Religiões a serviço da justiça e da paz
Convencido de que “a oração e o testemunho dos crentes, seja qual for a tradição a que pertencem, podem muito para a paz no mundo”, o papa João Paulo II convocou em 1986 uma Jornada Mundial de Oração pela Paz em Assis. Foi um encontro histórico que reuniu cristãos de várias Igrejas e crentes de várias religiões. E nesse “espírito de Assis”, vem acontecendo a cada ano um encontro inter-religioso de oração e diálogo pela paz no mundo. O último aconteceu nos dias 6 e 7 de outubro em Roma e teve como tema “Povos irmãos, terra futura. Religiões e culturas em diálogo”.
No encerramento desse encontro, o papa Francisco falou da oração uma “força humilde que dá paz e desarma os corações do ódio” e da necessidade de “mudar as relações entre os povos e as relações dos povos com a terra”. Falando no Coliseu de Roma, que no passado foi local de “brutais divertimentos” com “lutas entre homens ou entre homens e feras”, constata com tristeza que “ainda hoje se assiste à violência e à guerra, ao irmão que mata o irmão como se fosse um jogo visto à distância, indiferentes e convencidos de que nunca nos vai tocar a nós”. E insiste que “não se pode ficar indiferente” a isso, mas é preciso “criar empatia” e “construir compaixão”.
Francisco denuncia a “violência” e o “trágico e sempre prolífico comércio das armas, que muitas vezes move na sombra, alimentado por subterrâneos rios de dinheiro”. Afirma que “a guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças dos mal”. Insiste que não podemos tratar essa situação com aquele olhar “neutro” dos noticiários, mas devemos nos fazer “voz de quem não tem voz, apoio dos atribulados, defensores dos oprimidos, das vítimas do ódio”.
Num contexto onde, “em vez de prevalecer o diálogo e a cooperação, ganha força o confronto militar como instrumento decisivo para se impor”, as religiões têm uma dupla “tarefa inadiável”: 1) “desmilitarizar o coração do homem”, “ajudar a erradicar dos corações o ódio e condenar toda forma de violência”; 2) desencadear processos na sociedade que levem “depor as armas, reduzir as despesas militares para prover às carências humanitárias, converter os instrumentos de morte em instrumentos de vida”. Na prática, isso significa: “Menos armas e mais comida, menos hipocrisia e mais transparência, mais vacinas distribuídas equitativamente e menos armas vendidas imprudentemente”. Essa tem que ser nossa súplica a Deus e nossa ação no mundo!
Os crentes das várias religiões devemos nos empenhar, “cada um com a própria tradição religiosa, para cultivar a paz em nome de Deus, reconhecendo-nos como irmãos”. Precisamos “purificar o coração”, desativar em cada tradição religiosa a “tentação fundamentalista, toda e qualquer insinuação a fazer do irmão um inimigo” e “cuidar da casa comum”, cultivando uma “atitude contemplativa e não predatória” e ouvindo os “gemidos da mãe terra, que sofre violência”.
Francisco concluiu seu discurso recordando que “a oração e a ação podem endireitar o curso da história” e fazendo uma exortação: “Sonhemos religiões irmãs e povos irmãos! Religiões irmãs, que ajudem povos a ser irmãos em paz, guardiões reconciliados da casa comum que é a criação”.
Seu apelo é particularmente relevante no Brasil, quando setores importantes das igrejas se aliam a um governo empenhado em propagar ódio e fake news, atentar contra os direitos humanos, criminalizar os movimentos sociais, militarizar a sociedade e a política e instrumentalizar a fé do povo e as igrejas em função de seus interesses mesquinhos e antievangélicos. Pensando concretamente no cristianismo, é preciso recordar sempre que o Evangelho de Jesus Cristo é fonte de vida, de paz, de justiça e fraternidade. Quem propaga ódio e fake news, defende tortura e pena de morte, promove violência e armamento da população renega do Evangelho de Jesus Cristo.
A lógica do Evangelho é muito diferente. Exige “desmilitarizar” o coração, a sociedade, a política e até a polícia! A sociedade necessita de “menos armas e mais comida, mais vacinas distribuídas equitativamente e menos armas vendidas imprudentemente”. Neste sentido, recordava profeticamente o arcebispo de Aparecida na festa de 12 de outubro: “para ser pátria amada não pode ser pátria armada”!