ColunistasPadre Joaquim Jocélio

Tempo de dar vista aos cegos

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

A reflexão sobre os jubileus se desenvolveu bastante depois do Exílio da Babilônia. Quando os exilados voltaram para a terra de Israel e buscavam construir uma nova vida, uma nova sociedade. Era importante a reflexão jubilar sobre retomar as terras, o perdão das dívidas, libertação de escravizados endividados. Isso tanto numa perspectiva mais pessoal (grupos que desejavam recuperar terras dos antepassados antes do Exílio) quanto mais social (construir um Israel a parir do direito e da justiça social). 

Assim, livros como o Terceiro Isaías (Is 56-66), escrito depois do Exílio, retomavam essas reflexões, crendo que uma nova sociedade se construiria a partir da justiça social. Por isso, o tema do Jubileu, do Ano da Graça do Senhor, também reaparece: “O Espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu. Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros, para promulgar o ano da graça de Javé, o dia da vingança do nosso Deus, e para consolar todos os aflitos, os aflitos de Sião, para transformar sua cinza em coroa, seu luto em perfume de festa, seu abatimento em roupa de gala (Is 61,1-3). Jesus, na sinagoga de sua terra Nazaré, lê esse texto de Isaías, como nos apresenta o evangelista Lucas. Mas não lê o texto todo e faz significativas correções e acréscimos: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19).

Jesus assume aquilo que em Isaías era promessa e com ele é cumprimento. O HOJE no Evangelho de Lucas é muito frequente e significativo. Em Jesus se dá o AGORA da salvação de Deus. O Terceiro Isaías falou no profeta que ungido por Deus anunciava o grande Jubileu, o Ano da Graça do Senhor onde os pobres, oprimidos e marginalizados seriam libertados. Para Jesus, sua vinda, sua missão é fazer acontecer esse Ano da Graça que é libertação e vida. Mas é importante destacar algumas diferenças do texto de Isaías e sua menção feita em Lucas. Isaías menciona curar os corações feridos, o dia da vingança de Deus e o consolo que transforma o luto do povo em festa. Lucas não retoma esses temas. A vingança de Deus por razões óbvias. O Deus que Jesus revelou não é vingativo. Não quer revanche contra os países opressores do povo exilado como pensou Isaías. Além disso, a ênfase de Jesus apresentada por Lucas não era a cura dos corações nem consolo do luto, embora sejam temas importantes. Mas em Isaías estavam muito ligados ao contexto do pós-exílio quando o povo saíra da dominação babilônica e estava sob uma relativamente “calma” dominação persa. No tempo de Jesus, sob a pesada dominação romana e com a religião sendo usada para manipular e alienar, o foco de Jesus era outro. E aqui vale a pena destacar o acréscimo lucano: dar vista aos cegos

Tal expressão não aparece no texto do Terceiro Isaías, mas é mencionado no Segundo Isaías (Is 40-55), no primeiro Poema/Canto do Servo Sofredor. Nele se afirma que o servo do Senhor veio “abrir os olhos dos cegos, para tirar os presos da cadeia, e do cárcere os que vivem no escuro” (Is 42,7). Aparece novamente o tema da libertação dos presos e oprimidos, mas com ênfase na vista aos cegos. Jesus sempre dedicou uma atenção especial as pessoas com deficiência. Tão discriminadas em seu tempo, até pela religião. Vistas como amaldiçoadas ou pecadoras. Basta pensar no cego de nascença no Evangelho de João, quando os discípulos perguntam a Jesus: “Mestre, quem foi que pecou, para que ele nascesse cego? Foi ele ou seus pais?” (Jo 9,2). Cuidar dessas pessoas excluídas, vistas como impuras por não poderem ler a Palavra de Deus, discriminadas, foi entendido por Jesus como parte da sua missão e expressão do Reinado de Deus. Por isso, quando João, já na prisão, enviou discípulos seus para saber de Jesus se ele era mesmo o messias, Jesus não respondeu sim ou não, mas mostrou os sinais do Reino: “Voltem e contem a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Mt 11,4-5).

Mas esse tempo jubilar da graça de Deus que foi a vida de Jesus e é a nossa missão é mais do que cuidar dos que vivem a cegueira física. É preciso cuidar da cegueira espiritual. Muito comum nas autoridades religiosas do tempo de Jesus e em nós cristão hoje. Inclusive, no debate sobre a cura do cego de nascença, Jesus questionou a cegueira dos fariseus: “Alguns fariseus que estavam perto dele ouviram isso e disseram: ‘Será que também somos cegos?’ Jesus respondeu: ‘Se vocês fossem cegos, não teriam nenhum pecado. Mas como vocês dizem: ‘Nós vemos’, o pecado de vocês permanece’” (Jo 9,40-41). A cegueira deles é porque eles dizem ver, mas na verdade não veem, ou fingem não ver. A cegueira espiritual é gravíssima. Trata-se de não conseguirmos ver o mundo a partir da fé, por mais religiosos que possamos parecer.

Trata-se de não enxergar Jesus presente nos pobres, oprimidos e sofredores; é não ver que as injustiças, discriminações e preconceitos são pecados que ofendem a Deus; é não olhar a natureza não simplesmente como meio ambiente, mas como obra do Criador a qual devemos cuidar; é não perceber que toda a nossa vida deve ser vivida a partir do jeito de Jesus; é não enxergar que o Espírito nos fala por meio de diversas situações e pessoas (sinais dos tempos); é não ver nos diversos sinais de vida, solidariedade e amor a presença de Cristo vivo, Ressuscitado. Tudo isso e muito mais é cegueira espiritual. Esse Ano Jubilar é, portanto, tempo de nos deixarmos curar pelo Senhor, de lutarmos contra nossas cegueiras espirituais e, assim, podermos também nós dar vista aos cegos, ajudar nossos irmãos e irmãs a enxergarem a partir da fé, a olhar como Jesus olhou

Nosso querido e amado Papa Francisco, que nos deixou em 21 de abril, muito nos ensinou a olhar a partir da fé, a partir de Jesus. A enxergar o Senhor nos pobres e oprimidos, a olhar o mundo com os olhos da misericórdia. Ele que convocou esse Jubileu da Esperança, interceda por nós para que esse seja de fato um tempo especial para abrirmos nossos olhos e para que possamos também ajudar o povo de Deus a enxergar os sinais do Espírito, a ver a partir do Evangelho. 

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