Combater o estupro e defender a vida
Por Frei Marcos Sassatelli

O caso da menina de 10 anos de idade, grávida, vítima – desde os 6 – de cruéis estupros de um parente próximo, foi muito comentado nos meios de comunicação e nas redes sociais pelas reações que – mesmo involuntariamente – suscitou: ameaças, condenações levianas e manifestações inspiradas num fanatismo religioso fundamentalista que nada tem a ver com a fé cristã.

Lamentavelmente, “a cada hora, 4 meninas de até 13 anos são estupradas no país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019” (Folha de S. Paulo, 25/08/20, p. B4). “O Brasil registra 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas” (https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/08/17/brasil-registra-6-abortos-por-dia-em-meninas-entre-10-e-14-anos-estupradas.ghtml).

Diante de uma realidade como essa, ninguém pode ficar indiferente. Todo ser humano (homem e mulher) e, mais ainda, todo cristão e cristã (chamado e chamada a ser radicalmente ser humano) deve condenar o estupro como crime hediondo e uma das violências mais perversas contra a vida da mulher, principalmente da mulher-criança, transformada em mero objeto de prazer do homem. O estupro é uma violência que faz parte da cultura machista da sociedade capitalista e deve ser combatido com todos os meios possíveis, a partir da opção pelos pobres (descriminados, explorados, excluídos e descartados), que foi o caminho de Jesus de Nazaré.

Todo ser humano e todo cristão e cristã deve também defender a vida humana em todas as suas fases desde a concepção: antes de nascer, depois de nascer e durante toda sua existência no mundo.

No caso em questão – como em todos os outros – o comportamento ético do ser humano (homem ou mulher) – seja do ponto de vista filosófico (racional), seja do ponto de vista teológico (racional à luz da fé) – é o comportamento mais humano possível (sublinho: possível!) na situação concreta (individual, familiar e social) na qual ele ou ela se encontra.

Sem querer julgar a consciência das pessoas pelas decisões já tomadas a respeito do caso acima, mas tendo presente o direito à vida da menina-mãe e, ao mesmo tempo, o direito à vida da criança com 5 meses de gestação (inclusive, ela não era culpada pelo crime de estupro), duas atitudes éticas – humanas e cristãs – teriam sido possíveis.

Primeira: se a menina grávida – de acordo com o parecer de especialistas – estivesse correndo real risco de vida, os médicos deviam fazer todo o possível para salvar a vida da menina, mesmo que o tratamento causasse – indiretamente – a interrupção da gravidez (que não poderia ser chamada aborto, mas seria uma demonstração concreta da nossa limitação humana).

Segunda: se, porém, houvesse a possibilidade de salvar as duas vidas, deveria ter sido dado o seguinte encaminhamento:

Pode ser um sonho, mas é real, possível e muito gratificante. Graças a Deus, apesar de tudo, existem muitas pessoas boas e generosas no Brasil e no mundo. Espero que as atitudes indicadas sejam luzes para a solução de outros casos semelhantes.

Na minha visão filosófica e teológica, a vida humana pertence a Deus. É pela “presença ontológica” (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus que nós existimos. Mesmo que a ciência conseguisse explicar o funcionamento de tudo o que existe (incluindo o ser humano), nunca iria conseguir responder à pergunta: por que eu existo? Na hipótese absurda que Deus neste exato momento não me criasse, eu não existiria. Deus é a fonte do ser. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).

Antes de terminar as minhas reflexões, não posso deixar de denunciar com toda indignação a hipocrisia de pessoas (políticas ou não) de extrema direita que – num caso como esse da menina grávida – para se autopromover apresentam-se (usando muitas vezes o nome de Deus em vão) como defensoras intransigentes da vida antes de nascer, mas apoiam um sistema social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural), que – de maneira legal e institucionalizada – mata milhões de vidas já nascidas todos os dias.

“Estima-se que 6,3 milhões de crianças menores de 15 anos morreram em 2017 – 1 a cada 5 segundos – principalmente de causas preveníveis, segundo as novas estimativas de mortalidade divulgadas pelo UNICEF, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pela Divisão de População das Nações Unidas e pelo Banco Mundial”.

Pasmem! “A grande maioria dessas mortes, 5,4 milhões, ocorre nos primeiros cinco anos de vida. Os recém-nascidos representam cerca de metade das mortes.

‘Sem uma ação urgente, 56 milhões de crianças menores de cinco anos morrerão até 2030 – metade delas recém-nascidas’, disse Laurence Chandy, Directora de Dados, Pesquisas e Política do UNICEF.

‘Milhões de bebés e crianças não deveriam morrer todos os anos por falta de acesso a água, saneamento, nutrição adequada ou serviços básicos de saúde’, disse a Dra. Princess Nono Simelela, Diretora Geral de Saúde da Família, da Mulher e da Criança da OMS. ‘Devemos priorizar – diz ainda – o acesso universal a serviços de saúde de qualidade para todas as crianças, particularmente na época do nascimento e nos primeiros anos, para que elas tenham a melhor chance possível de sobreviver e prosperar’” (https://www.unicef.org/angola/comunicados-de-imprensa/cada-cinco-segundos-morre-no-mundo-uma-crian%C3%A7a-com-menos-de-15-anos).

Por fim, pergunto: Por que os movimentos e grupos de extrema direita – inclusive grupos que se dizem religiosos (católicos ou evangélicos) – que são contra o “aborto biológico”, nunca promovem manifestações de protesto contra o “aborto social” de crianças já nascidas, principalmente de 0 a 5 anos de idade?

Apresentar uma parte da verdade como sendo toda a verdade, significa ser mentirosos e mentirosas. Ser contra o “aborto biológico” sem ser contra o “aborto social”, significa ser hipócritas.

Contra o crime hediondo do estupro! Vida em primeiro lugar!

Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 25 de agosto de 2020

 

 

 

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