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Um novo jeito de ser CEB

Podcast Outro Papo de Igreja, do Serviço Teológico Pastoral

Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Apresentação do problema

Em recente Encontro Mineiro de CEBs o Pe. Manoel Godoy fez uma oportuna provocação para nossa reflexão, e quero desenvolvê-la aqui[1]. Partindo da constatação de que as Comunidades dos anos 1970 a 90 se acabaram, afirmava não adiantar mais insistir naquele mesmo modelo e nos desafiava a encontrar um novo jeito de ser Comunidade Eclesial de Base. Para levar em frente essa reflexão é preciso analisar com atenção o que aconteceu com o modelo das CEBs dos anos 1970-90, perguntando: elas se extinguiram naturalmente, por terem esgotado seu potencial de ação? ou foram canceladas pelo poder eclesiástico antes que chegassem a se desenvolver plenamente? Na primeira hipótese, trata-se de formular um projeto diferente; na segunda, trata-se de resgatar o projeto abortado adaptando-o à realidade atual.

O contexto histórico de origem das CEBs

Buscando uma resposta sociológica ao problema, vejo a criação das CEBs nos anos 1960 como resposta a duas mudanças históricas. A primeira, interna ao âmbito eclesiástico, foi a orientação pastoral do Concílio Vaticano II que motivou (i) o acesso à Palavra de Deus por leigas/os, principalmente em forma de Círculos Bíblicos (Dei Verbum); (ii) a renovação litúrgica possibilitando a celebração dominical sem padre (Sacrosanctum Concilium); (iii) a coordenação da Comunidade formada por suas lideranças leigas (Lumen Gentium) e (iv) a abertura à ação social-transformadora do Mundo (Gaudium et Spes). A segunda, externa à Igreja, foi o advento de outra forma de sua relação com as instituições da Sociedade: as transformações sociais, políticas e econômicas após a II Guerra Mundial, fizeram desmoronar o regime de cristandade onde a Igreja católica exercia a direção intelectual e moral do conjunto social. No Brasil essa mudança foi agravada pelo regime militar instaurado pelo golpe de 1964, que rejeitava a orientação da Igreja quando ela não reforçava as diretrizes da Doutrina de Segurança Nacional.

No Brasil, o primeiro reflexo dessas mudanças na Igreja foi a carência de padres para manter a estrutura paroquial no contexto de urbanização acelerada, pois o rápido crescimento da população das periferias urbanas obrigava o clero a improvisar lideranças leigas para assegurar as celebrações dominicais, conforme já ocorria em certas zonas rurais onde a presença do padre era esporádica. Nesse contexto, o impulso renovador do Concílio provocou a criação das CEBs em forma de experiências localizadas em algumas dioceses e paróquias do Brasil. Impulsionadas pelos Encontros Intereclesiais, elas se multiplicaram pela América Latina e Caribe. Embora variassem bastante quanto à forma que recebiam em cada lugar, elas se constituíram como elemento importante da nova estrutura pastoral dessas dioceses, como alternativa à paróquia centralizada na figura do padre. Daí o fascínio que as CEBs passaram a exercer entre quem busca reformatar a Igreja a partir das diretrizes do Vaticano II.

Contexto histórico do enfraquecimento das CEBs

A mudança veio no final do século. Finda a guerra fria, o neoliberalismo – fundado na liberdade individual e do mercado – se impõe como ideologia global, levando a Igreja católica a reagir pela “volta à grande disciplina” – como bem qualificou J.B. Libanio o processo de retificação das mudanças introduzidas pelo Concílio, sob os Papas João Paulo II e Bento XVI. Ponto importante nesse processo foi o estímulo à formação do clero em seminários fechados e a ordenação de diáconos permanentes. Posto que a população católica diminuiu, a proporção de padres por fieis aumentou. Isso facilitou a retomada do modelo paroquial tridentino, onde as comunidades são sucursais da matriz, em posição igual às antigas capelas. Mais recentemente, a pandemia de covid-19 fez difundirem-se as missas transmitidas por TV e internet, que atendem quem não pode ou não quer frequentar sua paróquia, e isso a fez adaptar suas celebrações ao modelo midiático.

