Rutílio e os mártires dos camponeses

Do IHU.

Depois de São Oscar Romero, em 22 de janeiro El Salvador terá mais quatro novos beatos mortos nos dramáticos anos da guerra civil. Entre eles também dois leigos locais e o franciscano de Treviso, Cosma Spessotto.

A reportagem é de Giorgio Bernardelli, publicada por Mondo e Missione, 04-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

“Na motivação do amor não pode faltar justiça, não pode haver verdadeira paz e verdadeiro amor com base na injustiça, na violência, nas intrigas. O verdadeiro amor é o que levou Rutilio Grande à morte junto com dois camponeses. Assim ama a Igreja, morre com eles e com eles se apresenta à transcendência do céu”.

Padre Rutílio Grande, o catequista Manuel Solórzano e o adolescente Nelson Rutilio Lemus. (AFP or licensors)

Oscar Arnulfo Romero havia assumido há apenas três semanas a direção da arquidiocese de San Salvador quando se viu pronunciando essas palavras no funeral de seu amigo padre Rutilio Grande. O jesuíta que convidou para estar ao seu lado como mestre de cerimônias no dia de início de seu ministério, em 17 de fevereiro de 1977, tinha se tornado o primeiro padre a ser atingido pelos esquadrões da morte. Ele caiu junto com o idoso catequista Manuel Solórzano e o adolescente Nelson Rutilio Lemus enquanto voltavam de carro da celebração de uma missa.

Naquele dia provavelmente começou o martírio de “São Romero das Américas”, o arcebispo de San Salvador assassinado no altar em 24 de março de 1980 e depois proclamado santo pelo Papa Francisco em 2018. Mas agora também Padre RutilioManuel e Nelson estão prestes a ser oficialmente indicados pela Igreja como testemunhas do Evangelho até o dom da própria vida. De fato, serão beatificados em 22 de janeiro em San Salvador, junto com o padre franciscano italiano Cosma Spessotto, assassinado em 14 de junho de 1980, poucas semanas depois de mons. Romero, na nação centro-americana que caiu no abismo. Anos dramáticos em que aquele país tão pobre acabou dilacerado pelo embate entre a extrema direita – que com o apoio do exército queria perpetuar um sistema econômico profundamente injusto, baseado na exploração da mão-de-obra dos camponeses – e a guerrilha comunista.

Por que voltar aos fatos de quarenta anos atrás em um país como El Salvador, hoje lutando contra feridas não menos graves: a pobreza ainda generalizada, as consequências da pandemia, a violência de gangues juvenis, a emigração de tantos salvadorenhos que repõem nas caravanas em marcha rumos aos muros dos EUA a esperança de um futuro melhor?

Em primeiro lugar, para lembrar que o martírio de D. Romero não foi um acontecimento isolado. “Parece providencial – escreveram os bispos de El Salvador numa carta em vista desta beatificação – poder venerar juntos um jesuíta salvadorenho, um franciscano italiano e dois leigos do nosso povo, um jovem e um idoso, todos unidos pelo fato de terem derramado o próprio sangue por Cristo em meio ao fragor da guerra. Uma guerra que agora muitos não vivenciaram e muitos mais não gostariam de conhecer e examinar à luz da fé”. “Os nossos mártires – escrevem ainda os bispos de El Salvador – são testemunhas credíveis de uma Igreja em saída, uma Igreja compassiva e misericordiosa, uma Igreja que anuncia com palavras e obras o Reino de Deus que se faz presente em Jesus Cristo e na sua mensagem”. Portanto, olha para o “aqui e agora” a mensagem dos quatro novos mártires de El Salvador. Com a sua vida e morte, recordam que “o amor a Deus se exprime no amor ao próximo mais necessitado, mas também na luta pela construção de relações de fraternidade baseadas na verdade, na justiça, na reconciliação e no perdão”.

É o fio vermelho que marcou a vida do Padre Rutilio Grande: nascido no seio de uma família pobre em El Paisnal em 1928, entrou nos jesuítas muito jovem, desde 1965 foi um formador no seminário diocesano de San Salvador. Precisamente ali – nos anos do Concílio Vaticano II e da Assembleia da Igreja Latino-americana em Medellín – se questionou sobre como traduzir “a opção preferencial pelos pobres” em um estilo de vida sacerdotal.

