ColunistasJoaquim Jocélio

O Deus Libertador acompanha seu povo na história

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Continuamos nosso itinerário de estudo bíblico com esta pequena introdução à Escritura. Neste texto, falaremos de um conjunto de livros que compõe em nossa bíblia católica o bloco dos Livros Históricos. São 16 livros que englobam diferentes literaturas, algumas que são consideradas proféticas para os judeus – os profetas anteriores (Js; Jz; 1-2Sm; 1-2Rs) – outras que são parte dos Escritos (Rt, Est, Esd, Ne,1-2Cr) e outras nem aparecem nas Escrituras judaicas (Tb, Jd, 1-2Mc). Portanto, o processo de formação desses livros é bem extenso e complexo. Neste bloco, dois grupos de livros se destacam; a chamada historiografia deuteronomista e a historiografia cronista. Como para nós a bíblia é mais que um livro antigo interessante, antes de tudo, é Palavra de Deus que nos interpela hoje; mais que informações sobre os livros históricos, queremos perceber a mensagem de Deus para nós. Por isso, é bom ter claro desde o começo que a compreensão do povo de Israel presente nestes livros “parte do pressuposto de que o transcurso da história toda tem de ser crido como sendo uma única grande ação de Deus… Dessa maneira, a teologia da história vem a ser, em Israel, uma forma de resistência contra tudo o que contradiz a história como ato de libertação de Javé” (E. Zenger).

Tendo compreendido esse ponto, precisamos conhecer a chamada historiografia deuteronomista. Ela é entendida a partir da teoria desenvolvida no séc. XX por M. Noth. Originalmente se acreditava que um só autor tivesse escrito toda a obra (composta pelos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis). Hoje não se defende mais autoria única, mas a teoria no geral ainda é muito aceita. Embora o nome “historiografia” não seja tão bem empregado para esse tipo de livro, ela aqui significa o conjunto de textos que buscam narrar a história de Israel. É bom lembrar que o conceito de história para os teólogos de Israel é bem diferente do nosso conceito. O objetivo é a mensagem teológica que eles queriam passar, não tanto a precisão dos fatos que narram. Esses textos foram inicialmente escritos no tempo do rei Josias (640-609 a.C.) e concluídos depois do Exílio da Babilônia. Suas fontes são relatos orais, arquivos reais e criações da época.

A obra traz diferentes assuntos teológicos, alguns até contrastantes. Antes do Exílio da Babilônia (597-538 a.C.), os temas que se destacam são a exclusividade do culto a Javé, a centralização desse culto no templo de Jerusalém, a fundamentação da realeza e a promessa da dinastia de Davi. Durante o Exílio, como Israel não tinha mais Templo, nem terra, nem rei, as redações desse período se focam numa crítica aos reis e em condicionar a posse da terra ao cumprimento da Lei de Deus. Os governantes esqueceram a lei de Deus, o direito e a justiça, abandonaram Javé e o povo, por isso perderam a terra. Os culpados do Exílio foram, “como é evidente, os reis e seus amigos mais íntimos. A população de Judá em geral não sofreu o exílio. Seus problemas começam quando os exilados voltaram e reivindicaram as terras dos camponeses” (J. Pixley).

Esses livros trazem tentativas de justificar o governo da monarquia de Judá, principalmente as primeiras redações do tempo do rei Josias. Mas também trazem críticas aos governos que esquecem a justiça, o direito. Como explica a Pontifícia Comissão Bíblica no seu documento Bíblia e Moral, “a compreensão que Israel tem do seu Deus conduz a uma atenção particular aos mais pobres, aos estrangeiros, à justiça. Assim, culto e ética estão particularmente associados: oferecer culto a Deus e ter a preocupação para com o próximo são as duas expressões inseparáveis da mesma confissão de fé”. Por isso, o culto a deuses estrangeiros, o abandono a Javé também significava o abandono da justiça e dos pobres. Nesse sentido, não faltam nesses livros narrativas que expressam a ação de Deus pelos pobres e através deles, como no caso da escrava judia do general sírio Naamã que é instrumento de Deus para sua cura. “Ela está exatamente no degrau mais baixo da sociedade do tempo: é mulher, é menor de idade, é estrangeira e é escrava… O relato de 2Rs 5 é, de algum modo, subversivo… São os personagens ‘inferiores’ na hierarquia social do tempo que resolvem o problema” (J-L. Ska).

Também são importantíssimos, dentro do bloco de Livros Históricos, outros grupos de livros, como os da historiografia cronista. Ela parte da teoria que busca explicar a formação dos livros de Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas. Obra escrita pelos sacerdotes de Jerusalém por volta do ano 300 a.C. Traz outra visão da história de Israel. Omite informações sobre o Reino do Norte e também omite muitos pecados de Davi e dos reis descendentes seus. Traz uma visão ideal do reino futuro que virá com o descendente de Davi. A perspectiva litúrgica também é muito forte, bem como a visão nacionalista. Neles também está presente a parcialidade fundamental de Deus pelos pobres, como o decreto do governador Neemias de socorrer os famintos da terra: “Não me contive e repreendi o pessoal importante e os chefes, dizendo: ‘Vocês estão agindo como usurários em relação a seus irmãos!’… Devolvam hoje mesmo seus campos, vinhas, olivais e casas. Perdoem também a penhora em dinheiro, trigo, vinho e óleo, que vocês tomaram deles’” (Ne 5,7.11).

Temos ainda como Livros Históricos duas obras que na Escritura hebraica faziam parte dos Rolos festivos. Eram cinco e recebiam esse nome porque cada rolo/livro era lido em uma grande festa de Israel. Cântico dos Cânticos era lido na festa da Páscoa; Eclesiastes na festa das Tendas e Lamentações na memória da destruição do Templo. Em nossas bíblias, estes três escritos fazem parte de outros blocos de livros, dos quais falaremos nos próximos textos. Aqui gostaríamos de destacar os outros dois livros festivos que são Rute e Ester, pois fazem parte dos Livros Históricos. No caso, Rute era lido na Festa das Semanas (Pentecostes) e Ester na festa dos Purim. Eles narram histórias que teriam se passado em períodos muito antigos de Israel. Rute fala do período dos Juízes (Séc. 11 a.C.) e Ester o período da dominação persa (Séc. 5º a.C.). Contudo, esses textos foram escritos durante o fim da dominação persa e início da dominação grega, possivelmente no séc. 4º e 3º a.C.

Por fim, temos os livros históricos deuterocanônicos. São Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. São chamados assim porque fazem parte dos livros presentes na bíblia católica e ausentes na bíblia judaica e também na protestante (são 7 ao todo). “Dêutero” é uma palavra grega que significa “segundo”; canônico aqui é a lista dos livros considerados sagrados, inspirados. Eles eram aceitos por muitos judeus que viviam fora de Israel (helenistas) e pelos cristãos. Narram a organização do povo buscando a solidariedade e a justiça mesmo vivendo numa terra estrangeira (Tb) ou em Israel sob opressão de tiranos (Jt, 1 e 2Mc).

Estudar a história de Israel é perceber como Deus esteve presente na vida do seu povo, caminhando com ele, orientando, amando, libertando. É também perceber que Ele nunca deixou de caminhar conosco e que hoje nos interpela a lutar por vida para todos, a construir uma nova história a partir do direito e da justiça!

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