A Questão Urbana no Brasil Contemporâneo

O Iser Assessoria em parceria com a Comissão Episcopal para o Laicato da CNBB – Setor CEBs, promoveu em  2015 o seminário “Perspectivas para as CEBs no pontificado de Franciso”, na cidade do Rio de Janeiro.

No seminário estiveram presentes 50 pessoas que naquele momento assumiam a missão de assessoria às Comunidades Eclesiais de Base, vindas de diversas regiões do Brasil.

Esta atividade coloca-se em continuidade com outras realizadas ao longo de 2011 e 2012, quando as mesmas entidades organizaram quatro seminários de assessores/as de CEBs e os desafios de mundo urbano. Tema do próximo Intereclesial que acontecerá em janeiro de 2018, em Londrina – PR.

Durante o seminário foram apresentadas experiências do Ceará, Santa Catarina e Rio de Janeiro no painel “CEBs e o mundo urbano: Experiências e Desafios”.

A professora Raquel Rolnik, da Unversidade de São Paulo contribuiu para compreensão da complexidade urbana, na conferência “A questão urbana no Brasil contemporâneo”.

Segue um artigo publicado no caderno CEBs e o Mundo Urbano – Perspectivas no pontificado de Francisco, organizado por Solange Rodrigues da equipe do Iser Assessoria.

Leia na Integra:

Apresento rapidamente a trajetória da minha militância. Participei da história da luta pela Reforma Urbana (anos 70 e 80), tive experiências em gestão municipal, na Prefeitura de São Paulo, no governo da Luíza Erundina como encarregada da política urbana, fui assessora de governos municipais.

No primeiro mandato do governo Lula (2003-2007), assumi no Ministério das Cidades a Secretaria de Programas Urbanos. Saí em 2007, depois que Olívio Dutra foi convidado a deixar o Ministério.

Em 2008, tornei-me Relatora Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde permaneci até 2014. É a partir desta trajetória que leio a questão urbana no Brasil hoje.

O ponto de partida da minha reflexão é Junho de 2013. Esse é um marco na luta pelo Direito à Cidade. Não usávamos esta expressão nos anos 70, quando as CEBs foram agentes importantes nas lutas por Direitos Humanos e pelo Direito à Cidade. Hoje, a expressão é um eixo aglutinador de diferentes lutas.

A desigualdade socioterritorial é a característica da cidade brasileira. Dentro das cidades, as possibilidades são assimétricas. Não se trata de um mero reflexo das históricas desigualdades no Brasil. As nossas cidades produzem e reproduzem a desigualdade socioeconômica. O modelo de construção das cidades é de uma cidade para poucos: é um modelo excludente.

Precisamos entender o processo de urbanização brasileiro especialmente a partir dos anos 40. Entre 1940 e 1980 assistimos ao êxodo do campo para a cidade, e das pequenas cidades para as cidades médias e grandes. Assim se constituíram grandes centros urbanos e houve uma inversão populacional: se, até 1940, 80% da população estava no campo, hoje, no Brasil, mais de 80% da população se concentra em centros urbanos.

As pessoas que vieram do campo jamais foram “incluídas” na vida urbana no sentido pleno. Foi um modelo que incluiu sem incluir. Jamais a cidade disponibilizou terra, infraestrutura urbana, moradia, para quem chegou. O seu lugar foi construído pelos próprios chegantes. Os mais pobres, que sempre foram a maioria – 70% a 80% das cidades é constituída de pobres -, autoproduziram seu habitat nas cidades a partir de relações de compadrio, de relações religiosas, sem ter nenhum recurso para isso: sem terra, sem lugar, sem infraestrutura, sem dinheiro. Assim surgiram favelas, ocupações, loteamentos populares, acampamentos, assentamentos. Tudo isso NÃO É cidade. Cidade é espaço infraestruturado, com saneamento, áreas verdes, transporte, mobilidade, espaços sociais etc.. As pessoas fizeram suas casas ali onde não havia cidade.

O planejamento urbano (que existe!) e a política urbana foram construídas para preservar os melhores lugares para os setores de maior renda, para os negócios das construtoras. Os setores econômicos têm a cidade como um negócio, impedindo que o espaço possa ser compartilhado com quem chegou, e que agora já estão na terceira geração. O espaço legal está bloqueado através de um aparato normativo. Assim, por exemplo, nas áreas mais centrais e urbanizadas não é permitida a construção de moradias em modelo multifamiliar horizontal, que é a forma predominante de construção da moradia popular: os quintais compartilhados. Mesmo a política habitacional para os pobres, como o BNH no passado ou o programa Minha Casa Minha Vida hoje, é localizada sobretudo nas periferias urbanas que se tornam o lugar do excluído (os que vivem num não-lugar). Este lugar é considerado RESIDUAL. Não é CIDADE! Em qualquer planejamento urbano, os piores lugares são reservados aos pobres como encostas, alagadiços, áreas da periferia. Em algum momento, os espaços residuais, que foram ocupados pelos setores populares, passam a ser declarados “lugares de risco” e a política pública aplicada é a remoção para alternativas piores, sujeitos a receberem a qualquer momento um “cheque-despejo” e empurrados para uma periferia mais distante.

