Sobre Religião, Ensino Religioso e Laicidade do Estado

– Preliminarmente:

Esta semana, o Supremo Tribunal Federal de nossa pós-democracia decidiu que a oferta de Ensino Religioso na modalidade confessional não contradiz o princípio do Estado Laico, tão caro às republicas e aos sistemas representativos surgidos a partir do século XIX. Preliminarmente, embora não seja da área do direito, e lendo trechos dos votos dos vetustos magistrados, pareceu-me que a aprovação desta modalidade de oferta de educação religiosa nas públicas refletiu a confusão existente na sociedade a respeito de temas como laicidade do Estado, o ensino de religião e interferência (indevida) das instituições religiosas na esfera pública.

Essa decisão escancara a hipocrisia social que impera na sociedade brasileira porque, quando religiosos, por causa de uma implicação ético-política da fé que professam, se mobilizam para defender o direito do pobre ou as liberdades democráticas; eles são acusados de “fazer política”. Quando cristãos, por exemplo, exercem algo que eles chamam de “profetismo bíblico”, que consiste em denunciar as injustiças, anunciar a justiça e a igualdade, logo aparecem os que desejam que eles retornem aos templos e ás sacristias. São chamados de hereges, de comunistas…

Ora, da mesma maneira, em nome dos valores ditos cristãos se constrangem exposições artísticas e muitos em nome de Cristo (que provavelmente repudiaria isso tudo – basta ler os evangelhos e ver como ele se posicionava diante da hipocrisia dos fariseus e dos religiosos de seu tempo) defendem coisas abjetas como Escola Sem Partido. Ensinar Marx não pode, mas ter uma disciplina especifica sobre catolicismo, outra sobre protestantismo e outra sobre qualquer outro credo pode? A alegação da oferta facultativa soa contraditória e, como não dizer, cretina, porque sabemos que essa não é uma possibilidade em várias escolas públicas que mantém apenas um só professor da disciplina.

– O início da polêmica:

Quanto ao papel da imprensa na cobertura deste fato, ela presta um desserviço novamente. E nenhum momento recente se colocou como este tema chegou ao Supremo. Parece até que surgiu no STF como água que vaza do cano e começa a brotar na parede. Em 2000 se aprovou uma Lei prevendo Ensino Religioso confessional nas escolas estaduais fluminenses. A emenda que propôs a lei era de um deputado católico de viés conservador, Carlos Dias, a época no PPB (atual PP), que, sob as bênçãos do então Cardeal-Arcebispo Eugênio Sales, articulou com a bancada evangélica – a maior parte ligada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – a aprovação da lei na ALERJ. Lei semelhante, no Brasil, apenas no estado da Bahia.

Naquele período histórico não eram poucos os embates entre as autoridades eclesiásticas católicas, a CNBB e os bispos da IURD. Poucos anos antes provocara comoção nacional o programa televisivo mantido pela denominação evangélica na qual uma de suas lideranças chuta uma imagem de Nossa  Senhora Aparecida, considerada pelos católicos como padroeira do Brasil, a quem foi erigido o maior santuário mariano do Brasil e do mundo no estado de São Paulo. Paradoxal que, para aprovar uma lei que atendia aos interesses conservadores da IURD  e do Departamento Arquidiocesano de Ensino Religioso (DAER) do Rio de Janeiro, bastião do que havia de mais conservador no contexto católico da cidade carioca, Dom Eugênio incentivou uma articulação com seus antagonistas religiosos. A justificativa legal do projeto-de-lei foi feita pelo jurista católico Célio Borja, que havia sido Ministro da justiça do governo Sarney.

Em 2003, Carlos Minc, que era deputado estadual pelo PT, apresenta um projeto de lei que sustaria a lei de Carlos Dias e instituiria uma outra modalidade para o Ensino Religioso. A lei foi aprovada, mas vetada pela governadora Rosinha Garotinho ao mesmo tempo em que o governo estadual lançara um edital para concurso público de docentes do Ensino Religioso, na modalidade confessional. A partir daí uma ação de inconstitucionalidade foi aberta pelo mandato do deputado, iniciando um debate público e por todas as instâncias do poder judiciário até chegar no STF. Essa arqueologia do debate da confessionalidade do Ensino Religioso ganhou amplitude nacional graças as controvérsias provocadas pelo legislativo estadual, a partir de uma agenda conservadora de duas confissões cristãs do Rio de Janeiro. Diga-se que o material disponibilizado a respeito deste componente curricular na CNBB indicava uma outra modalidade de Ensino Religioso.

