Haddad sob pena de …. não ficou muito claro o que a rebeldia petista poderia provocar de estrago. Ora, esta fala de Zé Dirceu é exatamente o inverso do que o PT propunha quando foi criado. A palavra central do petismo era autonomia. Autonomia dos movimentos sociais frente aos comandos políticos centrais, autonomia dos filiados frente às deliberações dos parlamentares do próprio partido, autonomia para viver. Autonomia é palavra central do método Paulo Freire que sugere que temos que assumir nossos atos com consciência. No caso, a consciência é uma leitura de nossa função e papel num coletivo ou num projeto. Não é liberdade individual absoluta, mas minha visão do que devo ser no todo, sem me subordinar. Foram tantos petistas que trataram disso nas origens do PT, de Eder Sader à Marilena Chauí.
A fala de Zé Dirceu se choca e demole este ideário libertário do petismo original.
Numa fala subsequente, disse que a conjuntura atual impõe um governo lulista de centro-direita. Pouco importa se tentou corrigir o que disse. O fato é que sua fala é coerente com sua fase anti-clímax, mais próximo do chá de camomila que de ingredientes excitantes. Se o PT, quando criado, seguisse este ideário radical do pragmatismo, não teria futuro. O petismo empurrou a correlação de forças durante duas décadas. Ousou ousar e a destilar autonomias. E venceu.
Zé Dirceu retoma as teses do Partidão das décadas de 1950 e 1960, do etapismo e alianças preferenciais com a burguesia. Houve resistências de lideranças regionais e da base comunista que organizaram greves e estruturas descentralizadas. Mas o enfrentamento com as direções centrais foi constante.
Enfim, o que sugiro é que Zé Dirceu está sendo um nítido representante das cabeças brancas citadas no artigo de Frei Betto: recuadas, castradoras, envelhecidas, com lampejos da energia e frescor de tempos atrás, mas que sugerem a passividade e o conformismo.
É fato que, como há juventudes, há idosos distintos e é justamente essa pluralidade que faz o mundo girar. Nem sempre conseguem se expressar e convencer rapidamente. Mas, estão lá. A vida está na ousadia, não no conformismo. O artigo de Frei Betto, afinal, propõe a vida.