Por um novo Projeto de Sociedade

Lula não será a salvação do Brasil. Ninguém será.

Por Celso Pinto Carias – “Mendigo de Deus”

          Por favor, leiam até o final, para entenderem o subtítulo.

          Em 1982, por indicação do amigo Dom Mauro Morelli – primeiro bispo da diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, RJ, falecido em 09/10/2023 – adquiri um livro de um autor africano, nascido em Benin, chamado Albert Tévoédje: “A pobreza, riqueza dos povos”. O livro foi publicado pela primeira vez em 1977. Fiquei entusiasmado com o conteúdo. Em minha juventude, procurava falar para todas as pessoas que esta era a saída para o mundo. No prefácio do livro, Dom Helder Câmara, lembrou da necessidade de fazermos uma experiência de acreditar nos pequenos, e fez menção a uma canção muito entoada pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) do Brasil: “que o mundo será melhor quando o pequeno, que sofre, acreditar no pequeno”. Ao longo de todo o livro, Tévoédje mostra que se a África, diria eu com um conceito em desuso, o “Terceiro Mundo”, quisesse encontrar o caminho, não deveria imitar o “Primeiro Mundo”.

          Porém, aos poucos fui deixando de falar do africano. As pessoas me olhavam estranho: “Como assim, o caminho da felicidade não passa pelo consumo?”. Ficavam incrédulas quando ouviam que viver somente do necessário é a solução para mundo. A certa altura o pensador de Benin diz: “É, pois, o absurdo da acumulação selvagem, que se torna, no final das contas, um tóxico para o corpo social”. Sim, percebi o quão intoxicado estão os seres humanos. O entusiasmo arrefeceu e o livro foi para estante, mas nunca foi esquecido.

          O tempo passou. A crise social, política, econômica, cultural e ambiental se agravou. Estamos, dizem os especialistas, no interior de uma crise civilizatória que ainda não está em fase conclusiva. Eis que um novo livro me foi sugerido, agora pela amiga teóloga Rose Fernandes Costa: “Pequeno tratado do decrescimento sereno”, do economista francês Serge Latouche, 2009, publicado em 2007 na França. Ele chegou a minhas mãos apenas em 2017, e, de repente, na página 81, encontro Latouche citando Tévoédje. Ele exalta o africano como o precursor das ideias do decrescimento. Nova luz se fez. Trinta anos depois de Tévoédje ele avisa: “…, está na hora de descolonizarmos nossos imaginários. Não é certo que ainda tenhamos trinta anos pela frente.” Latouche pontua a necessidade de “reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar”, para reencontrarmos o caminho da sobrevivência.

          Contudo, vozes como as de Latouche ainda não são suficientes para frear a crença, quase absoluta, no progresso, na tecnologia, como apanágio de soluções que serão encontradas pelos seres humanos “racionais” e “civilizados” que chamam tribos yanomanis no Brasil de selvagens enquanto destroem violentamente a natureza e matam os indígenas.

          Então, qual seria o caminho? Na atual conjuntura é difícil responder tal pergunta. Contudo, para descobrir a resposta se faz necessário entender por que chegamos aqui. E de novo alguém em forma de livro aparece e lança uma reflexão necessária para realizar utopias: Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha que vai às entranhas das contradições da crise civilizatória. Sua tese central, uma “sociedade do cansaço”, desdobra-se ao ponto de nos fazer perceber, assim concluo, que os modelos tradicionais de enfrentamento à crise estão extremamente enfraquecidos, se não esgotados. Vivemos em uma estrutura de sociedade onde nos tornamos “escravos de nós mesmos”. Não há mais a necessidade de controle pela força. O lucro explora a liberdade. O poder dominador é exercido sem correntes e amarras, mas com o “big data”. Um sentimento de fracasso se abate sobre aqueles e aquelas que não desempenham suas funções conforme a meta estabelecida pela produção. Estamos no universo da “psicopolítica”, diz Han.

