ColunistasJoaquim Jocélio

O Deus que liberta e caminha com seu povo

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Como vimos no artigo anterior, a bíblia é “Palavra de Deus em linguagem humana”. Isso quer dizer que a mensagem de Deus chega a nós por meio de textos escritos por pessoas com suas mentalidades, limitações e fragilidades. Os textos bíblicos não foram escritos de uma vez, mas passaram por vários processos de redação ao longo dos séculos. As experiências que os originaram foram guardadas, inicialmente, pela tradição oral através do povo simples, mas foram postas por escrito nas escolas, palácios e templo. Por isso, precisam ser bem compreendidas. Como escreveu nosso querido frei Carlos Mesters, “a bíblia, ou ajuda ou atrapalha; ou liberta ou oprime. Não é neutra”.

Ela traz a história da revelação de Deus a um povo como um Deus libertador e sua aliança com ele (ser o Deus do povo e este ser o povo de Deus). Depois traz a plenitude dessa revelação em Jesus de Nazaré que apresenta Deus como Pai amoroso e anuncia seu Reino que é dos pobres (Mt 5,3; Lc 6,20). Foi longa e diversa a experiência do povo com Deus. Por isso, para compreendermos qual a mensagem que o Senhor transmitiu para aquele tempo e quer transmitir hoje, precisamos entender bem como a Escritura foi formada e organizada. Seguindo nossa série de texto de introdução à bíblia, neste, falaremos mais sobre a origem e formação da bíblia e também como está organizada sua primeira parte, o Antigo Testamento. Comecemos pela divisão da Escritura. 

A bíblia católica é dividida em duas partes: Antigo Testamento (AT) e Novo Testamento (NT). A palavra “bíblia” é o plural do termo singular grego bíblos, que quer dizer “livro”. Portanto, a bíblia é como uma pequena biblioteca, pois tem vários livros. O AT tem 46 e o NT tem 27.  Ao todo, 73 livros. A divisão em capítulos só foi introduzida pelo arcebispo da Cantuária Stephen Langton (+1228) e a divisão em versículos pelo tipógrafo francês Robert Estienne (+1559). Na época da escrita, os livros não tinham divisão nem entre as palavras, eram todas escritas juntas. Imaginem a dificuldade para a leitura e para encontrar um texto específico!

Os manuscritos (textos escritos à mão) eram dos materiais mais variados. Desde os mais caros e resistentes, como pedra e pergaminho; até os mais baratos, como papiro. O pergaminho era feito de pele de carneiro ou camelo, era mais caro e resistente. O papiro era feito de uma planta, era mais barato e menos durável. Os pergaminhos e papiros podiam ter a forma de rolo ou de códice (forma semelhante à dos livros de hoje). Os manuscritos da bíblia, portanto, são os materiais que contêm os textos bíblicos. Não existem hoje mais nenhum manuscrito original, apenas cópias mais completas bem antigas e milhares de trechos e fragmentos de manuscritos das mais diferentes épocas. 

A bíblia foi escrita em três línguas: hebraico, aramaico e grego. O AT escrito em hebraico com algumas partes em aramaico em trechos do livro de Esdras e de Daniel. No século 3º a.C., os livros foram traduzidos para o grego formando a chamada Septuaginta (a bíblia grega) ou bíblia dos Setenta (LXX). Depois, outros livros em grego foram acrescentados a ela. O NT foi todo escrito em grego. As cópias mais antigas que nós temos do AT completo em hebraico são os códices de Alepo (930 d.C.) e de Leningrado (1008 d.C.). As cópias mais antigas que temos do AT em grego junto com o NT são os códices Vaticano (300-325 d.C.), Sinaítico (330-360 d.C.) e Alexandrino (400-440 d.C.). Em 1947 nas 11 cavernas de Qumran, foram encontrados milhares de manuscritos antigos guardados dentro de vasos (ânforas), inclusive cópias do AT em hebraico mais antigas do que as que já tínhamos. As diferenças não eram tão grandes, o que mostrou como aqueles que copiaram os textos sagrados buscaram ser bem fiéis ao que transmitiam. 

O nosso Antigo Testamento corresponde em boa medida às Escrituras judaicas. Na verdade, nasceram com o povo de Israel. O AT “originou-se, na origem do seu próprio povo, em um processo de libertação. A concepção israelita de Javé, o Deus do povo hebreu, está indissoluvelmente ligada à experiência de libertação da escravidão do Egito” (J. S. Croatto). Todo o AT, e o NT também, está marcado pela experiência do Deus libertador: “Eu vi a miséria do meu povo… Por isso desci a fim de libertá-lo” (Ex 3,7.8).

As Escrituras judaicas são chamadas hoje de TaNaK, palavra que traz as letras dos três blocos que reúnem os livros sagrados: A Torá (Lei/Instrução); os Nebiim (Profetas) e os Ketubiim (Escritos). A ordem da Bíblia Hebraica se justifica assim: Primeiro vem a Lei de Deus, a Instrução do Senhor que orienta o povo no caminho da justiça e do direito. Depois vêm os Profetas porque são os autênticos intérpretes da Lei e anunciadores da Palavra de Deus, ao mesmo tempo denunciam as injustiças, opressões e idolatrias que quebram a Lei do Senhor e consolam o povo falando de esperança. Por fim, vêm os Escritos de sabedoria que ensinam a viver no cotidiano os ensinamentos da Lei já transmitidos pelos profetas, de modo especial, o zelo e cuidado com os mais pobres. 

A bíblia católica, seguindo a estrutura da bíblia grega, tem outra divisão dos livros do AT. Nela são quatro blocos: Pentateuco, Históricos, Sapienciais e proféticos. A ordem também tem um sentido: foi assumida a colocação dos proféticos por último, porque se ligam ao Novo Testamento; muitos profetas anunciaram a chegada do Messias e o NT inicia com a vinda do mesmo. Os judeus fecharam a lista de seus livros sagrados, ou seja, o cânon, na reunião de Jâmnia no final do I séc. d.C. Já nós católicos, fechamos nossa lista de livros da Escritura, nosso cânon, só em 1546 no Concílio de Trento.

A bíblia teve uma formação complexa. Isso não deve desestimular nosso desejo de conhece-la mais. Ao contrário, deve nos fazer humildes e curiosos. Não podemos achar que a bíblia pode ser usada de todo jeito, nem pensar que é algo cujo conhecimento não dá para alcançar. A estudamos para viver a vontade, o amor de Deus hoje. “A própria bíblia nos orienta para a leitura de Deus nos acontecimentos do mundo e nos ensina justamente a reconhecê-lo como se manifesta agora e não como repetição do passado” (J.S. Croatto). Continuemos estudando a bíblia, aprendendo com a experiência de Israel com o Deus libertador para fazermos nossa experiência com Ele hoje.

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