“Se não fossem as mulheres, a gente não teria a Igreja que a gente tem hoje, uma Igreja viva”. Entrevista com a Ir. Rose Bertoldo, auditora sinodal

A Secretaria do Sínodo dos Bispos acaba de revelar os nomes dos auditores e auditoras do Sínodo para a Amazônia. Um desse nomes é o da irmã Rose Bertoldo, religiosa da congregação do Imaculado Coração de Maria, e que desde há sete anos trabalha na Amazônia no combate ao abuso e exploração de crianças e adolescentes, e ao tráfico de pessoas, fazendo parte do Eixo Fronteiras da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM.

Ela mesma afirma que vai participar da assembleia sinodal, que vai acontecer no Vaticano de 6 a 27 de outubro, para ser voz de “aqueles e aquelas que estão em situações de maior vulnerabilidade, que são ou foram vítimas do abuso, exploração sexual e o tráfico de pessoas”. Esse momento é um passo a mais em seu trabalho junto com a Rede um Grito pela Vida, em uma tentativa de “dar visibilidade a essa realidade”, muito presente entre os migrantes, uma situação cada vez mais presente na Pan-Amazônia.

A religiosa insiste em que “é necessário um maior investimento na formação de lideranças, educadores que se dispõem a este trabalho de prevenção junto as juventudes”, insistindo para um maior compromisso por parte da vida consagrada, pois “se a vida religiosa não abraçar essas causas deixará enfraquecer sua profecia”, para que “invista nesses espaços de articulação e fortalecimento”, para continuar “sendo um sinal de esperança junto aos povos da Amazônia”.

Em referência às mulheres, Rose Bertoldo afirma que “sempre ocuparam um papel fundamental na Igreja”, até o ponto de dizer que “se não fossem as mulheres, a gente não teria a Igreja que a gente tem hoje, uma Igreja viva”. Daí a importância do Sínodo para a Amazônia, que “está contribuindo para dar uma maior visibilidade e para fazer com que os homens reconheçam esse papel que as mulheres estão tendo, e que elas são protagonistas desse processo”. Desde essa perspectiva insiste em que “não dá para pensar uma Igreja sem essa presença das mulheres, principalmente aqui na Amazônia”.

Por tudo isso, espera que as mulheres presentes no Sínodo ajudem a “pensar estratégias de como cuidar dessa vida, principalmente aonde é mais ferida. Naquilo que diz respeito ao abuso, à exploração sexual, do tráfico de pessoas, de como a gente cuidar dessas realidades, e buscar estratégias de enfrentamento aos projetos de morte que geram essas violências e destroem nossa casa comum”. Também que seja um momento para “lutar por uma Igreja mais ministerial e menos clerical”, uma Igreja que “se preocupe do cuidado com a vida”.

Qual foi sua reação quando recebeu a nomeação para ser auditora do Sínodo para a Amazônia?

Eu jamais esperava isso, fiquei muito surpresa, porque jamais pensava estar em uma sala sinodal. Porém, a gente contribuiu, participou de todo o processo que foi sendo realizado ao longo de toda essa preparação para o Sínodo para a Amazônia. E também agora eu vejo assim, como uma grande graça do Espírito, que também me convida a ser voz de todos aqueles e aquelas que vivem na Amazônia, principalmente aqueles e aquelas que estão em situações de maior vulnerabilidade, que são ou foram vítimas do abuso, exploração sexual e o tráfico de pessoas.

No Instrumentum Laboris do Sínodo aparece um ponto onde se fala das ameaças à vida que estão presentes na realidade amazônica. Você, junto com a Rede um Grito pela Vida, é alguém que tem se empenhado no enfrentamento ao tráfico de pessoas, como essa ameaça repercute na vida dos povos da Amazônia?

Na verdade, eu comecei participar da REPAM (Rede Eclesial Pan Amazônica), como representante da Rede um Grito pela Vida, porque trabalha com essa causa do enfrentamento ao tráfico de pessoas. Ao longo desses anos, a gente vem tentando articular forças e pessoas dentro da Igreja para que assumam essa causa do enfrentamento ao tráfico de pessoas, do abuso e exploração sexual. A gente pode perceber que ao longo desse tempo, desde o mapeamento que foi feito pela REPAM, uma das grandes ameaças à vida, principalmente de mulheres, crianças e adolescentes, é o abuso e exploração sexual, o feminicídio e tantas outras violências.

A gente tem tentado dar visibilidade a essa realidade e fazer com que as pessoas que participam da Igreja, que são Igreja, também assumam essa causa, tanto a Rede Eclesial Pan Amazônica, a vida religiosa e tantos outros espaços, tantas outras igrejas, dioceses, prelazias. A gente tem feito um pouco essa articulação para dar visibilidade, a gente sabe que aonde tem uma pessoa violada, violentada, é o Corpo de Cristo que é violentado, que é violado. Por isso, a gente não pode pensar a Igreja na Amazônia sem pensar nessa dimensão onde a vida é mais ferida.

Uma realidade, o tráfico de pessoas, que está muito relacionada com a migração, especialmente dos venezuelanos, que está se tornando uma realidade muito presente na Pan Amazônia. Como os migrantes estão sendo atingidos por essa realidade na Pan Amazônia?