          Encontrei-me também com o nosso Ailton Krenak, indígena agora imortal da Academia Brasileira de Letras, infelizmente um encontro em livros e vídeos, mas o suficiente para relacionar Krenak com a percepção de que “a vida não é útil”, titulo de um dos seus livros, que tem a perspectiva de um novo projeto de sociedade. A vida não deveria, como nos ensinam nossos ancestrais, ser reduzida a uma engrenagem de produção.  O próprio conceito de humanidade pode ser revestido de uma grande arrogância, quando faz o ser humano olhar para si mesmo como um ser fora da natureza, assim o autorizando a usar e abusar da fonte da vida que o sustenta.

          Finalmente, mas sem ser o fim, surge o BEM VIVER como utopia. O Departamento de Geografia da PUC-Rio promovia um seminário, não lembro a data. Do lado de fora do auditório havia uma banca de livros. Passando os olhos encontro o título “O bem viver – uma oportunidade para imaginar outros mundos”, de 2016, do equatoriano Alberto Acosta. Já tinha ouvido falar de “bem viver”, mas achava um discurso romântico. Quando li o livro, minha mente se abriu. Uma chave para destrancar a porta do futuro. Os pontos começavam a se unir.

          E para dar uma dose forte de esperança, temos ainda o Papa Francisco. Apesar das “sombras de um mundo fechado”, um título da encíclica “Fratelli Tutti”, este latino americano sinaliza fortemente que o papel das religiões é construir pontes, buscar o diálogo e a amizade social, caminhar enfim para um novo encontro.

          Se a conversa “rolou” até aqui, se ainda houver disposição, vamos prosseguir. Traremos alguns dos pensadores citados com muita liberdade. Colocando sempre entre aspas suas falas, com honestidade, mas sem muito apego ao rigor acadêmico. Meu limite foi o de ter encontrado apenas duas mulheres nesta jornada, Adela Cortina e Carmem Cinira, para interagir por aqui. Elas naturalmente existem. Espero que as mulheres acolham e haja cada vez mais espaço e oportunidade para suas contribuições, pois não haverá um novo projeto de sociedade com patriarcalismo.

          Em publicação mais recente, de 2021, Byung-Chul Han afirma que o capitalismo e o impulso de morte andam juntos. Este modesto teólogo que aqui voz escreve fala, faz tempo, que o capitalismo é diabólico.

          A palavra “diabo” significa “aquele que divide”. O capitalismo segue um lema  muito antigo, desde os romanos: dividir para reinar. É incrível a maneira como, feito “Fenix”, crise após crise, ele renasce das cinzas. O sistema capitalista é O PODER, e não governos. Evidente que governos têm uma dimensão de poder político, mas submetido aos interesses do grande capital. O sistema político pode ser, no discurso, até oposição ao sistema econômico, mas na prática, hoje, tudo está submetido à pressão econômica. O caso China é emblemático.

          Na política, em maior ou menor grau, é preciso que os candidatos negociem com os donos do poder se quiserem ganhar eleições, por exemplo. Os partidos, nem mesmo os de esquerda, tentam desnudar o sistema eleitoral a fundo, pois serão prejudicados nas urnas. Além disso, muitos entram no jogo personalista, típico da lógica da competição iluminada pelo “Deus Mercado”, onde a vaidade pessoal, mesmo em pessoas honestas, torna-se um limite na construção de um pleito eleitoral mais participativo. Agora, precisamos mais do que nunca, defender a democracia porque deixamos a mesma estacionar na dimensão representativa sem aprofundar a dimensão participativa, popular.

          Abriu-se espaço para o retorno de governos autoritários, para a dimensão de um fascismo que passa por dentro das estruturas legais. O discurso contra a corrupção se torna um clamor que esconde um sistema estruturalmente corrupto. Qualquer governo, em países que buscam a democracia, precisa aprender a negociar com diversos interesses econômicos para manter a chamada “governabilidade”, o que acaba legitimando um mecanismo “legal” de corrupção. Mesmo um gestor honesto não consegue gerenciar um governo sem ceder pelo menos os “anéis”. Aliás, prefeitos,  governadores, presidentes ou primeiros ministros, na verdade são “gerentes” do poder econômico. Ou pior, como no caso do Estado do Rio de Janeiro, tornam-se cumplice de mecanismos criminosos.

