A convocação de todos os fiéis à escuta das moções surpreendentes do Espírito quer visar exatamente a essa reconfiguração do corpo institucional da Igreja – que não pode ocorrer por ditames do magistério, mas somente mediante práticas efetivas do “caminhar juntos” entre as muitas diversidades que compõem a crença católica de hoje. A opinião é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 14-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto, do IHU.
Eis o artigo.
Com a publicação do documento preparatório (apresentado junto com um Vademecum para os bispos), iniciou-se formalmente o processo do “Sínodo 2021-2023. Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão” – que será inaugurado, em nível de Igreja universal, nos dias 9 e 10 de outubro em Roma (e na semana seguinte nas Igrejas locais).
Trata-se de um texto ágil e, em sob alguns pontos de vista, surpreendente. Cerca de 20 páginas, com um layout gráfico preciso e cativante, sem as redundâncias de um magistério mais empenhado em citar a si mesmo do que em instruir o início de um processo de pensar e fazer juntos. São poucas as notas de rodapé, que no passado serviam para assegurar, por meio de uma continuidade artificialmente construída, que, de fato, não aconteceria nada (ou pouco) no sínodo em preparação.
Um destinatário inédito
Aqui começa a surpresa do leitor acostumado com anos de leitura de documentos eclesiais. Do documento que ele tem em mãos agora, ele não é mais o destinatário – em vez disso, são as comunidades locais, as paróquias, os cristãos e cristãs comuns.
O esforço de redigir um texto para esses sujeitos eclesiais é evidente e merece ser destacado. Sobretudo porque o documento preparatório não lhes diz o que eles devem fazer, mas dirige perguntas cujas respostas só podem vir das práticas cotidianas da fé vivida juntos em comunidade.
O discernimento não só do estilo da Igreja que virá, mas também da sua estrutura institucional, é confiado às práticas da fé sob a orientação segura do Espírito – verdadeiro protagonista da intenção redacional desse documento preparatório.
A referência ao Espírito e às comunidades faz desse documento um texto que escapa das mãos de quem o compôs e da instituição que se encarrega dele com autoridade. Ao mesmo tempo, as comunidades e as Igrejas locais são convidadas a recordar a relatividade da sua experiência de fé eclesial – sempre inserida no horizonte variado e complexo de uma catolicidade que só pode ser conjugada no plural.
Na história comum
O documento abre com um “apelo a caminhar juntos” – um sinal de que estamos entrando em um território obsoleto, que há muito tempo não é praticado na edificação da arquitetura geral da Igreja Católica. Um apelo que enraíza as comunidades eclesiais e a instituição na história comum dos homens e das mulheres do nosso tempo.
A esse respeito, oferece-se um breve diagnóstico da condição atual: marcada “pela tragédia global da pandemia da Covid-19 (…) que fez eclodir as desigualdades e as disparidades já existentes” (n. 5).
Diante dessa condição, a Igreja (para poder ser voz profética na história e para a história comum) é chamada a “refundar-se” (termo escolhido em vez de “reformar-se”) a partir de processos de sinodalidade efetiva e eficazes.
Se assim for, então só lhe resta entregar a palavra a todos aqueles que habitam às margens do nosso tempo – não só na sociedade, mas também e sobretudo na própria Igreja.
A dupla admissão de que a Igreja, ao afirmar a fidelidade à sua própria missão, gera marginalizados e produz vítimas é certamente necessária. Se, por um lado, a intenção de conceder a palavra a essas pessoas não é apenas louvável, mas também profundamente evangélica, por outro, é preciso reconhecer que a Igreja Católica ainda não foi capaz de ouvir deles, recebendo a sua indicação, quais transformações das estruturas eclesiais são necessárias para que essa concessão da palavra não se transforme em mais uma ferida, violência e distância.
O texto parece, pelo menos, ter consciência disso, quando se afirma que se um estilo sinodal “não se encarnar em estruturas e processos (…) degrada-se facilmente do nível das intenções e dos desejos para o da retórica” (27).
A convocação de todos os fiéis à escuta das moções surpreendentes do Espírito quer visar exatamente a essa reconfiguração do corpo institucional da Igreja – que não pode ocorrer por ditames do magistério, mas somente mediante práticas efetivas do “caminhar juntos” entre as muitas diversidades que compõem a crença católica de hoje.
Sob essa ótica, não podemos esperar repercussões estruturais imediatas, pois os processos são dinâmicas de longo prazo que requerem tempo para chegar a resultados efetivos, estáveis e compartilhados.
Se o documento preparatório não pôde se eximir de recolher o temor generalizado de uma confusão entre sinodalidade e procedimentos democráticos (obsessivamente repetido em muitas partes), ele também procura suavizar os seus tons: na Igreja Católica, não devem ser assumidos aqueles procedimentos que reduzem o processo decisório a gestos de maiorias.
O “+1” não é um sinal do estilo com que procede a comunidade cristã, na sua versão católica, quando se trata de discernir para onde o Espírito empurra a Igreja na história. Não o é “na base da participação em qualquer processo sinodal está a paixão partilhada pela missão comum de evangelização, e não a representação de interesses em conflito” (n. 14).
