Não posso deixar de lembrar, no passado, dois momentos traumáticos para o país: a eleição de Jânio e sua vassoura e de Collor com a denúncia dos marajás, dois presidentes sem equilíbrio nem apoio político. Receberam o voto de setores de classe média, como agora, pendentes de um discurso anticorrupção. Uma ética necessária virava um moralismo simplificador e enganoso. Aliás, a falta de ética desses dois presidentes foi ficando evidente, na vida privada e pública. Estaremos repetindo o mesmo erro, com os mesmos apoios?
Bolsonaro aproveitou o terrível atentado para posar como vítima ou para eximir-se de debater e de apresentar um programa de governo minimamente coerente. E então, assim, jornalistas a soldo, se lançaram como abutres contra a dupla democrática. Lembremos a valentia de Manuela diante de perguntas mal intencionadas num programa roda viva. Ou no mesmo programa a clareza de estadista de Fernando Haddad. Antes, ele fora agredido com violência por uma dupla raivosa, que não fazia perguntas mas desfiava acusações sem prova.
Gostaria de refletir sobre o que está acontecendo no país. Vivemos um tempo de divisão profunda, marcada pela intolerância, e, inclusive há que dizer, com a contribuição apaixonada de companheiros de nosso lado. Famílias, amigos, colegas, entraram em choque e ficou difícil a convivência. A sociedade adoeceu. Como recuperar o que os ingleses chamam sanity? Há uma lição a tirar para nosso lado democrático. Não podemos cair na síndrome paralisante da decepção e da derrota. Mas, principalmente, não deveríamos reagir com agressividade e rancor, por mais que pudesse haver razão de sobra, ao descobrir um trabalho criminoso de falseamento da realidade e de construção de slogans absurdos.
O curioso é que muitos votaram em Bolsonaro em nome do novo na política. Incrível a falta de memória. Esse cidadão foi deputado em mais de uma legislatura, obscuro, imerso há tempos no grupo informe do chamado baixo clero. Apareceu para a opinião pública naquela noite lamentável, capitaneada vingativamente por Eduardo Cunha, no encaminhamento do impeachment de Dilma Rousseff. Ali, na sua declaração, fez uma incrível homenagem a um dos maiores torturadores dos tempos da ditadura. Procurando descobrir sua atuação nas votações na Câmara, vemos que estava sempre ao lado do chamado grupo da bala, daquele do boi e de um fundamentalismo religioso. Nada mais velho e caduco.
Assusta ver pessoas inteligentes e de boa vontade dizerem coisas insensatas e sem provas, afirmando que o país correria o risco de se tornar uma nova Venezuela, ou que seria invadido por médicos cubanos doutrinadores. Ou invocando um inexistente “kit gay”. Ao tentar desmanchar esses equívocos, muitas vezes nos temos deparado com um semblante rígido e inexpressivo, incapaz de entrar num contraditório. Fiéis de igrejas pentecostais votam no que os pastores ordenam, considerando que só eles dizem a verdade. O diálogo torna-se quase impossível.
Há dois tipos de eleitores bolsonarescos. Uns, que tem a mesma síndrome violenta do candidato e que agridem adversários, odeiam negros e gays ou são de um machismo espantoso. Aí, pelo momento, há pouco a fazer, a não ser denunciar uma síndrome de destruição, que surge em todas as ocasiões que viram nascer o nazismo e o fascismo. Temos de apelar aos psiquiatras e aos psicólogos e lembrar com eles, Karen Horney e sua mentalidade neurótica de nosso tempo, ou o medo da liberdade de Eric Fromm. Joel Birman tem desocultado com maestria essa enfermidade coletiva.
Mas há outra parte dos que votaram Bolsonaro, que absorveu acriticamente notícias falsas ou deturpadas, difundidas pelos meios de comunicação ou por púlpitos. Com esses temos de preparar o caminho para um diálogo. Há que provar que realmente aceitamos o pluralismo e que estamos dispostos inclusive a rever nossas próprias posições. Tudo num clima de abertura e de simplicidade. Habermas falava da força da argumentação, e ela vale nos dois sentidos.
É preciso aprender com a história, nas vitórias, e especialmente nas derrotas. O grande poeta Antonio Machado, em 1939 partindo para o exílio, onde morreria logo depois, escreveu melancolicamente: “A história não caminha no ritmo de nossa impaciência”. Mas a resposta vem mais adiante, em 1973, na intervenção pela radio Magallanes de Salvador Allende. Vendo os aviões voar baixinho para bombardear o Palácio da Monda e ouvindo Allende despedir-se, baixou-nos num primeiro momento uma enorme tristeza e uma sensação de impotência. Porém disse o presidente: “Más temprano que tarde volverá el pueblo a las grandes alamedas… La historia es nuestra, la hacen los pueblos”. Suas palavras foram retiradas do ar pela estática dos vencedores. Mas nos trouxeram alento e esperança.
