Ivone Gebara: Dogmas e heresias de algumas teologias feministas

Ivone Gebara, é uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática

Há anos sofre duras críticas, mas nos últimos meses com maior ênfase. Conservadores e defensores do poder e da hierarquia, alguns grupos têm feito perseguido a irmã Ivone Gebara.

No último dia 20 de maio, ela foi proibida de falar em um evento em São Paulo, ao qual havia sido convidada. As vozes que ecoam contra ela de forma injusta, podem ser ouvidas e lidas nas redes sociais em alguns estados. Fruto de uma cultura machista que também impera nos muros eclesiais católicos.

O Portal das CEBs procurou a Ivone e a seguir apresenta um artigo produzido por ela!

 Dogmas e heresias de algumas teologias feministas

Escrevo para um espaço de defesa da Pastoral Popular. Não sei dizer se a teologia feminista tem a ver com a pastoral popular. Minhas dúvidas são fundadas visto que a teologia feminista crítica não parece ter modificado o que ainda se ensina na teologia e mesmo na maioria das pastorais populares. Talvez depois da leitura desse texto vocês possam entender melhor a minha dúvida.

Desde a década de 1980 faço teologia feminista. De teóloga da libertação passei a ser teóloga feminista da libertação. Em termos bastante simples isto significa que acordei e fui acordada para a problemática cultural, social e religiosa das mulheres que em meio à premência das lutas libertárias contra os imperialismos e as ditaduras se organizava em muitos lugares. O nó do problema era a especial opressão vivida pelas mulheres denunciada desde a segunda metade do século XX por muitas intelectuais e grupos. Esta denúncia nunca foi seriamente acolhida pela teologia da libertação embora algumas mulheres teólogas fossem acolhidas nas reuniões organizadas pelos teólogos.

A teologia feminista na Igreja Católica constitui-se como uma espécie de heresia à dogmática tradicional. Hoje digo heresia, pois estou convencida disso. Entretanto, não uso mais essa palavra com um sentido negativo. O dogma (dokeo, do grego) é a ‘verdade que tem que ser ensinada’ e a heresia (airesis) é ‘a afirmação que discorda do dogma’, que abre brechas para a escolha, para opções, para o pensamento ditado pelas diferentes circunstancias da vida. É nesse sentido que me considero parte de uma heresia e não na linha daqueles que crêem que existe uma só verdade à qual temos que nos curvar.

Ultimamente, tenho sido de novo atropelada por pessoas e grupos que infelizmente são muito ouvidos pela maioria do episcopado brasileiro. Estes grupos acusam-me de feminista, defensora do aborto, da ideologia de gênero, contraria aos valores da família, desobediente ao Magistério, falsa religiosa etc. A acusação aparece como se eles estivessem com a verdade e do lado de Deus. Eu e outras mulheres e homens estaríamos do lado da mentira e do Diabo.

Creio que precisamos entender mais profundamente, embora de forma breve o que está acontecendo para além das emoções e julgamentos que nos habitam.

Vivemos do ponto de vista cultural, político e econômico numa grande instabilidade que não vem de hoje, embora estivéssemos sentido-a de forma mais aguda nesse momento. Todos querem explicações e acusam-se mutuamente de ser a causa dos males do mundo. É como se precisássemos de ‘bodes expiatórios’ ou ‘cabras expiatórias’ que representem a razão de nossos males. Nessa perspectiva, pergunto-me qual é o mal que representa o feminismo para os grupos que se crêem arautos da verdade ‘revelada’ por seu Deus? Qual é o mal do feminismo para o cristianismo? Para responder a essas questões é preciso dizer em grandes linhas o que tem feito o feminismo e a teologia feminista na nossa cultura.

O feminismo apesar de seus limites desvendou as injustiças sociais, políticas e legais em relação às mulheres e outros grupos. Da mesma forma a teologia feminista desvendou um processo semelhante nas estruturas e nos conteúdos teológicos vigentes por mais libertadores que queiram apresentar-se. Denunciou as estruturas androcentricas tanto na organização, nas políticas e nos conteúdos teológicos do passado e do presente. Denunciou as justificações que fazem da cultura e dos poderes de odor totalitário. Estas denúncias mudam o dogma masculino e os dogmas afirmados como ‘revelações’ de Deus. Sua pretensão epistemológica não é mais aceitável nos dias de hoje. Ela representa uma forma de totalitarismo cognitivo que passa a ser uma espécie de pedagogia de dominação religiosa do povo.

Por muito tempo as mulheres permaneceram como reféns das teorias teológicas em relação a elas, a seu corpo, ao seu poder e submissão e desde o século XIX e XX têm denunciado a cumplicidade das teologias com as políticas de submissão das mulheres. As teologias feministas inspiradas pelo feminismo e por outras leituras dos Evangelhos e da Tradição vão propor outra forma de conhecimento. Vão partir da quotidianeidade da vida, apreender os problemas diversos que se revelam e através deles entender o amor ao próximo e a nós mesmas.  Tenho refletido muito sobre isso e sido pouco compreendida pelos donos da religião de ‘mão única’.

Outro problema central que enfrentamos hoje tem a ver com as questões da sexualidade e reprodução humana ou em outros termos, com o tratamento parcial, injusto que atribuímos às diferentes orientações sexuais na sociedade e na Igreja. Tenho também refletido sobre essas questões à luz de outra interpretação da tradição cristã, talvez mais ética do que metafísica. Reflito sobre nossos corpos de mulheres que engravidam e parem muitas vezes sem escolha e são tratados como ‘objetos’ pecadores e submissos às vontades e leis masculinas. Escrevo e falo da violência que nos é feita em casa e na rua bem pouco considerada pelas igrejas cristãs. Falo da ocultação de nosso valor e da falta de representação significativa nas instancias decisórias das instituições religiosas. Insisto no pouco investimento que se faz na formação das mulheres na Igreja e da falta de respeito que se têm em relação a seu saber.

Isto tudo me leva a afirmar o fato de que na vida nem tudo pode ser rigorosamente regrado pela razão e pela religião dogmática. Os imprevistos, os escorregos, as limitações fazem parte da vida humana e nos ensinam coisas diferentes. Nessa linha não há apenas um único remédio, o oferecido pela hierarquia da Igreja e, sobretudo por uma poderosa elite política que controla a sexualidade humana. Há muitos caminhos diversos e às vezes até contraditórios que podem até ajudar a solucionar um problema ou aliviá-lo.

Tenho falado e escrito sobre todas essas coisas nas minhas aulas, conferências e textos. Reconheço que nesse sentido sou herética assim como tantas outras pessoas o foram para tentar renovar as visões do mundo. Minha postura gera tensões. Resolvi não me defender. Sigo apenas explicando minhas razões e minhas opções éticas. Com alegria percebo que há pessoas e grupos que se encontram com minha maneira feminista de refletir a vida e a história presente. Não tomo o feminismo como uma teoria perene e única verdade. O feminismo é hoje, porque nasceu de nossas necessidades… Amanhã será provavelmente outro o teor de nossas lutas.

Para além do dogma e da heresia gostaria que existisse um diálogo maior entre nós, a partir do qual pudéssemos ouvir uns aos outros e até aprender. Não sei se esse desejo é possível no contexto atual. Mas ele faz parte de minha crença na possibilidade de crescimento qualitativo dos seres humanos. E a vida continua…

Ivone Gebara

Filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
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