3 – Do lugar social do autor:

No começo dos anos 2000 fiz uma especialização em Ensino Religioso Escolar no Instituto Teológico Pio XI, vinculado a UNISAL, dos padres salesianos, na cidade de São Paulo. Sendo financiado pela Escola Pio XII, foi uma experiência muito significativa na minha formação como educador. Terminada esta etapa, me engajei nos debates sobre o tema no âmbito das escolas católicas. Passei dois anos frequentando reuniões na então AEC – Associação de Educação Católica, hoje Associação Nacional de Educação Católica do Brasil – ANEC.

Após esse período, em março de 2004, realizar-se-ia um seminário promovido pela AEC, para apresentar uma proposta de Ensino Religioso não confessional para as escolas católicas, dentro de uma perspectiva fenomenológica. O evento seria em um tradicional colégio do segmento, no Centro da cidade. No entanto, os responsáveis pela AEC pelo evento se intimidaram diante do episcopado carioca, de outras dioceses do estado. Também tiveram medo dos responsáveis dos grandes colégios católicos – oportunidades profissionais poderiam ser perdidas, e nada do que foi planejado foi realizado.

A decepção foi tamanha pelo que foi feito por aquelas pessoas, da forma como feita que, associada com a percepção nítida que o Rio de Janeiro era um lugar muito resistente a mudanças que rompessem com a modalidade confessional de Ensino Religioso, que me fez desistir de pesquisar religião e ensino religioso. Dali em diante resolvi me qualificar como sociólogo e docente da educação básica e nunca mais escrevi nada ou procurei participar, fora do âmbito da escola onde atuava, de algo sobre Ensino Religioso.

Dessa forma, no terreno movediço da educação católica constatei empiricamente muitas coisas que fariam Jesus agir como fez com os vendilhões do templo. Muito carreirismo, muita gente oportunista, mas intelectualmente limitada e desonesta. Geralmente, pessoas muito preparadas ficam pouco tempo nas instituições de ensino. Eu talvez seja uma exceção à regra. Certamente porque a escola religiosa em que leciono também era uma exceção quando comparada a maioria das escolas similares do Rio de Janeiro.

Vi o pior em nome da Igreja. Só perde para o fundamentalismo de ódio que se propaga pelas redes sociais e ataca fisicamente adeptos e templos das religiões de matriz africana. Por outro lado, também experimentei muita acolhida, carinho, reconhecimento, autonomia e generosidade. Tratam-se de instituições humanas, não é mesmo? Nelas vamos sempre encontrar o melhor e o pior da condição humana.

No tema do Ensino Religioso, de forma específica, muita gente que em termos pastorais seria tido como progressista ou libertadora tem uma cabeça cartesianamente conservadora nesta matéria. Ou seja, leigos e religiosos que, na atuação dita pastoral da Igreja adota a perspectiva da Teologia da Libertação assume posições muito retrógradas no Ensino Religioso. Acreditam que esta disciplina é a salvaguarda da Igreja, uma forma de evitar a expansão pentecostal. Confundem sala de aula com púlpito e com salão paroquial de encontros.

No contexto da escola privada confessional é possível até reconhecer uma certa legitimidade para usar a modalidade de Ensino Religioso que se queira. Optar pela confessionalidade como se somente ela personificasse a identidade religiosa de uma escola confessional é estupidez. Afinal, a escola não seleciona os estudantes pela sua filiação religiosa. E mesmo que o fizesse, sempre é bom lembrar que escola é lugar do conhecimento. Isso é substantivo. Se a escola é católica, judaica ou batista, aí entramos nos adjetivos, que são secundários. Uma escola religiosa inteligente terá outras estratégias para tornar explícita sua identidade. Se não o faz é porque tem sérios problemas de gestão ou porque não sabe como fazê-lo.

