Irmãs Dominicanas com Opção pelos Pobres: exemplo a ser seguido

Por Gilvander Moreira

A dizimação da população indígena do Baixo Jequitinhonha, em Minas Gerais, de forma extremamente sangrenta, e a concentração da propriedade capitalista da terra geraram acumulação de riqueza e poder em poucas mãos. Isso contribuiu, de maneira estrutural para a configuração política e social da região do Baixo Jequitinhonha, conforme afirma Luís Antonio Alves: “O “vale da fartura”, rico para a agricultura, foi transformado num descampado com o mínimo de moradores para a manutenção da pecuária extensiva. Onde moravam centenas de famílias, ficou somente uma pessoa para cuidar de mais de mil bois do coronel. A expressão “vale da miséria” surgiu quando o povo foi expulso das fazendas, indo parar na cidade, sem perspectiva alguma de sobrevivência. Havia muitas promessas dos fazendeiros e políticos, mas nada aconteceu. Chegando à cidade, o povo não teve meios para sobreviver. […]. Restou explorar o rio Jequitinhonha: a lavagem de roupa, a pesca, a extração de areia e de rochas para construção” (ALVES, 2008, p. 31).

A chegada das Irmãs Dominicanas – Irmã Solange de Fátima Damião, Irmã Teresinha de Jesus Reis, Irmã Rosa Maria Barbosa e Irmã Geraldinha (Geralda Magela da Fonseca) – em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, se tornou um divisor de águas na história do povo da região. Por isso, conhecer um pouco da trajetória da Irmã Geraldinha e do trabalho pastoral das Irmãs Dominicanas no município de Salto da Divisa é imprescindível para se compreender a luta pela terra no Baixo Jequitinhonha.

Os fazendeiros do município de Salto da Divisa logo perceberam que a atuação pastoral das Irmãs Dominicanas iria incomodar a ordem estabelecida da região. É o que relata Alves: “Os latifundiários logo perceberam na linha pastoral das Irmãs uma ameaça ao status quo deles. Eles afirmavam que as Irmãs eram do PT e que todos deveriam ter cuidado ao se relacionar com elas. Diziam que elas estavam levando problemas para Salto da Divisa, que criariam divisão entre ricos e pobres, porque os trabalhadores passaram a exigir carteira assinada, não queriam mais votar no patrão, nem em seus candidatos. O medo dos fazendeiros se justificava pela perda do domínio sobre o povo, mas também pelas reflexões que faziam sobre a reforma agrária, fim do trabalho escravo e luta por direitos trabalhistas. A organização e conscientização passaram a ser percebidas através de vários conflitos que foram surgindo entre o povo e a elite da sociedade saltense. As domésticas começaram a reivindicar melhores salários, registro trabalhista e melhor assistência no trabalho junto à patroa. As mulheres que sofriam violência dos maridos começaram a denunciar as agressões na delegacia de polícia, o que provocou reação por parte dos maridos; muitas vezes elas foram forçadas a retirar o boletim de ocorrência. Eles diziam: “Você não vai mais para essas reuniões, pois você ficou diferente. Você não respondia para mim, e agora responde, eu batia sozinho e agora você quer bater em mim”. Irmã Rosa relata que houve muitas separações depois disso. Os trabalhadores rurais, que roçavam os pastos, descobriram que seu salário era uma miséria, e que estavam vivendo num regime de escravidão” (ALVES, 2008, p. 38).

Com 54 anos, Irmã Geraldinha, cujo nome civil é Geralda Magela da Fonseca, é freira das Irmãs Dominicanas, atua pastoralmente em Salto da Divisa desde fevereiro de 1993, na Pastoral dos Direitos Humanos, na luta por direitos ao lado das famílias atingidas pela barragem e hidrelétrica de Itapebi, nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), na Pastoral da Criança e na Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Irmã Geraldinha, pilar fundamental e um dos principais segredos da perseverança dos camponeses Sem Terra na luta pela terra em Salto da Divisa. Antes de se engajar na luta pela terra, Irmã Geraldinha participou da Pastoral Carcerária em São Domingos do Prata, MG, durante dois anos. Na capital de São Paulo, ela trabalhou na Pastoral das Crianças em Situação de Rua. Irmã Geraldinha, ao ser entrevistada, recordou: “A gente ia para a rua e convidava as crianças para ir para uma casa de apoio, onde as crianças tomavam banho, recebiam café da manhã e reforço escolar.” Cerca de 700 crianças em situação de rua eram acolhidas nesses projetos na capital de São Paulo, enquanto irmã Geraldinha estava sendo presença pastoral lá.