Padre Rutilio Grande “não queria seminaristas submissos à sua autoridade, mas responsáveis e maduros – escreveu o teólogo padre Rodolfo Cardenal, seu maior biógrafo -. Ele aspirava preparar padres para servir ao povo, não chefes tribais clericais. Esse desejo o levou a lutar para abrir o seminário à realidade salvadorenha. Os seminaristas tinham que sair do prédio e a realidade tinha que entrar nas salas de aula e nos corredores. Durante as férias organizava missões populares com os seminaristas maiores. Não se tratava apenas de pregar, mas de aprender a conhecer o povo de onde vinham e a quem estavam destinadas a servir”.

Este estilo causou-lhe divergências dentro do seminário que o levaram a abandonar o cargo em 1972. Mas para muitos sacerdotes que ele tinha formado (e para o próprio D. Romero) ele continuou sendo um ponto de referência. Por sua vez, o Padre Rutilio continuou seu apostolado na missão de Aguilares, fronteira rural entre os camponeses. Um lugar muito exposto, onde o jesuíta – ao mesmo tempo que se preocupava em manter a esfera política distinta da vida eclesial – nunca deixou de tomar abertamente o lado dos oprimidos.

Quatro dias antes de ser morto, fez uma homilia que se tornou seu testamento: “Estou convencido – disse – de que dentro em breve a Bíblia e o Evangelho já não poderão ultrapassar as nossas fronteiras. Eles vão nos deixar apenas as capas, porque cada palavra é subversiva. E creio que o próprio Jesus, se quisesse cruzar a fronteira de Chalatenango (fronteira com Honduras, ndr), não o deixariam entrar. Eles acusariam o Homem-Deus, o protótipo do homem, de ser um agitador, um estrangeiro judeu, que confunde o povo com ideias estranhas e exóticas contra a democracia, ou seja, contra a minoria dos ricos, o clã de Caim. Irmãos, sem dúvida, eles o pregariam na cruz novamente”.

Foi justamente a morte do padre Rutilio Grande que “converteu” D. Romero, como muitos escreveram nos últimos anos? Um estudo mais aprofundado da figura do arcebispo mártir mostra que realmente não houve um antes e um depois: a atenção aos últimos sempre foi uma constante na vida de Romero. O assassinato de seu amigo jesuíta certamente marcou o início de sua jornada como arcebispo; mas mais do que uma “virada”, foi mais uma tomada de consciência.

Igualmente fiel ao Evangelho em um contexto marcado pela violência, mas com um traço humano muito diferente, foi também o Padre Cosma Spessotto. Nascido em 1923 em Mansuè, na diocese de Vittorio Veneto, um frade menor ordenado sacerdote em 1948, sonhava em partir para anunciar o Evangelho na China. Devido a dificuldades políticas, seu destino missionário se tornou a paróquia de San Juan Nonualco, no departamento de La Paz em Salvador. E durante quase trinta anos – numa terra em palavras já cristã, mas afligida por tantas misérias materiais e espirituais – não poupou energias, esforçando-se mesmo por introduzir o cultivo da vinha tão cara às suas terras de origem.

padre Spessotto não era um teólogo: ele simplesmente foi um padre que estava entre o povo. E quando o país entrou na guerra civil, continuou no caminho que sempre seguiu: servir os mais pobres e os mais frágeis. Nunca foi um ativista político, não apoiou nem a guerrilha nem os militares, mas buscava o diálogo e a reconciliação entre as partes, evitando a instrumentalização. Na noite em que foi assassinado, em 14 de junho de 1980, o padre Spessotto celebrou uma missa em sufrágio por um jovem estudante universitário, morto uma semana antes pelos militares. Dois homens armados o mataram a tiros enquanto ele estava sozinho na igreja orando em frente ao tabernáculo.

Não era um ingênuo: “Tenho o pressentimento – escrevera alguns dias antes – que a qualquer momento pessoas fanáticas possam tirar-me a vida. Que o Senhor, no momento oportuno, me dê forças para defender os direitos de Deus e da Igreja. Já a partir deste momento, perdoo e peço ao Senhor a conversão dos autores da minha morte”. D. Antonio Cunial, que em 1980 era bispo da diocese de Vittorio Veneto, comentou sobre sua morte: “Padre Cosma Spessotto não foi santo porque mártir, mas mártir porque santo”.

Destas diferentes faces de santidade, El Salvador recomeça hoje. Dizendo ao mundo que mesmo nos tempos mais difíceis é possível viver plenamente a fraternidade. 

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