– Laicidade do Estado:

Ora, se pensarmos em termos na escola pública a partir da ideia de laicidade, ficará evidente que ensino confessional não faz o menor sentido em uma instituição pública de ensino. Muita gente confunde laicidade com defesa da liberdade e/ou respeito às diferenças. Na verdade, o Estado laico se caracteriza pela autonomia e pelo caráter público da sua administração. O exercício do poder civil não pode estar sujeito a condicionamentos de uma determinada religião ou instituição religiosa, por melhores que sejam suas intenções. Trata-se de uma expressão da pluralidade características de uma sociedade industrial contemporânea. De respeito as liberdades individuais que, no campo religioso, inclusive deve garantir inclusive o direito de não crer. Então, como podemos admitir que, nos espaços escolares, se ofereça uma disciplina que não possibilita a convivência com a diversidade? E mais, traz para a sala de aula conteúdos catequéticos, com base em uma teologia específica, seja qual for a sua matriz religiosa.

Obviamente, isso não significa abolir os símbolos religiosos que se encontram no espaço público, ou de iniciarmos uma campanha de perseguição às crenças. Também não se trata de remover a presença do sagrado nas ruas, dos nomes das cidades como insinuou que seria o voto do ministro Gilmar Mendes. A venalidade de um argumento tão bisonho não poderia nunca partir de um juiz da mais alta corte de justiça desse país. Se fosse dessa forma, cairíamos no laicismo e na defesa de uma Estado ateu, o que não é o caso, por que tal forma de estado é também confessional.

Trata-se de impedir que dinheiro público, oriundo dos impostos de todos, inclusive dos não crentes, do sem religião e dos agnósticos seja usado para garantir uma modalidade de ensino em que religiosos pautem políticas públicas. A Lei estadual do Ensino Religioso do RJ prevê que um servidor aprovado em concurso público somente atue se credenciado pela autoridade religiosa. Fico pensando no contexto católico se Frei Betto ou Leonardo Boff receberiam essa credencial, mesmo aprovados em concurso. Poderia a Igreja impedir a posse? Ou se um professor mudasse de crença, se divorciasse ou virasse ateu. Tendo a sua credencial cassada, o que fariam com ele? Sem contar o que já foi abordado acima sobre separa os estudantes por confissão religiosa? Não lhe parece muito óbvio que essa modalidade de Ensino Religioso fere princípios tão caros a nossa civilização? Que abre um flanco para a intolerância, para a perseguição, que força a imposição pública de algo que pertence a esfera privada? Pois é, o STF desconsiderou isso tudo com argumentos que não são dignos de quem possuem notório saber jurídico…

– É possível um Ensino Religioso não confessional? 

Há uma premissa equivocada segundo a qual o Ensino Religioso por si fere a laicidade do Estado. Seria uma característica ontológica desta disciplina escolar, algo dado a priori. É compreensível que se pense assim. Afinal de contas, a própria expressão que nomeia a disciplina escolar é carregada de ranços que nos remete a simbiose existente entre Igreja e Estado em boa parte de nossa história. É necessário reconhecer que, em vários momentos, as altas autoridades eclesiásticas no Brasil se serviram deste componente curricular para se aliar as elites dirigentes do país muito mais para salvaguardar seus interesses institucionais do que para defender o povo brasileiro.

Todavia, há duas décadas pelo menos se constituiu uma outra abordagem para o Ensino Religioso, que não é nem confessional, tampouco ecumênica – que também não cabe na escola pública, porque não se trata de ação pastoral das igrejas cristãs e nem de promover conteúdos relacionados aos “valores humanos”, coisa que deveria ser de toda instituição escolar. Essa nova modalidade tem perfil acadêmico e não está fundamentada na Teologia Cristã, mas sim nas Ciências da Religião. Estas compõem um campo de pesquisa reconhecido e presente em pelo menos 5 universidades públicas brasileiras em todas as regiões do país. Em todas operam pesquisas sobre essa modalidade fenomenológica de Ensino Religioso. E ainda temos pesquisas sérias desenvolvidas no campo acadêmico da educação.