Foi superada, então, a necessidade pastoral das CEBs para o atendimento religioso da população católica. Sob esse ponto de vista, elas teriam sido a solução encontrada para preencher a falta de serviços religiosos para a população, recorrendo aos dispositivos inovadores trazidos pelo Concílio. Passada aquela crise, porém, a paróquia, agora cosmeticamente renovada e tendo por complemento as celebrações midiáticas, estaria retomando seu lugar como unidade básica da Igreja. Toda aquela mudança teria sido como o rio que retoma seu leito natural depois da enchente. Parece-me que isso é o que pensam os setores eclesiásticos presos à pequena tradição dos Pios[2].

A extinção das CEBs

O atual modelo de paróquia é fruto da interpretação do Concílio Vaticano II sancionada pelos papas João Paulo II e Bento XVI. Vejamos: (i) os Círculos Bíblicos, espaços de reflexão da Palavra de Deus, foram substituídos por grupos de práticas devocionais – como a Adoração do Santíssimo, o Terço dos Homens, momentos de Louvor e inúmeras novenas; (ii) novas normas litúrgicas vieram restringir a liberdade das comunidades em sua celebração dominical ; (iii) a coordenação colegiada da comunidade foi transferida a pessoas nomeadas pelo pároco; enfim, (iv) em vez de incentivar a Igreja em saídapela participação dos fiéis em Movimentos populares ou de defesa dos Direitos Humanos, a paróquia diversifica suas atividades internas promovendo obras sociais de cunho assistencial ou visita a pessoas doentes. Assim, as inovações do Concílio foram acomodadas à estrutura paroquial.

Cumpre notar que essas reformas pastorais, que esvaziaram as CEBs e reforçaram a paróquia renovando o modelo tridentino, não seguiram o mesmo ritmo: em algumas dioceses ou paróquias a nomeação de novo bispo ou pároco logo provocou mudanças drásticas; noutras, levou tempo porque a mudança passou pela asfixia lenta, mas eficiente, das antigas práticas pastorais de CEBs.

Essa explicação sociológica assume que as CEBs foram uma solução pastoral emergencial no final dos anos 1960, dada a carência de padres e, por isso, foram abandonadas à medida em que novos padres, diáconos, mídia e redes digitais católicas passaram a atender a demanda religiosa dos católicos. Por isso, elas ainda sobrevivem em regiões onde faltam padres – como na Amazônia – mas com o tempo também lá poderá organizar-se a estrutura paroquial, com a colaboração de Movimentos carismáticos e similares. Isso supõe, é claro, a renovação cosmética da paróquia para conformar-se à Teologia do Concílio Vaticano II agora interpretada pelo Código de Direito Canônico e pelas prescrições do Catecismo da Igreja Universal.

Conclusão: para uma nova forma de CEB

Ao responder à questão colocada no início, afirmei que as CEBs não se extinguiram naturalmente ao esgotar-se seu potencial pastoral, mas foram canceladas pelo poder eclesiástico que privilegia a estrutura paroquial. Por isso, não se trata agora de formular um projeto diferente, mas sim de resgatar o projeto abortado adaptando-o à realidade atual. Esta não é, porém, tarefa fácil, mesmo sendo ajudado pelo método ver, julgar e agir.

Ao ver a realidade das três últimas décadas, percebe-se que o Brasil, como outros países, está no meio de uma confluência de crises: (i) a emergência climático-ambiental, (ii) as tensões geopolíticas que causam a atual guerra mundial “em pedaços” – como disse Francisco – e podem causar um conflito nuclear global, (iii) a quebra da solidariedade entre ricos que vivem dos juros do sistema financeiro e/ou da apropriação privada dos bens comuns, e os pobres cuja força de trabalho é submetida à lógica da informática e (iv) o abalo da confiança nas instituições democráticas.

Essas crises se sobrepõem e geram uma situação de desastre para a espécie humana e para a grande comunidade de vida da Terra. Estamos nos aproximando perigosamente do ponto de ruptura entre a minoria de ricos e superricos e a grande maioria da população empobrecida, sempre ameaçada pela fome e pela miséria – no Brasil e no mundo.