O lugar do excluído na cidade é reafirmado todo dia: é onde não tem. Qual o problema dos jovens? É morar em lugares marcados pela ambiguidade – são “ilegais”, mas os pobres vão ficando, porque não têm outra alternativa. Nunca é um “ficando-ficado”, regularizado. Prevalece sempre o “não resolvido”. Cerca de 60 ou 70% da população urbana vive assim, em lugar “provisório”. A ambiguidade é constitutiva dessa população. Poderíamos defini-la como “transitoriedade permanente”.

Isto tem um efeito urbanístico e gera muitos efeitos políticos: demarca um território que é constantemente negociado. Os direitos destas pessoas são negociados dia a dia, eleição a eleição. Cada direito é conquistado com muita luta. E a inserção à cidade (as prometidas “melhorias”) tornou-se a grande moeda a cada eleição – água, luz, mobilidade -, traduzido por expressões como “ele olhou para nós”, “ele deu”, “ele fez um favor”, e a gente retribui com o voto. E “ele” pode ser o governador, o prefeito, o deputado, o vereador. É um “favor” e é uma “dívida”. Mas não uma dívida que tem prazo para ser saldada, é infinita. E isso estrutura a linguagem política nas cidades.

Este modelo de política urbana é fundamental para manter a desigualdade, para a manutenção do poder e da renda na cidade, na medida em que as oportunidades urbanas se concentram nas mãos de quem já tem.

Aqui é bom lembrar que o sociólogo Chico de Oliveira mostrou em um texto brilhante nos anos 70 que o custo da moradia não entra no cálculo do salário mínimo, o que Lúcio Kovarick chamou de espoliação urbana. Esse quadro permaneceu assim praticamente até o início do governo Lula em 2003, a partir de quando houve um aumento de renda dos trabalhadores.

Este cenário urbano, decorrente do êxodo rural, seguiu até o final dos anos 70, início dos anos 80, quando nas periferias nasceram os movimentos por direitos (escola, creches, luz, saneamento…). E as CEBs foram o berço que acolheu estes movimentos durante o período da ditadura civil militar.

O que aconteceu de lá pra cá?

Nas vésperas da promulgação da Constituição de 1988, durante o processo constituinte, estes movimentos se aglutinaram em torno da proposta de Emenda Popular da Reforma Urbana, que propôs três elementos fundamentais:

1) Reconhecimento e inclusão plena dos moradores da cidade. É o direito a ter direitos, expresso do ponto de vista urbano;

2) A cidade não pode ser guiada apenas pelo valor econômico da propriedade: existe a função social da propriedade urbana, ou como se diz hoje, a função socioambiental da propriedade. A propriedade não existe só para dar lucro ao proprietário. Ela está sujeita a restrições legais;

3) Ampliação da participação popular na definição das políticas urbanas – hoje a cidade é excludente porque as políticas foram formuladas por e para os beneficiários desta exclusão. Portanto, é através da participação popular que se vai garantir a função social da propriedade.

Com estas bandeiras os movimentos foram à luta, para conquistar estes direitos. Em especial, lutas por moradia, mas também por transporte, por outros bens e serviços. E foi fundamental a presença da Igreja nestas lutas.

O movimento forjou novas lideranças políticas, que compuseram o campo democrático popular (CDP), reunindo políticos do PT; PCdoB; PDT; PSB; PMDB. Prefeitos eleitos por estes partidos buscaram valorizar e ampliar a participação na vida política brasileira com mecanismos como orçamento participativo, conselhos comunitários etc., e fizeram políticas de inclusão, Conferências da Cidade. E também experiências de autogestão de moradia, apoiadas pelo poder público, como as cooperativas habitacionais, todas também apoiadas pela Igreja.

Nos anos 90 foram também estabelecidas as ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, com o objetivo de reconhecer os assentamentos informais e urbanizá-los.

Estes partidos do campo democrático popular foram ganhando espaço na via institucional, culminando com a eleição de Lula em 2002.

No entanto, ao mesmo tempo, foi entrando na cidade a política neoliberal, e nós não percebemos a força deste outro modelo. Logo após a Constituição de 88, iniciou-se no Brasil a implantação do modelo neoliberal, com as políticas de privatização e as parcerias público-privadas (PPPs).