Nesse contexto, a tentação ilusória que se abriu novamente é de justamente buscar estruturas políticas que decidam independentemente de pressões econômicas, através do uso da força, e, sobretudo de mecanismos da “psicopolítica” no sentido de Han. Nomeio ilusória porque sabemos, pela história, o quanto os governos tirânicos rompem com certas formas de negociação política e acabam criando outras formas que beneficiam elites que compactuam com o autoritarismo desses mesmos governos. Sem falar no custo extremamente significativo, em termos de liberdade e violência, de ditaduras governamentais. Enfim, seja qual for o tipo de governo, o Papa Francisco tem razão: “esta economia mata”.

          A ascensão política também pode menosprezar a relação de integração com o conjunto da população. Gerenciam-se governos sem a preocupação de ir ao encontro de mentes e corações da população em geral. Muitas vezes até se quer trabalhar pelo povo. Mas de novo, como o Papa Francisco tem insistido, é preciso fazer sempre com o povo e não para o povo.

          As consequências danosas das relações entre poder e governos são amplas e complexas. Mas se há pretensão de construir um mundo melhor é preciso ir fundo nessas relações. O ideal de desenvolvimento que nos é ofertado é um conceito extremamente ambíguo e inatingível para a maioria da população planetária. A busca pelo “Eldorado” é colocada como uma meta realizável por qualquer pessoa, basta que se guie, segundo os arautos do desenvolvimento, rigorosamente pela ciência econômica e tudo será possível. Segundo os tecnocratas, desigualdade social, fome, falta de saneamento básico, saúde e educação precária, etc., supera-se com competência. Uma das pretensões deste texto, no entanto, é evidenciar ainda mais que o que se compreende por desenvolvimento é uma proposta impossível de ser alcançada por nada menos que oito bilhões de pessoas no planeta.

          Os arautos do poder escondem que trabalham com um conjunto de fatores pouco ou nada acessível à população em geral.  Adela Cortina, filósofa espanhola que maneja bem o conceito de aporofobia (ódio ao pobre), indica em um livro escrito no século passado, “Ética Civil e religião”, que subjacente à busca pela justiça é necessário ter consciência de fatores que tornam o alcance de uma equidade social bastante complexa.

Inclusive, sem esse pano de fundo podemos legitimar ações políticas que não indicam, de fato, a superação dos graves problemas sociais. Adela observa a necessidade de avaliar a estrutura social de modo a não tomarmos decisões políticas superficiais.  Ela indica que se faz necessário realizar um discernimento profundo tendo em vista questões que precisam ser levadas em consideração, como o fato de não contarmos com matéria-prima abundante indefinidamente (Petróleo, por exemplo), que sempre haverá conflito de interesses que devem ser colocados na mesa com muita transparência, e finalmente, é importante ter como pressuposto o fato de que nunca poderemos contar completamente com a idoneidade dos gestores.

          Para agravar um pouco mais a questão, em todo o processo no qual o capitalismo se tornou hegemônico, o planeta terra foi sendo impactado por mudanças climáticas graves. Ainda não sabemos com exatidão a dimensão dos impactos que sofreremos, mas já estamos vendo consequências desastrosas. Pode-se questionar um ou outro aspecto das conclusões científicas, mas não se pode mais negar que estamos em risco.

          É bom lembrar ainda que o socialismo real também não foi capaz de construir um modelo diferente do extrativismo capitalista. Chernobyl talvez seja o símbolo emblemático dessa afirmação. Embora o socialismo sobreviva, estamos sob o Império do Capital. Será que Cuba resistiria às pressões econômicas capitalistas caso o cruel embargo econômico que os EUA impõem sobre este pequeno país resistente fosse interrompido? A produção econômica chinesa, por mais esforços que esse país faça para diminuir o impacto ambiental, não colabora para a diminuição do extrativismo predatório capitalista. Soma-se a tudo isso os Estados Unidos da América, o maior poluidor do planeta, que tem enorme dificuldade de ceder às negociações climáticas. Neste aspecto, o fato é que quase ninguém se salva. Talvez o Butão, considerado o país mais feliz do mundo.