Sinodalidade e princípio hierárquico
Se essa é a diferença entendida pelo documento preparatório entre sinodalidade eclesial e democracia representativa majoritária, não é evidente, porém, por que e como ela pode ser salvaguardada e realizada apenas “no seio de uma comunidade hierarquicamente estruturada” (n. 14). Não é evidente, por um lado, porque mesmo a forma democrática moderna do viver juntos tem as suas estruturas hierárquicas.
Não o é, por outro lado, precisamente porque o princípio hierárquico, de fato, é o principal obstáculo à implementação efetiva de uma Igreja sinodal – em que a escuta não é mero exercício retórico, mas lugar de discernimento e verificação que traz consigo uma normatividade própria que o corpo hierárquico da Igreja não pode simplesmente ignorar por força da ordenação sacramental.
A tensão entre forma sinodal e princípio hierárquico, que é constitutiva da Igreja Católica, que subsiste exatamente nela, corre o risco de se resolver em uma contradição de fundo por causa do medo de uma inserção de dinâmicas democráticas na vida da Igreja. Enquanto, muito provavelmente, esse é precisamente um desafio do momento presente para o catolicismo – também em vista daquele dever profético perante uma sociedade civil, várias vezes recordado pelo documento, cujos procedimentos democráticos estão cada vez mais em crise e frágeis.
Apesar de toda a boa vontade do documento preparatório, não se consegue se livrar da impressão de que a Igreja Católica, do modo como ela é agora, ainda é imatura e incapaz de configurar segundo o Espírito a tensão entre forma sinodal e princípio hierárquico. A forma mentis generalizada, e muitas vezes invocada também e precisamente pelos setores progressistas do catolicismo, considera o princípio hierárquico como uma espécie de juiz tutelar do princípio sinodal (que nunca será grande demais para caminhar e decidir por si só).
Essa impressão permanece, porque, no fim das contas, o próprio documento confia a concretização real da sinodalidade na Igreja à boa vontade e à eventual obediência ao Espírito por parte da hierarquia (que não pode ser institucionalizada).
Se o princípio hierárquico permanece como a condição sine qua non do princípio sinodal, então “Igreja e Sínodo” não são sinônimos – como afirmava João Crisóstomo, chamado em causa em relação à reconstrução histórica para afirmar a estrutura constitutivamente sinodal da Igreja Católica; e se, de fato, o ordenamento hierárquico é o que impede historicamente uma refundação sinodal da própria Igreja, então o risco de se encenar uma farsa retórica é sério e real – e como tal deveria ser levado na devida consideração.
A Escritura contra a retórica
A referência à Escritura oferece uma chave de leitura e, talvez, uma saída para esse risco da retórica. Por um lado, Atos 10, o relato da chamada conversão de Cornélio, é lido como a “narrativa da conversão de Pedro” (n. 22) – ou seja, como aquela “experiência do Espírito em que Pedro e a comunidade primitiva reconhecem o risco de colocar limites injustificados à partilha da fé” (n. 16).
Por outro lado, encontramos a referência à “cena comunitária” fundadora das narrativas do Evangelho, com três atores que só podem ser protagonistas se atuarem juntos: Jesus, a multidão, os apóstolos – aos quais se acrescenta a do antagonista à boa circulação do Evangelho. Trata-se da “abertura constante de Jesus ao interlocutor mais vasto possível (…) ‘o povo’ da vida comum, o ‘qualquer um’ da condição humana” (n. 18).
Diante desse fato, “a eleição dos apóstolos não é o privilégio de uma posição exclusiva de poder e de separação, mas sim a graça de um ministério inclusivo de bênção e de comunhão. Graças ao dom do Espírito do Senhor ressuscitado, eles devem salvaguardar o lugar de Jesus, sem o substituir: não para colocar filtros à sua presença, mas para facilitar o seu encontro” (n. 19).
São ideias, justamente, que indicam uma pista para não degradar o princípio sinodal que faz a Igreja Católica a mera retórica que confirma o status quo. Mas se trata de ideias, em uma Igreja que ainda não se libertou do hábito secular segundo o qual são as estruturas dadas que ditam as práticas futuras, e não as práticas da fé que geram as formas institucionais do crer juntos.
A convocação de todos ao processo sinodal, certamente atravessado por essas permanentes ambiguidades, representaria justamente o impulso para uma mudança de rumo: pedindo ao cristão comum e às comunidades que expressem um juízo sobre a cultura sinodal existente dentro das suas Igrejas locais (cf. o último capítulo do documento, “Dez núcleos temáticos a aprofundar”).
Um juízo que já circula, expressado várias vezes – francamente até agora com pouca escuta da parte institucional. Um juízo certamente chamado, também ele, ao discernimento e à autocrítica, que, porém, não suportaria mais ser convocado e desatendido ao mesmo tempo.
O último chamado
Falhar na implementação do juízo das práticas cotidianas da fé, precisamente em uma ocasião em que o sujeito, o objeto e o método do Sínodo coincidem entre si, significaria fechar de uma vez por todas o canteiro de obras de uma catolicidade real, concreta e compartilhada da Igreja. Que acabaria assim por se render definitivamente àquele seu sectarismo que ela já conhece hoje, que não parece tão diferente, aliás, do tribalismo identitário que circula nas nossas sociedades contemporâneas.
Se assim for, a Igreja se despojará das vestes daquela profecia a ser anunciada dentro de uma sociedade que não consegue assumir um projeto comum, na falta daquele que é um verdadeiro mandato evangélico no tempo presente – um kayrós certo de Deus na história humana de todos.