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Romaria da Terra reúne mais de 4 mil pessoas em Ipê, capital nacional da agroecologia

Romeiras e romeiros se reuniram no feriado de Carnaval sob o lema 'Escutar a Mãe Terra e com Maria cuidar da Vida'

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Marcelo Ferreira, do Brasil de Fato RS

Mais de 4 mil romeiros e romeiras de diversas regiões gaúchas se reuniram tradicionalmente na terça-feira de Carnaval (13) para a 46ª Romaria da Terra, neste ano realizada no município de Ipê, na diocese de Vacaria. Após dias de calor intenso no estado, a chuva não afastou os participantes, que sob o lema “Escutar a Mãe Terra e com Maria cuidar da Vida” celebraram sua fé reafirmando valores como justiça social, luta pela terra, defesa dos pequenos e cuidado com o meio ambiente.

Era cedo quando romeiros começaram a chegar na comunidade Nossa Senhora de Lourdes, onde foi feita a acolhida, antes da caminhada que foi até o campo do Seminário de Ipê, no centro do município. No percurso, quatro momentos marcaram diferentes aspectos do evento. Místicas abordaram os temas Ver e ouvir o que fere a Mãe Terra; A agroecologia; O pacto de amor pela vida de Francisco e Clara; e O cuidado pela vida e a luta das mulheres.


Salão lotado para a missa da Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

Na chegada, foi realizada uma missa presidida pelo bispo de Vacaria, Dom Sílvio Guterres Dutra, e concelebrada por seis bispos e uma centena de padres. Após, o bispo emérito da diocese de Vacaria, Dom Orlando Dotti, foi homenageado por sua contribuição a diversos movimentos sociais da região. Um livro contando sua história foi lançado durante a celebração.

Após, durante o almoço, cantores populares animaram os romeiros e romeiras com músicas da luta e resistência. No encerramento, foram entregues mudas de ipê e de plantas frutíferas da região para que os presentes as levassem para plantar em suas casas.

Entre as lideranças políticas estavam o ex-governador Olívio Dutra, o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, os deputados federais Dionilso Marcon e Elvino Bonh Gass, e o deputado estadual Adão Pretto Filho.

Presente na cobertura da 46° Romaria da Terra, o Brasil de Fato RS conversou com romeiras e romeiros, organizadores, lideranças religiosas e políticas, representantes de movimentos sociais. Confira:

Protagonismo da mulher camponesa

Membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Andrei Thomaz integrou a equipe de coordenação na construção dessa edição da Romaria. Ele relata que, em todo o processo, desde a escolha do local, passando pela definição do tema e também o modo de envolvimento da comunidade, destaca-se o protagonismo da mulher camponesa. “As mulheres aqui de Ipê organizaram a sua devoção à Maria, trouxeram a mãe de Jesus para caminhar com a gente.” 


46ª Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

Entre as lutas trazidas pelos romeiros está também o ataque de Israel à Faixa de Gaza. “A primeira imagem de Maria presente nessa Romaria é a mãe da Palestina, a mãe que carrega seu filho morto nos braços. Nesse final de ano não teve Natal em Belém e no mundo inteiro. Nós, ao celebrarmos Jesus e a sua mãe Maria, temos que nos recordar do que tem passado o povo palestino na Terra de Jesus”, aponta.

“Sempre um caminho coletivo”

Por isso, prossegue Thomaz, a Romaria diz não ao veneno, não à semente transgênica e não ao latifúndio. “Porque quando você vai expandindo suas propriedades e criando campos de concentração, daqueles daquelas pessoas desapropriadas da Terra, você está destruindo a mãe, criando guerra. E a reforma agrária e a participação democrática no uso dos bens comuns nos convida a isso, a entender que a Terra é de Deus, que ela não nos pertence.”


46ª Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

Ele destaca ainda que Francisco e Clara estão presentes nessa Romaria e fizeram parte da construção com a sua economia. “Como o Papa Francisco tem chamado, uma economia do despojamento nos ensina, chamados a colocar o pé na terra e colocar-se a caminho. Uma economia que escuta as sutilezas da mãe terra e que se põe a caminho. Nunca num caminho sozinho, sempre um caminho coletivo.”

Capital nacional da agroecologia

Ao recordar que Ipê é considerada a capital nacional da agroecologia, Thomaz aponta que, mais do que um conceito, agroecologia é uma prática em disputa. “O capital vem nos encurralando e para nós dizermos que a agroecologia é o caminho, nós precisamos colocar esse conceito e essa prática em disputa, no sentido de dizer aqui estamos porque nós acreditamos que a vida tem valor e não o dinheiro. Nós acreditamos que as relações interpessoais são o que movem a economia e não o lucro.”