          Enfim, esse volume tão grande de ambiguidades no qual estamos imersos pode nos induzir a escolha contínua pelo “mal menor”. Porém, estamos chegando a um limiar de decisões fundamentais para garantir a continuidade da vida no planeta. Ainda podemos diminuir a catástrofe, mas já existem danos irreversíveis. Podemos sobreviver como nossos ancestrais indígenas sobreviveram. Para isso, contudo, precisaremos de um novo projeto de sociedade.  A pergunta fundamental deste tempo, por isso, é se estamos dispostos a viver esse projeto, que cada vez mais, embora nos venha como uma pergunta, tem se tornado a única alternativa possível à manutenção da vida em toda sua amplitude.

          Então, a razão pela qual colocamos o presidente Lula no subtítulo deste texto – o destituindo do cargo de Salvador do Brasil – se justifica por uma crença majoritária, extremamente forte, de que pessoas isoladas seriam capazes, por seu carisma e capacidade, de encontrar o caminho de superação. Crença que – ela, sim – precisa ser superada. E esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro; mas algo que está espalhado pelo mundo.  Não se trata aqui de identificar virtudes e defeitos de governos, uma postura comumente chamado pelos especialistas de “análise de conjuntura”, mas de construirmos indicações muito pontuais de um caminho de superação que só será possível coletivamente.

          É muito interessante como o desejo de um “rei” que venha salvar o povo persiste no imaginário dos humanos. É um arquétipo poderoso. Existe uma história bíblica – para quem não conhece escrita bem antes de Jesus Cristo – na qual o profeta Samuel avisa o quanto tal desejo é contraditório, pois entre tantos aspectos colocados na narrativa, o texto lembra que o rei “fará o povo lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros” (Toda a narrativa se encontra na Bíblia, no livro 1Sm 8,10-22). Mesmo assim o povo quis ter rei.

          Existe uma afirmação do nosso Ariano Suassuna que cabe muito bem no contexto dessa crise civilizatória. Ele afirmava ser um “realista esperançoso”. Sim, não se pode abrir mão da esperança. Mas a realidade, o chão, a situação na qual estamos metidos não pode ser enfrentada sem um profundo discernimento sobre o caminho que se faz necessário. Não é nada fácil, pois como disse Antonio Gramsci, “o velho está morrendo  e o novo ainda não pode nascer”. Carl Jung dizia que o “medo do novo” é uma doença psíquica. A resistência é enorme, inclusive no grande espectro que chamamos de “progressismo”. Inclusive resistência cognitiva, quando se fala, por exemplo, de “decolonizar”.

          Repetimos a pergunta: mas qual o caminho? Seria muita pretensão, mesmo que tivéssemos muitas páginas para escrever, oferecer uma resposta acabada a tal pergunta. Porém, a percepção de que estamos bem próximos de um limiar profundo de dor e sofrimento, não pode nos fazer esperar mais por adequações conjunturais de projetos que já se demonstraram, a médio e longo prazo, completamente inviáveis. Urge colocar nossas mentes e corações a serviço de um modelo de existência que possa dar uma chance para as futuras gerações.

          Este teólogo periférico que tem mais bagagem de reflexão trilhado no Caminho de Jesus de Nazaré, atreve-se aqui a chamar atenção para alguns aspectos que certamente intelectuais de outras áreas podem fazer melhor. Depois de tantos anos, não dá para reencontrar Tévoédje, encontrar Latouche, Han, Krenak, Adela Cortina e simplesmente passar ao largo. Minha neta Aurora, três anos, verá algo diferente do que estamos vendo? Não sei. Mas sei que posso tentar provocar. Sou um provocador inveterado. Não tenho medo de provocar. Vou morrer provocando. Assim, vamos balbuciar reflexões a curto, médio e longo prazo.