Irmã Geraldinha relata o início do trabalho dela e de outras freiras dominicanas em Salto da Divisa: “Depois, ao chegar a Salto da Divisa, MG, no Baixo Jequitinhonha, eu comecei a ouvir muitas famílias reclamando que tinham sido expulsas da terra. Eu vi ali uma possibilidade de trabalhar na origem dos presos e das crianças em situação de rua, os que eu encontrei lá na capital de São Paulo. Começamos, por meio dos Círculos Bíblicos, a refletir sobre a situação das famílias expulsas do campo. Nas décadas de 1970 a 1990, milhares de famílias foram expulsas da terra na região do Salto da Divisa. Como ajudar esse povo a voltar às suas raízes? A gente via que as fazendas eram improdutivas e começamos a luta pela terra. Antigamente os fazendeiros proibiam ensinar a ler e a escrever. Em Salto da Divisa, de 1993 a 1998, trabalhei na Pastoral da Criança, porque tinha muita criança que morria de desnutrição. Incentivamos a plantação de hortas comunitárias e nos fundos de quintais. Na reflexão bíblica, o povo foi descobrindo os direitos que o povo tinha. A gente provocou a descoberta dos direitos sociais. Antes de ocuparmos a terra tivemos que ocupar a consciência do povo oprimido para que se reconhecesse portador de direitos. A casa do Sr. Aldemir, na cidade de Salto, até hoje não tem documento no nome dele. Primeiro, tivemos que semear a terra na cabeça das pessoas desterradas para que eles passassem a acreditar que eles tinham direito. A partir da Bíblia, levamos o povo a descobrir que a terra pertence a Deus e, portanto, a todos. Até nos bancos da igreja tinham os bancos exclusivos da família doadora, por exemplo, o coronel Zimbu. Os coronéis mandavam expulsar quem eles queriam e matar quem eles queriam. Irmã Terezinha, minha colega, trabalhou muito na construção de casas e na construção de fossas sanitárias. Isso por meio de mutirão e captando projetos de solidariedade. Um final de semana, um grupo fazia blocos de cimento e areia e outro grupo construía as casas ou reformava as casas existentes, mas em péssimas condições. A história de Salto da Divisa teve várias etapas de conscientização. Nós, irmãs, fomos acusadas de sermos comunistas. A questão da violência na cidade nos levou a criar o Grupo de Apoio e Defesa dos Direitos Humanos (GADDH), em 1997, após um homem ter assassinado uma mulher a machadada. Isso chocou o povo. Policiais da região não queriam investigar o crime, pois achavam que a culpa era da mulher assassinada. Criamos a Associação Asas da Liberdade, onde buscamos apoio em um grupo francês para fazermos reforço escolar às crianças. A Comarca da cidade de Jacinto, em 1997, não tinha juiz, nem promotor e nem defensor público. Só em Almenara. A prostituição era intensa, inclusive com meninas adolescentes. Os fazendeiros usavam a prostituição para a primeira experiência sexual de seus filhos. E depois, em 1999, o grupo integrante do GADDH abraçou a luta contra a barragem e a hidrelétrica de Itapebi. O latifúndio e o poder público municipal e o estadual estiveram o tempo todo ao lado da empresa que estava construindo a barragem de Itapebi. Até hoje a empresa tem pendências sobre a maioria das medidas compensatórias não cumpridas. As lavadeiras foram pisadas nos seus direitos de lavar roupa nas águas do rio Jequitinhonha. A barragem de Itapebi encheu dentro de um dia, quando as irmãs dominicanas estavam de férias. A empresa se desculpou dizendo que tinha chovido muito. Mentira. Há 13 anos a barragem está cheia e os direitos das lavadeiras, dos pescadores e dos extratores de areia continuam violados. O clamor por justiça continua ensurdecedor. Em Salto da Divisa os fazendeiros agem de forma orquestrada.”

Belo Horizonte, MG, 16/7/2019.

Por Gilvander Moreira[1]
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.brwww.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

Referência.

ALVES, Luís Antonio. Ação Pastoral das Irmãs Dominicanas em Salto da Divisa, MG, de 1993-2005. (Dissertação). São Paulo: Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 2008. Disponível em https://livros01.livrosgratis.com.br/cp080579.pdf 

Obs.: Abaixo, vídeos que versam sobre o assunto apresentado, acima.

1 – Irmã Geraldinha lutando pelos direitos dos atingidos pela barragem e hidrelétrica de Itapebi, em Salto da Divisa:

2 – Em entrevista na TV Comunitária de Belo Horizonte – www.tvcbh.com.br -, no Programa Inconfidências Mineiras, Irmã Geraldinha narra sua história de luta por Direitos Humanos no município de Salto da Divisa, MG. Veja nos seis links a seguir:

a) https://www.youtube.com/watch?v=7Udy_TkEo2w ,

b) https://www.youtube.com/watch?v=p35Mh83VQg4 ,

c) https://www.youtube.com/watch?v=Ek3e-ECzGCQ ,

d) https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY ,

e) https://www.youtube.com/watch?v=UuLxq8v64M4 ,

f) https://www.youtube.com/watch?v=6ixo4G125m8

3 – Documentário da TV Canal Futura “Uma irmã, um rio e muitas terras”, que retrata a luta pela terra  empreendida pela Irmã Geraldinha no meio do povo Sem Terra, dos posseiros e atingidos pela barragem e hidrelétrica de Itapebi, em Salto da Divisa, MG.


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