Bispo da diocese de Vacaria há cinco anos, Dom Sílvio Guterres Dutra lembra que esta não é a primeira vez que a Romaria acontece em sua diocese. “Tivemos ocasião de acolhê-la em Ibiraiaras, depois em Sananduva e, agora, pela terceira vez aqui na diocese a 46ª Romaria. Para nós tem um gosto especial a Romaria desse ano, porque ela acontece aqui em Ipê, que tem como identidade ser a capital nacional da produção orgânica, da agroecologia. Nós temos aqui bravos agricultores, temos uma cooperativa forte, temos um guardião das sementes criolas, tudo isso”, afirma.


46ª Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

“A terra está tentando dizer alguma coisa”

Ao lembrar que essa edição começou há um ano, quando se encerrava a Romaria de 2023, realizada em Eldorado do Sul, o bispo afirma que hoje ocorre o “coroamente da Romaria” a partir do trabalho dedicado de muita gente. “Um ano atrás nós tínhamos ainda muito o impacto dos três anos de estiagem longa. O escutar a terra vem um pouco disso. A terra está tentando dizer alguma coisa para nós. Precisamos abrir os ouvidos, a mente e o coração para escutar”, sugere.

“Daí nós somamos essa leitura que fazemos da terra, a criação, com as causas que a Romaria vem defendendo ao longo do tempo, e juntamos aqui com a agroecologia, principalmente com a figura feminina, a mulher aqui, Ipê tem um movimento de mulheres agricultoras muito bem organizado. A Nossa Senhora aqui na diocese, Nossa Senhora de Oliveira, ela é sobrevivente de uma queimada de campo. Somamos a experiência das mulheres organizadas aqui e também a nossa relação com a mãe terra e tentamos traduzir isso no cartaz do evento”, explica Dom Sílvio.

Comunidade envolvida

Romeira que mora desde que nasceu na comunidade Nossa Senhora de Lourdes, que recebeu a atividade, Andrea Cearon ajudou na organização da Romaria, oferecendo trabalho, casa e alimento. Ela conta que toda a comunidade se envolveu na preparação, além de moradores e movimentos do município.


Edegar Pretto, Olívio Dutra e Adão Pretto Filho / Foto: Victor Frainer

“É uma honra estar recebendo a Romaria. É um privilégio entrar para a história das romarias, o nosso município ser contemplado e ser aqui na nossa comunidade. Para nós é um um imenso orgulho estar recebendo todo esse pessoal da Romaria que vem aqui com fé e devoção. Para nós é um exemplo de motivação, de esperança para a caminhada no cuidado com a mãe terra e a fé que a gente terá um futuro melhor”, afirma.

O prefeito de Ipê, José Mário Grazziotin (MDB), também diz ser uma alegria receber a Romaria no município. “Uma honra receber esse pessoal que vem de outras localidades de tão longe, mesmo com chuva. Mas a chuva é benéfica para nós, estamos precisando, numa época de pouca chuva agora”, comenta.

Colcha de retalhos: “junção dos sonhos”

A romeira Pamela Grassi integra o grupo Católicas pelo Direito de Decidir e estava costurando a bandeira de retalhos da Romaria. À peça, são acrescentados pedaços de pano com mensagens trazidas por comunidades de todo o estado. Segundo ela, a colcha de retalhos “é uma junção dos nossos sonhos, cada pedacinho representa um sonho, uma mensagem de cada comunidade dos sonhos que a gente quer intencionar nessa Romaria”.


46ª Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

“A Romaria da Terra é muito oportuna nesse momento que a gente tá vivendo, porque ela acaba discutindo questões desde o meio ambiente, a agroecologia, a questão da terra aqui no Brasil. Então ela é um momento muito profundo para a gente rezar, mas também a gente praticar a oração. Orar e também agir”, comenta Grassi.

“A gente dá um pouquinho do nosso amor”

Entre os variados apoios dos ipeenses para a Romaria está também o da Associação de Apoio aos Portadores de Câncer de Ipê (Aapcai). Representante da entidade, Tania Parisotto comenta que a Aapcai está sempre ao lado da comunidade, além de ajudar as pessoas que precisam de medicação, viagens e atendimentos relacionados ao câncer. “Dessa forma a gente pode também ajudar a suprir essa necessidade e a gente dá um pouquinho do nosso amor, do nosso trabalho”, diz.