Esta modalidade, que parte de uma perspectiva teórico-científica bem definido (as Ciências da Religião), tem alguns pressupostos: NÃO é aula de Religião – Ninguém ensina religião a ninguém. Prática religiosa é experiência, que deveria ser transmitida pelas famílias pelas tradições religiosas aos indivíduos. Relaciona-se com uma área do conhecimento que possui objeto próprio de investigação, que é o fenômeno religioso em todas as suas manifestações e as Tradições Religiosas, bem como seus impactos na organização dos diferentes grupos sociais, os seus universos de ritos, sistemas de crenças, cosmovisões. Tal disciplina somente é possível se for um espaço de valorização das diferenças e do diálogo, para que se reconheça que a diversidade religiosa é uma riqueza, principalmente num país como o Brasil. E finalmente, deve permitir ao educando aprofundar a sua busca pelo sentido da vida.

Logicamente, precisaríamos de docentes especializados para lecionar a partir dessa lógica. Bacharéis em Teologia não possuem esse preparo, a menos que se especializem no campo. Muito menos professores sem formação na área certificados por uma autoridade religiosa estranha à universidade e ao poder público, como propõe a lei fluminense.

6 – Terminando, mas não concluindo…

Um Ensino Religioso escolar na perspectiva não confessional, com professores licenciados ou especialistas em Ciência da Religião, tratando a religião como fenômeno e em perspectiva comparada, não faz proselitismo, nem doutrinação e tampouco seria incompatível com a laicidade do Estado. Em várias partes do Brasil se faz assim já há algum tempo.

No atual contexto de fundamentalismo religioso em suas variadas vertentes, aqui no Brasil e no mundo, não parece acertado que um estudante passe pela escola sem que ele tenha aprendido alguns conceitos como religiosidade, sagrado, fé, transcendência, imanência e outros correlatos. Mais ainda, é necessário que rapazes e moças, encerrada a etapa da educação básica, conheça noções das principais religiões no Brasil e do mundo. Afinal, o conhecimento e caminho para o respeito.

A confessionalidade do Ensino Religioso é evidente violação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica, de 1996, os argumentos proferidos pelos ministros que se mostraram favoráveis à modalidade confessional foram indignos de juízes da mais alta corte deste país. Alguns votos beiraram a venalidade. Hoje se tornou juridicamente legal um preceito que rasga mais uma vez aquela que um dia foi uma constituição em vigor pleno.

Fora o prejuízo a laicidade do Estado, teremos certa pressão sobre os municípios e estados onde se adota um ensino não confessional. O acúmulo de boas práticas docentes nesta matéria corre o risco de ser varrido da escola pública por causa dessa onda obscurantista que parece tomar conta que assola a vida social brasileira. A modalidade de viés mais conservadora se tornou legal, mas não é necessariamente a mais adequada pedagogicamente. Tampouco tem alguma legitimidade na escola pública. São tempos sombrios onde o conhecimento, o debate e a razão cedem lugar para o arbítrio fundamentalista e o proselitismo as custas do contribuinte, sendo ele crente ou não-crente.

Finalizando, em tempos de tanta intolerância religiosa no país afora, separar crianças e jovens por conta da sua crença ou não-crença é lamentável. Joga-se fora uma grande oportunidade de fomentar o exercício do diálogo, da escuta e do convívio equânime com a alteridade. Em nome de um discutível direito das instituições religiosas, mata-se o cultivo da fé respeita a diferença. Indiretamente, e a despeito das boas intenções daqueles que atuam como docentes na perspectiva confessional, está posto nesta modalidade o elevadíssimo risco fomentarmos em sala de aula o fundamentalismo religioso. Deixou-se de dar um passo em direção à paz no Brasil. Porque é o convívio com a diferença quem produz respeito, e não a segmentação que aparta e fragmenta.

Jorge Alexandre Alves é Sociólogo e professor do IFRJ e da Escola Pio XII.
Mestrando em Educação pela UFRJ
Faz parte da equipe de preparação  do Curso do Rio do Iser Assessoria, do movimento Fé e Política e foi assessor da PJ.

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