Inicialmente não nos resta outra saída a não ser apoiar governos progressistas. Elegemos Lula nessa circunstância. Contudo, diante dos desafios conjunturais, é arriscado manter uma pauta tão imediatista que esqueça as consequências a médio e longo prazo. É impensável seguirmos adiante sem que se discutam questões fundamentais como a pauta ambiental, por exemplo, por medo da volta de governos autoritários. 

É preciso abrir espaço para uma democracia participativa. É preciso abrir espaço para uma cidadania ativa na qual as pessoas se sintam sujeitos de um processo e não meramente objetos dos serviços públicos. Latouche fala da necessidade de uma “refundação do político”, pois para o sistema o político tem sido apenas instrumento de manutenção de uma dominação dos mais fortes sobre os mais fracos. Nesse sentido, é fundamental que governos progressistas assegurem políticas públicas que viabilizem começar a subir a escada de outro modelo de sociedade. Os mecanismos de governabilidade não impedem que se busque fomentar iniciativas de crescimento da consciência cidadã, de uma cidadania ativa, isto é, aquela na qual as pessoas se tornem sujeitos do processo.

Outro aspecto que muitos ainda não percebem é a importância do comportamento individual, que evidentemente não é individualismo. Pessoas e grupos precisam alterar a lógica de um consumismo desenfreado. Como dizia Gandhi: “seja você a mudança que você deseja no mundo”. Nesse sentido, é fundamental ter um estilo de vida que coopere, ainda que minimamente, para alterar os mecanismos que induzem pessoas a ter mais, mantendo a cultura do consumo. Para muitos do campo progressista essa não seria uma ação relevante. Vamos então esperar os recursos do planeta esgotarem para perceber a necessidade de uma vida minimalista? É importante ressaltar que esse estilo de vida não significa diminuição da dignidade fundamental, muito pelo contrario. Por exemplo: há de fato a necessidade de tornar obsoleto um produto que poderia durar muito mais tempo em nome de uma economia de mercado?   

Para lógica do mercado ser alterada, é assim que funciona, faz-se necessário que o capital perceba o quanto um produto ainda tem lucro. Vejam como aumentou a oferta no comércio de produtos mais naturais.  Contudo, a mesma estrutura extrativista é mantida: apenas se muda o foco, buscando uma adequação diante de uma nova demanda. Fato semelhante se dá com produtos para negros, por exemplo, nos quais se privilegia produtos que não dizem respeito às raízes ancestrais.  Assim sendo, faz-se necessário dar passos mais consistentes para alterar a lógica da produção. Não será nada fácil, mas não podemos desistir.

A interseção entre curto e longo prazo é muito tênue. Porém, será necessário identificar aquilo que não é possível agora, mas pode ser iniciado, e aquilo que levará muito tempo para ser alcançado. Uma questão que precisa ser enfrentada é a reformulação dos mecanismos democráticos, pois a democracia representativa tornou-se frágil. Estamos assistindo isso nos últimos anos. Eleições, de fato, não conseguem garantir uma participação efetiva da população. Fatores econômicos influenciam fortemente. Temos agora toda a gama de tecnologia da comunicação para condicionar decisões. É possível verificar até mesmo como os mais pobres são convencidos a votar em seus algozes. Inculcam temores para facilitar a rendição. Como diz Mia Couto: “Há quem tenha medo que o medo acabe”. E vivemos como afirma Byung-Chul Han, sob o predomínio da “psicopolítica”, ou no diagnóstico psiquiátrico: “uma dissonância cognitiva coletiva”. Governos progressistas precisam aprender a se comunicar com o universo simbólico popular, mas sem julgamentos e preconceitos.

Cabe, portanto, não permanecer em uma estrutura da comunicação de confronto, buscando responder ataques, mas criar mecanismos que permitam alcançar a população de modo mais efetivo. Certamente especialistas em comunicação podem formular caminhos honestos em direção ao mundo mais subjetivo que, ao contrario do que muitos pensam, é também um mundo decisivo. Evidentemente dentro da ética, e não com “fake news”. Será necessário que governos progressistas invistam alto em processos de comunicação, sobretudo voltado para as classes populares.