46ª Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

Durante a Romaria, Tania estava acompanhada de Maria Guerra e Celeste Sartor, que integram a Aapcai. “Nossa associação já está fazendo oito anos”, conta Guerra. “Procuro ajudar, melhor ajudar do que ser ajudada”, complementa Sartor.

“Partilhando o sonho de um mundo mais justo”

Natural do município de Antônio Prado, o padre Celso Ciconetto atua na paróquia Santo Antônio da Forqueta em Caxias do Sul e conta que participa da Romaria da Terra desde 1981. “A gente está aqui mais uma vez partilhando o sonho de um mundo mais justo, mais fraterno, acreditando nas alternativas que o povo vai construindo. Como é a alternativa da agricultura ecológica, a agroecologia, tão importante neste momento em que estamos vivendo de crise climática”, avalia.


46ª Romaria de Terra / Foto: Victor Frainer

Ele comenta o legado do mártir indígena Sepé Tiaraju. “O grande sonho da Terra sem Males é mais do que atual. Precisamos de uma terra, de uma sociedade sem nenhum tipo de vírus, sem nenhum tipo de doença.” Sobre o tema da Romaria neste ano, “Escutar a mãe terra e com Maria cuidar da vida!”, destaca que, como católico, acredita que Maria é um testemunho vivo do cuidado com a vida. “Uma pessoa de Deus, de comunidade, servidora do povo, pessoa que buscava inspiração não na ideologia dominante da época, mas na memória do seu povo, dos simples”, diz.

Homenagem a Dom Orlando Dotti

Durante a celebração, lideranças de diversos movimentos sociais fizeram falas em homenagem ao bispo emérito da diocese de Vacaria, Dom Orlando Dotti. Sempre presente nas romarias, esteve em quase todas as realizadas no RS e também em outros estados, quando era presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).


Dom Orlando Dotti (sentado na frente) durante apresentação do livro que conta sua história / Foto: Eduardo Martello

A dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Salete Carollo, disse estar emocionada em “poder estar aqui em frente ao nosso grande profeta”. Ela entregou uma bandeira do movimento a Dom Orlando e ressaltou o compromisso do religioso com a terra, com a reforma agrária e a democracia no país, o que “fez com que essas pessoas sem-terra pudessem estar assentadas nesta diocese”.

Luiz Carlos Scapinilli, da Pastoral da Juventude, agradeceu pelos ensinamentos recebidos do bispo a ele e a todas as gerações da Pastoral, em todo o país. “Dom Orlando nos ensinou a sermos testemunhos e fazer o que nós pregamos, por isso eu digo, viva dom Orlando Dotti, profeta vivo!”, clamou.

O padre Leonardo Lunkis, membro da CPT, recordou do apoio do religioso à luta pela terra. “Nós queremos agradecer a ele, a sua presença em todas as romarias. Quando ele não fazia a pregação, a gente encontrava textos escritos para revistas, para jornais, ou mesmo entrevistas em rede de televisão, para animar o povo para estas romarias, e isso é muito importante e muito grande para nós”, recordou.


Movimentos sociais e sindicais na Romaria da Terra / Foto: Katia Marko

Ao agradecer o bispo emérito, o produtor agroecológico da região, Vilmar Menegat, afirmou que a agricultura ecológica é uma alternativa de vida que gera vida. “A nossa agricultura, essa tecnologia, ela vem crescendo, muito obrigado por essa tua confiança”, disse.

O presidente da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do RS (Fetraf-RS), Douglas Cenci, agradeceu, em nome das 294 mil famílias de agricultores familiares do Rio Grande do Sul, à “incansável dedicação” do religioso pelas causas da agricultura familiar. “Dom Orlando é um dos pais do novo sindicalismo, o qual lutou e conquistou um conjunto de políticas públicas e direitos que transformaram e mudaram a vida de milhares de agricultores familiares em todo o Brasil”, afirmou.

João Orly, membro da coordenação estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB/RS), lembrou de uma ocasião em que Dom Orlando enfrentou a polícia para deixar o povo passar em uma estrada. “Chegou uma luz pra nós naquela hora. A polícia disse: o Dom Orlando pode passar pela estrada, e o povo estava indo pelo mato pra chegar lá onde nós tínhamos que ir, e o Dom Orlando disse: Não, se o povo vai pelo mato eu também vou pelo mato. Essa história mostra o coração dele.” 