Havia a formulação contida na Reforma Urbana, mas nos anos 90 o país se viu sem recursos para implantá-la. Com a crise fiscal e o ajuste foram surgindo propostas de privatizar luz, água, moradia, abrindo espaço para um processo de financeirização da produção da cidade. A cidade e a política urbana foram sendo capturadas pelos interesses do setor imobiliário. A pergunta passa a ser: onde será o novo projeto urbano que vai oferecer alternativa para maior lucro do capital?

A Copa do Mundo foi o grande momento da consolidação deste modelo entre nós. Ficou claro que, no Estado brasileiro, a política urbana é controlada pelos negócios urbanos (principalmente na área de transportes, no setor imobiliário e as empreiteiras de obras públicas): são eles que definem o que fazer. E se forjou o que Carlos Vainer chamou de “cidade de exceção”. Foram realizadas remoções como não se fazia desde a ditadura.

Com isso, as cidades sofreram um ataque em pinça: de um lado, o global (nenhum país é uma ilha) e, de outro lado, temos as nossas raízes, a herança da ditadura. Isso desconstituiu a luta pela Reforma Urbana, que foi derrotada – provisoriamente!

Como é a organização do Estado brasileiro no que se refere ao urbano?

1) Controle da política urbana pelos negócios: incorporação imobiliária, loteadores, empresas concessionárias de serviços de transporte, empreiteiras de obras públicas que historicamente dominam o Estado, a política urbana, e definem o que vai ser feito. “Que obras vamos fazer para contratar tal empreiteira?” A pergunta não é “o que a cidade precisa?”. Sempre foi assim, só que agora este procedimento está regulamentado. O Estado só paga. A empreiteira faz tanto o projeto e como a obra.

Com a redemocratização, e as campanhas eleitorais cada vez mais caras, estes conglomerados passaram a controlar as verbas de campanha eleitoral. Desde vereador até presidente da República são eleitos por estas empresas, que controlam o Congresso. Todos os grandes partidos políticos entraram neste esquema de financiamento privado das campanhas. Este processo resultou num sistema político totalmente dominado pelo poder econômico.

2) O financiamento do desenvolvimento urbano também está estruturado de acordo com estes interesses. Há recursos para fazer quadras de esporte, escolas, mas não tem para fazer cidade. E as receitas próprias, municipais, não são suficientes, porque dependeria de aumento de IPTU. Os financiamentos para as políticas urbanas estão fragmentados e dependem de transferências que não são obrigatórias: Essas verbas são todas negociadas no campo político, controlado pelo sistema econômico.

3) Qualquer processo decisório não passa por nenhuma instância popular (Conselhos ou Orçamento Participativo até existem!). Ou seja, não é ali que ocorre o processo decisório sobre as políticas públicas. Para os movimentos sociais, acaba também sendo uma armadilha, aonde se negocia sua entrada para pegar uma parte do butim. Por exemplo: apenas 1% dos recursos do programa Minha Casa Minha Vida vai para entidades de autogestão da moradia, e garante que estes movimentos continuem na base do governo. Os 99% restantes vão para as construtoras.

Na perspectivas deste modelo, as políticas de consumo individual têm caminho livre: o espaço privado melhorou, há maior acesso a bens individuais. Enquanto que as políticas coletivas e/ou públicas continuam precárias, sem apoio do poder público, comprometido com as empresas. Voltando ao ponto inicial da fala, Junho de 2013 mostrou a crise deste modelo.

Crise é sempre bom e ruim.

Estamos vivendo a crise do modelo vigente. O modelo atual revelou seus limites. Há saídas?

É preciso apostar na juventude. Na narrativa da busca da Terra Prometida, foram necessários 40 anos de deserto para que surgisse uma geração capaz de concretizar o projeto. Estamos com uma equação complexa: temos uma juventude com um novo pique, que já nasceu com a democracia, que não viveu as lutas do passado, que está entrando na universidade e está questionando tudo.

Junto, há também o risco do fascismo, a exacerbação do consumo, que é a ideologia dominante, e uma enorme dificuldade de desconstruir este discurso. Mas há muita coisa nova crescendo na base, cultura e arte se articulando com o direito à cidade. Na década de 80 havia utopia, esperança. Mas hoje não há um horizonte no sentido de uma “utopia”. Existem vários experimentos. Hoje se busca “viver” primeiro.

Temos obrigação de contar a história da redemocratização e das lutas pelo Direito à Cidade para os jovens. E precisamos contar com as CEBs para isso!

Trabalho de Grupos:

Após a exposição, os participantes do seminário se dividiram em pequenos grupos para refletir sobre o que ouviram, e trouxeram para o plenário seus comentários e dúvidas. Foram abordados temas como os condomínios fechados, a violência urbana, o consumismo e individualismo, a oposição entre campo e cidade, os movimentos juvenis nas cidades, formas de socialibidade existentes na cidade, a dimensão utópica.