É urgente a criação de programas de formação popular, mas com atenção para não reproduzir modelos coloniais. O Brasil ofereceu ao mundo Paulo Freire como um sinal de outra possibilidade para trabalhar mentes e corações. O processo educacional oficial está cada vez mais submetido à lógica de produção. Lutar diretamente contra este processo é muito difícil, mas não se deve abandonar a busca de uma educação oficial mais inclusiva: na verdade somente com uma cultura de fundo, por meios alternativos, será possível produzir mudança. Como diz o ditado, “é preciso comer pelas beiradas”. Os mais de setenta anos da revolução soviética, por exemplo, não foram capazes de impedir que a Rússia se tornasse um grande reduto do capitalismo predatório.  

Como diz Ailton Krenak, apesar da tentativa de genocídio, os povos indígenas sobreviveram porque não se renderam, em sua totalidade, à cultura extrativista. Krenak, diante da crise ambiental, diz temer mais pelos brancos do que pelos indígenas. Um recente episódio envolvendo a sobrevivência de quatro crianças indígenas depois de um acidente aéreo na Colômbia confirma isso. Certamente, quatro crianças brancas não teriam sobrevivido.

No médio prazo é preciso estabelecer processos alternativos que possibilitem a reunião de pessoas e grupos para criar condições de possibilidade para o longo prazo. É um caminho que reconhece o curto prazo, mas não gasta toda a energia com instituições que estão completamente submetidas ao poder dominador. Latouche, no livro aqui mencionado, faz uma citação muito conhecida: “Quem acredita que um crescimento infinito é possível em um mundo finito, conclui ele, ou é louco ou é economista” (“ele”, segundo a citação é Kenneth Boulding). Portanto, faz-se necessário buscar condições para processos econômicos que não passem pelos caminhos dominantes. O Papa Francisco tem buscado isso, com um projeto de uma nova economia, aqui no Brasil chamado de “economia de Francisco e Clara”.

Naturalmente que não se trata de uma concepção “anarquista”, no sentido filosófico, mas sim de construir concepções institucionais fora dos mecanismos predominantes do poder que naturalizam a prática de uma governabilidade estruturalmente corrupta. Como diria Carmem Cinira, em artigo escrito lá pelos idos de 1984, “Anseios e utopias de vida na sociedade atual”, existe no mundo, muitas vezes, um processo de naturalização das coisas muito perigoso, representado pela frase “sempre foi assim”. É possível naturalizar inclusive preconceitos. Não é isso que estamos vivendo hoje? Pena que Carmem Cinira de Andrade Macedo morreu muito jovem (1948-1991), pois era uma antropóloga que parecia ter um grande futuro.

Talvez fosse melhor falar de longuíssimo prazo, mas seria desanimador. Acreditando que seja possível reverter o quadro atual, passando pelo curto e médio prazo, não conseguimos ver outra esperança que não seja uma profunda mudança no modo como organizamos a vida humana em sociedade. Alberto Acosta, no livro “O Bem Viver”, começa o primeiro capítulo citando nada mais nada menos que Martin Lutero: “Mesmo que o mundo fosse se desintegrar amanhã, ainda assim plantaria minha macieira”. Tenho dito que não se trata mais de plantar a semente, mas sim de arar a terra. Teremos tempo? Não sabemos. Mas minha convicção é de que dentro do capitalismo não há salvação.

O Bem Viver se apresenta como a nossa UTOPIA, outro lugar, como a etimologia da palavra significa, que é ao mesmo tempo o lugar que estamos vivendo transformado por novas relações, um novo modo de produção e um profundo respeito pela natureza. Aqui não há qualquer condição de explicar o conceito de Bem Viver de forma mais completa, tão bem explicado por Acosta, mas afirmar a profunda necessidade de um novo projeto de vida.

Podem dizer que é impossível. Como Latouche discorre em seu livro, muitos afirmam que “decrescimento” é uma espécie de retorno à vida tribal. Mas usando uma expressão do mesmo Latouche, o “desenvolvimento é uma palavra tóxica, qualquer que seja o adjetivo com que o vistam”. Certamente muitas pessoas já passaram pela experiência de ver um aparelho ter problema um pouco depois da garantia. Isso se chama “obsolescência programada”. Outra experiência comum é a de trocar uma máquina e não saber onde descartar a que foi substituída.