Feira popular foi realizada junto da Romaria da Terra em Ipê / Foto: Katia Marko

Padre Cláudio Prescendo, bispo de Vacaria, considera Dom Orlando um dos maiores presentes recebidos. “Ele significou e continua significando para a igreja de Vacaria, um processo de formação permanente, e deste processo os movimentos populares, movimentos de mulheres, o novo sindicalismo, os movimentos sociais, os movimentos políticos, todos são frutos de um processo de formação permanente.”

Membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Regional Sul, Ivan Cima exaltou a santidade e a fé inabalável de Dom Orlando, “encarnado no meio dos pobres, dos sem-terra, dos camponeses e camponesas, no meio dos povos indígenas aos quais nunca mediu esforço no sentido de se colocar a serviço como pessoa e como igreja, tendo em vista a garantia dos direitos a vida, a terra, e a justiça social”. Segundo ele. no entender do Cimi Sul, o religioso “foi um profeta da igreja junto aos menos favorecidos”. 

Após as homenagens, Dom Orlando agradeceu e disse que apenas procurou manter-se fiel às suas raízes. “Sou filho de colono, tenho cara de colono, tenho voz de colono, e tenho coração de colono. Quando eu digo colono, eu estou incluindo todos os que trabalham na terra, e qualquer maneira que trabalham, mas privilegiando principalmente aqueles que trabalham de uma forma ecológica, no trabalho principalmente familiar.”


Sementes crioulas na 46ª Romaria de Terra / Foto: Katia Marko

Melhorar a vida de quem trabalha na terra

“Uma verdade que se disse aqui e que é muito forte na minha mente, nós quisemos sempre que os movimentos sociais tivessem a sua autonomia, que não fossem arrastados pelo nariz, pelo bispo ou por quem quer que seja, mas que eles criassem a sua metodologia, que eles criassem os seus objetivos, e acima de tudo lutassem por eles. Nós vimos nos movimentos sociais, e também nas pastorais sociais, um caminho para a renovação da sociedade, a sociedade não se reforma por aquilo que vem de cima, mas por aquilo que vem da base, a base é que vai trazer mudanças, profundas e verdadeiras mudanças dentro da sociedade”, disse o bispo emérito da diocese de Vacaria.

Sua fala também reforçou a luta pela terra. “Quem não tem terra e trabalha na terra é um escravo, e quem tem pouca terra muitas vezes também se torna um escravo, e a luta é muito maior, deve organizar o trabalho rural para que ele também seja devidamente recompensado. O nosso sistema capitalista explora o operário pela sua mão de obra, e explora o agricultor pelo fruto do trabalho mal pago, quase sempre. Isso nós queremos que fique bem claro, nas romarias da terra terão muitos aspectos diferentes, todos valem, todos muito válidos, como é esse deste ano aqui em Vacaria, mas não podemos perder de vista o grande objetivo, melhorar as condições de vida de todo o agricultor, de todo aquele que trabalha na terra, para que o seu trabalho seja devidamente recompensado.”

Denunciar e anunciar

Após o evento, foi lançada a carta da 46ª Romaria da Terra. Nela foram feitas denúncias e anúncios.

Denunciar:

– a economia concentradora e injusta que acoberta a invasão das terras indígenas no Brasil;
– toda forma de violência contra os povos mais humildes, especialmente as mulheres;
– o uso indevido de venenos na agricultura, com a liberação indiscriminada de agrotóxicos;
– a ideologia da meritocracia que discrimina os menos favorecidos;
– o uso e a manipulação de Deus para justificar a opressão e a manipulação do povo.

Anunciar:

  • – a Reforma Agrária, a agricultura familiar e agroecologia como meios para a justiça social;
  • – a partilha, o associativo e o comunitário como construtores de uma sociedade saudável e justa;
  • – a participação do povo de forma consciente como forma de gestar a paz e o sadio convívio;
  • – a agroecologia e as sementes crioulas como bandeiras permanentes;
  • – a produção e consumo de alimentos agroecológicos e orgânicos;
  • – o irmão indígena Sepé Tiaraju como inspirador e mártir na luta pela Reforma Agrária;
  • – os jovens organizados e conscientes como sinais de esperança;
  • – as mulheres organizadas como protagonistas da vida e da esperança;
  • – as comunidades de fé e convívio como alento e impulso para os /as filhos/as de Deus.

Podcast De Fato fala da Romaria da Terra

A edição do podcast De Fato deste sábado (10) teve como tema a 46ª Romaria da Terra. Assista ao programa que recebeu Luiz Antônio Pasinato, coordenador da Comissão Pastoral da Terra no RS, que é uma das entidades que organizam o evento.

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