Essa confluência de crises gera o clima de insegurança e medo que hoje toma conta do mundo, como se uma força ou entidade maligna secretamente agisse contra a Humanidade. Assim, esse medo difuso deriva para o sentimento de ódio contra quem parece ser aquela força ameaçadora e gera a narrativa da impotência da Democracia para combater a violência. Este é o terreno propício ao fascismo como ideário político que trata qualquer adversário como inimigo a ser eliminado. Embora diferente do fascismo que provocou a 2ª Guerra Mundial, o atual fascismo adota o ideário liberal: um Estado fraco nas Políticas Sociais, mas forte na repressão a quem se opõe a esse ideário. Enfim, o atual fascismo assume o patriarcado como única forma admissível de família. Nele o poder se concentra no pai de família, que detém a propriedade dos bens (patrimônio), o poder sobre a mulher e as filhas (o cabeça do casal) e não admite contestação de seus empregado/as (patrão).

É nessa realidade ameaçada pelo crescimento do fascismo que o Cristianismo deve pregar a solidariedade! Impõe-se retomar a experiência histórica das Comunidades Eclesiais de Base como espaços de anúncio e vivência da solidariedade humana. Aqui um grande desafio!

Para responder a esse desafio, a metodologia recomenda passar ao Julgar, retomando o fundamento teológico das CEBs: o documento nº 25 da CNBB, de 1982, que define as CEBS como nova forma de ser Igreja.Esse documento foi recebido pelas CEBs como referência teológica porque assume e desenvolve o que já dizia sobre elas o Documento de Medellín, e não há motivos para deixa-lo no esquecimento – a menos que se esqueça também a recepção latino-americana do Concilio em 1968. Sobretudo, o julgar exige um confronto com as raízes da Igreja que gerou as CEBs: o processo histórico no qual a Igreja nasceu, se desenvolveu e, passando por momentos de reinvenção em diferentes conjunturas, institucionalizou-se. A História mostra que o núcleo bíblico das primeiras comunidades cristãs continua vivo e pode sustentar novas formas de ser Igreja.

Enfim trata-se de agir: interpeladas a ser uma realidade eclesial mutante e dinâmica para dar conta de atender uma população mais diversificada do que no século passado, as CEBs precisam retomar o modelo dos anos 1970-90 – cancelado antes de realizar seu potencial – não para copiar, mas como fonte de inspiração criativa. Assim, devemos tomar as CEBs modelo 70-90 como sementes que precisam ser bem conservadas para desabrochar no tempo oportuno. Trata-se de guardar essa memória como semente!

Vejo duas possibilidades. A primeira, é para dioceses onde as CEBs contam com o apoio do bispo. Ele deve aproveitar todos os meios disponíveis na diocese para incentivá-las, ainda que enfrente a oposição de outros bispos, de parte do clero local e até da própria população católica. Sem recear divisões – pois todo processo de mudanças passa por momentos de ruptura – trata-se de incentivar a autonomia das CEBs como base da Igreja, colocando-se a paróquia como estrutura de serviço a elas. A outra possibilidade é – nas dioceses cujo bispo não favorece as CEBs – refugiar-se junto a algum Movimento de cunho ecumênico, onde também se cultive a espiritualidade político-libertadora, de modo a manter viva a semente das CEBs enquanto se aguarda um tempo favorável.

Em ambos os casos as CEBs nos anos 1970-90 seriam referência, não modelo a ser reproduzido, porque é outra a realidade que hoje vivemos. As referências estruturais – reflexão em grupo sobre a Palavra de Deus, celebrações enraizadas na realidade local, coordenação eleita e colegiada, e ação transformadora na sociedade – não podem ser abandonadas, mas sua forma de realização pode e deve ser adaptada aos tempos atuais. Há muito a ser criado nessa Caminhada!

Juiz de Fora, 24 de agosto de 2024.

Nos 80 anos de frei Betto,
arquiteto dos primeiros Encontros Intereclesiais de CEBs.


[1] Agradecendo muito a ele e ao Pe. Aquino Júnior pela leitura crítica à primeira versão deste texto.

[2] Expressão de. J. B. Libanio, referindo-se aos papas Pio VII a XII, que eu abrevio para os pontificados de Pio IX a Pio XII.

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