 Um dos grandes problemas do mundo se chama LIXO. Inúmeros navios, cheios de restos de equipamentos não recicláveis, até radiativos, chegam a países periféricos do mundo para poluir os já machucados pela injustiça social. Ora, impossível não é uma sociedade do BEM VIVER. Impossível será integrar bilhões de seres humanos em um modelo extrativista de consumo. O que os países dominantes irão fazer com a África, por exemplo, continente do qual os países “desenvolvidos” sugaram tudo, até pessoas, escravizando-as? A América Latina ainda conseguiu um pouco de sobrevida, mas também tem territórios imensos de miséria. Fico me perguntando se a Baixada Fluminense, RJ, Brasil, onde vivo, um dia vai ter a metade dos serviços que a Zona Sul do Rio de Janeiro (Copacabana, Leblon, Gávea, etc) tem. No máximo, como diz um ditado bem brasileiro, tudo que se faz para os pobres é “para inglês ver”.

Portanto, se você que me acompanhou até aqui, tem netos/as, comece a rezar se acredita em Deus e, ao mesmo tempo, comece a mudar de vida. Mas todas pessoas, crentes ou não, podem se juntar a projetos comunitários para construir outro mundo possível. Governos são insuficientes para reorientar a mudança. Como diz Adela Cortina, somente uma “cidadania ativa” criará condições para organizar modelos de vida em sociedade que seja capaz de sobreviver as grandes dificuldades que virão.

Sendo assim, inspirados pela sabedoria de nossa ancestralidade, devemos buscar no interior desta realidade, mecanismos que permitirão a sobrevivência dos que forem capazes de viver com austeridade, simplicidade, e em condições de partilha. Sem não formos capazes de partilhar o pão, não teremos outro mundo possível.

Como cristão que sou, fico estupefato com as instituições cristãs que não se tornaram uma ferramenta para replicar as comunidades dos Atos dos Apóstolos: “os cristãos tinham tudo em comum, e não havia necessitados entre eles”. O caminho de Jesus de Nazaré foi o de inclusão dos excluídos, de integração das pessoas independente de condição social. No contexto imediato de Jesus ele apontou nitidamente para uma sociedade sem discriminação e sem preconceitos. E por favor, não reduza o CAMINHO de Jesus Cristo à salvação das almas. Acredito na continuação da vida, mas ela começa aqui e agora. Chega de dualismos e maniqueísmos.

A dinâmica do poder dominador, contudo, invade todos os espaços. Corrompe as estruturas para que elas se coloquem ao seu serviço através de um processo de cooptação dos mecanismos simbólicos da existência humana. Sendo assim, podemos assistir até mesmo “escravos” defendendo seus “escravizadores”.

Este modesto artigo não conseguiria dar conta, e nem de longe foi a pretensão, da apresentação de perspectivas concretas para chegar ao BEM VIVER, mas quis, sim, sinalizar  para é a única possibilidade de mudar o rumo de nossa história. Muitos talvez achem um exagero, tal perspectiva. Uma ilusão sem senso de realidade. Mas como disse lá atrás, comecei e repensar o sonho de outro mundo possível em 1982, e, até agora, ninguém me convenceu do contrário.

Precisaremos mapear possibilidades, experiência vividas, propostas a serem construídas. Precisaremos de “alternativas sistêmicas”, como o boliviano Pablo Solón selecionou em um livro de 2019 organizado por ele, com este titulo, que possa reunir, poliedricamente, sem patriarcalismo, o Bem Viver, decrescimento, bens comuns, ecofeminismos, ecosocialismo, direitos da Mãe Terra, desglobalização, decolonização em uma mesma direção: um comunitarismo radical em um mundo sem fronterias, um mundo da “cultura do encontro”, como diz o Papa Francisco, cujo “patriotismo” se dá no reconhecimento da dignidade fundamental de toda pessoa humana em completa harmonia com a natureza, pois somos natureza também, Quem viver verá.

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