Tempos depois da derrota, alguns partidos de diferentes tendências criaram a Concertação, que elegeria os primeiros presidentes democratas. Eu estava em Santiago mais adiante, voltei à Moneda restaurada, atravessei comovido o pátio de los naranjos, convidado para almoçar ali pelo secretário-geral da presidência, que voltara do exílio. E no canto da praça, um busto de Allende estava voltado para a janela de onde tantas vezes ele se dirigira a seu povo. Na base, trechos de sua última alocução. Mais tarde, quando Ricardo Lagos tomou posse como presidente democraticamente eleito, entrou pela porta da rua Morandé, por onde chegava Allende, e que tinha sido taipada pela ditadura, foi até a sala de onde ele se tirou a vida e depositou ali uma rosa vermelha. E o corpo de Allende voltou a Santiago, atravessou a Alameda Bernardo O’Higgins, onde um povo comovido o acolheu em silêncio.
Tudo isso para dizer que a história pode redimir-se de seus tropeços. Sentimos isso, fortemente, os que retornamos ao Brasil entre 1977 e 1979.
Volto à atualidade. Passada a eleição, é hora de preparar um novo processo. Não deveria ser possível ressuscitar velhos ajustes de contas, nem fazer cobranças, mas é indispensável lembrar fatos nem sempre agradáveis de ouvir. Aqui seria necessária uma grande abertura, grandeza e sentido uma revisão histórica positiva. Temos uma realidade complexa pela frente.
Criou-se, certamente construído em bases falsas, um clima antipetista violento. Porém o próprio partido não sai totalmente absolvido. Faz muitos anos, Tarso Genro, então presidente interino, propôs sua refundação, no tempo dos escândalos do mensalão. Não foi ouvido. Depois, vieram mais denúncias, infundadas ou não. Talvez por culpa de alguns dirigentes, o partido passou um ar de arrogância e de incapacidade para confessar falhas. E não se abriu a uma aliança, em igualdade de condições, com outros partidos e políticos. Por isso, num momento futuro, o PT não tem condições de ser o catalizador de uma nova aliança, mas certamente será um dos membros principais desse processo.
A construção de uma frente deveria ser fruto de uma concertação em várias direções, como no Chile. O PCdoB tem dado um exemplo, colocando-se disciplinadamente nas alianças. Manuela d’Ávila deu um lindo sinal de firmeza e de discrição. Flávio Dino, reeleito largamente no primeiro turno, entrou de cheio da campanha de Haddad, ele que, na primeira eleição, viu dirigentes petistas apoiarem Roseana Sarney, agora uma vez mais derrotada. O PSOL, que sai com uma expressiva votação em Marcelo Freixo, teria de abrir-se a alianças, o que não conseguira fazer na eleição municipal, que levou o incompetente Crivella à prefeitura carioca. Assim por diante, são lições a tirar, sem mágoas, mas sem esquecer a dureza implacável dos fatos.
Podemos elencar deputados eleitos, que podem ajudar a costurar essa grande aliança: Alessandro Molon, Paulo Teixeira, Luíza Erundina, Jandira Feghali, Jean Wyllys e tantos outros que talvez eu esteja esquecendo. Temos senadores como Paulo Paim ou Jacques Wagner. E inclusive políticos excelentes que foram varridos pelo tsunami eleitoral, como Flavio Suplicy, Jorge Viana, Dilma Roussef, à frente em sondagens no começo do período eleitoral ou outros com boas raízes, como Lindberg Farias, Chico Alencar e Roberto Requião.
É de prever que o futuro governo poderá ser errático, entre militares nacionalistas e economistas privatistas, com um presidente meio perdido no meio. Medidas draconianas poderão fazer perder avanços históricos populares, nosso petróleo seguirá sendo rifado, como está fazendo este atual governo liliputiano. Poderão crescer setores de repressão, à sombra de uma nova doutrina de segurança nacional. O que parece provável é que, por um desgoverno, o presidente caia mais adiante, vítima de suas contradições e de sua incapacidade. Poderá haver pela frente o terrível risco de uma intervenção militar. Ou então, teríamos, por um tempo, uma ciranda de governos fracos. Sem uma reforma política – e este parlamento será capaz de fazê-la? – nos espera um futuro bastante incerto. A não ser que, lenta, mas firmemente, se vá afirmando a tão sonhada Frente Ampla Democrática, Popular e Nacional.
Escrevendo este texto, depois dos foguetes e dos gritos de vitória, saiu de uma janela vizinha a voz de Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Assim seja.
Foto de capa: site Dom Total.