Comentários finais de Raquel Rolnik:

Mudança territorial nas cidades: investimentos nos “enclaves fortificados” – condomínios, shoppings, bairros fechados – projetos de autossegregação dos setores de maior renda. Murados, vigiados, com tecnologias de segurança, com ruas comerciais no seu interior. Enquanto mais avança isso, mais degradado fica o que está em volta. E as prefeituras adoram, porque não precisam investir nestes espaços. Estes enclaves esvaziam o sentido do público.

É uma resposta ao neoliberalismo dos anos 90, que gerou o crescimento do desemprego, o subemprego… Outras formas de ilicitudes que penetram nas cidades como alternativas de renda – tráfico de drogas e armas, provocando um aumento real da violência. Associado ao desinvestimento nas cidades (prefeituras sem recursos, por causa do ajuste fiscal).

Não é só o individualismo, o consumismo. O shopping é um templo, com segurança. A segregação nos templos do consumo: é a marca de um espaço que não é para todos. Lembremos dos meninos negros e os rolezinhos nos shoppings em São Paulo.

A dimensão estrutural da cidade é o público.

Este movimento neoliberal dos anos 90 deu um passo adiante: hoje não só existem condomínios fechados, mas bairros inteiros. O que tem uma dimensão política: retiram-se espaços inteiros da cidade da mediação política, onde prevalece a Democracia Direta do Capital. Não há mais necessidade de planejamento estatal. As empreiteiras planejam e apresentam o projeto pronto ao governo. O Mercado faz tudo! Exemplo disso no Rio de Janeiro é o “Porto Maravilha”– entregue a uma empresa; bairros inteiros são entregues para empresas privadas. Em vez de investir no público, investe-se no privado.

Isso é o oposto do nosso sonho, da nossa utopia, da democracia direta do povo – da participação popular nas decisões.

A utopia do direito ao espaço público, ao espaço do direito. A ideia dos comuns, do transporte coletivo de qualidade, dos equipamentos coletivos… Se o espaço público fosse bom, não teria problema morar em apartamentos pequenos. As ruas seriam lugar para ficar, não só para passar.

A utopia da juventude, uma coletividade prazerosa, há movimentos anti-mercantilização. O Movimento Passe Livre (MPL): “por um mundo sem catracas!”. Propõe a desmercantilização do transporte público. Republicizar. Desprivatizar.

Outro elemento importante do MPL é a forma de decisão horizontal, sem representantes, sistemas não hierarquizados de poder.

Hoje temos o maior percentual de pessoas na faixa dos 15-29 anos na pirâmide etária do Brasil, cerca de 24% da população. Esta mudança se deveu à queda radical da natalidade e da fertilidade, em todo o território, nas diferentes classes sociais. Com o envelhecimento da população, esta é a última bolha de jovens. A faixa etária de 15-29 anos é, portanto, decisória. E outros elementos entram no mundo desses jovens – comunicação/cultura/imagens/redes sociais/linguagem para esta faixa etária. Como dialogar com esta “maioria”?

Sobre a dificuldade das comunidades de base de trabalharem no contexto urbano: disputam com outras formas de agregação – ou é o tráfico ou as igrejas pentecostais que agregam, constituem sociabilidades.

Dificuldade de operar com a oposição campo/cidade. Não é só cidade – é o urbano como processo de urbanização. Pode-se estar numa aldeia indígena e ser afetado pelas questões urbanas.

Como disputar? Disputar o quê?

Quais são suas propostas de “agregação” no mundo urbano? Percebemos hoje uma “disputa de narrativa”. É preciso oferecer uma outra interpretação. Os grupos disputam as leituras do que está se passando para apontar propostas. Conflitos de interpretação. Esta é a leitura “profética” do momento. Frente a uma narrativa conservadora, é preciso construir uma contra-narrativa.

E evidentemente dar força para a esperança, a utopia. Os movimentos que estão surgindo não têm uma utopia pronta, está em construção. Praticam.

Nas ocupações há uma proposta de política de moradia, mas procuram experimentar, prefigurar: as ocupações já são hoje aquilo que eles querem conseguir.

É preciso uma fala que legitime os fenômenos novos que vem ocorrendo de forma embrionária ainda, e se essa legitimação vier da Igreja, ótimo. Precisamos de alguém que diga a esta juventude que ela não está louca, nem sozinha. E que o que eles querem é legítimo.

Texto publicado em RODRIGUES, Solange (org.). CEBs e Mundo Urbano

Perspectivas no pontificado de Francisco. Iser Assessoria/CNBB, 2016, p.15-24.

 

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