A Rede um Grito pela Vida sempre teve a grande preocupação nesse processo de trabalhar a prevenção, de incluir a questão dos migrantes. Sempre pensamos essa realidade do tráfico para todas as pessoas, mas de modo especial com as pessoas que são migrantes, porque todas as pessoas que são vítimas do tráfico humano são ou foram migrantes, porque a questão do tráfico sempre volta à questão do deslocamento. Com esse movimento maior de migração, tanto interno como internacional, no caso dos venezuelanos, a gente tem uma preocupação bem maior, porque infelizmente muitas pessoas que estão migrando para o Brasil, também para fora, estão sendo vítimas do tráfico de pessoas, principalmente para fins de exploração sexual, a questão do trabalho escravo e o desaparecimento de crianças venezuelanas.

A gente tem uma grande interrogação que esse desaparecimento seja para a questão do tráfico de órgãos, ou mesmo para a exploração sexual. A gente não pode deixar de pensar, e se preocupar com os fluxos migratórios, quando se trata dessa questão dos direitos.

No Instrumentum Laboris também fala dos jovens como um dos coletivos mais atingidos pelo tráfico humano. Como Rede um Grito pela Vida, vocês fazem um trabalho de prevenção nas escolas com os adolescentes e jovens. Falta ainda uma maior dedicação em tempo e recursos a esse trabalho de prevenção nas escolas com os jovens e adolescentes?

O Instrumentum Laboris, ele é o reflexo daquilo que as bases trouxeram a partir do estudo do documento preparatório. Porém, a gente pode perceber na grande região amazônica que os jovens são as maiores vítimas dessas violações, tanto para a questão da exploração sexual, do abuso, como do tráfico de pessoas, porque estão em uma situação maior de vulnerabilidade. Infelizmente, a Igreja, mesmo que muitas Igrejas particulares, tenham feito documentos, assumindo como prioridade a causa das juventudes, a gente ainda percebe que a Igreja está muito distante de atingir, de fato, os jovens.

No trabalho que a Rede um Grito pela Vida tem feito, tem ido para muitas escolas, para muitos espaços não eclesiais, e a gente percebe como é gritante esse clamor da juventude, que tem muitos sonhos, e que busca de muitas formas uma vida melhor. Muitas vezes são essas juventudes que são apanhadas nas redes dos traficantes. Essas redes, elas interligam muito com o narcotráfico, com o tráfico de armas, e aí a questão do tráfico de pessoas, e são as maiores vítimas. Por isso que nós, enquanto Igreja, precisamos não ter só o olhar, mas de fato investir neste processo de prevenção e formação.

É necessário um maior investimento na formação de lideranças, educadores que se dispõem a este trabalho de prevenção junto as juventudes nestes espaços públicos, que são as escolas, pois são espaços onde é possível encontrar uma grande abertura para este contato com as juventudes, independente de crenças e religião.

Muitas vezes, as pessoas dizem que o jovem não quer nada com nada, isso não é verdade, o jovem, ele busca, sim, o seu espaço, seu grupo e busca também a construção de valores naquilo que ele acredita. Os jovens, estudam, trabalham, assumem liderança nas comunidades, são revolucionários, constroem sonhos e ajudam muitos outros jovens. Então, enquanto Igreja, a gente precisa investir mais, acreditar na formação humana, profissional, politica, mas também a questão da inserção no mundo do trabalho, lutando por políticas públicas para as juventudes.

Como vida religiosa, como Rede um Grito pela Vida, que trabalha no enfrentamento ao tráfico de pessoas, o que representa o Sínodo para a Amazônia diante do trabalho que vocês fazem nesse campo?

A gente tem feito ao longo dos 12 anos da Rede um Grito pela Vida, um bonito caminho enquanto vida religiosa, leigos e leigas que abraçaram e abraçam essa causa do enfrentamento ao tráfico de pessoas, mas ainda falta muito a fazer. Os grandes gritos hoje são a violência contra as mulheres, o abuso, a exploração sexual e o tráfico de pessoas. Com este desgoverno essas violências vão se agravar muito mais, se a vida religiosa não abraçar essas causas deixará enfraquecer sua profecia. A vida religiosa, uma parte se sensibiliza, mas uma parte ainda está muito adormecida, ou melhor continua acreditando em espaços que dão mais segurança.

Diante dessas realidades, penso que a gente deveria abraçar de fato todo esse processo sinodal, pois é um grande sinal de esperança para a Igreja, um espaço onde podemos ocupar de forma mais organizada, fortalecendo o trabalho que estamos fazendo enquanto Igreja, principalmente este processo de sensibilização e formação de novas lideranças para atuarem no enfrentamento ao abuso, exploração sexual e o tráfico de pessoas. A gente sabe que essa construção sinodal, ela está só começando, ela não é só o agora, é para as gerações futuras. Então, a gente precisa sensibilizar a vida religiosa, e fazer com que a vida religiosa não só acredite, mas invista nesses espaços de articulação e fortalecimento desta grande rede humana que é tecida pelos nossos corpos, somos nós os fios  dessa tessitura,  neste processo e assim a gente continua sendo um sinal de esperança junto aos povos da Amazônia.

O Papa Francisco tem dado passos no reconhecimento da mulher dentro da vida da Igreja, mesmo sabendo que tem gente que ainda reclama um reconhecimento maior. Para você como mulher, para sua congregação religiosa feminina, o que representam esses passos, por exemplo a nomeação de mulheres para serem auditoras, peritas, do Sínodo para a Amazônia?

As mulheres sempre ocuparam um papel fundamental na Igreja. Eu acho que as mulheres assumem muitos ministérios, e se não fossem as mulheres, a gente não teria a Igreja que a gente tem hoje, uma Igreja viva. Agora, o que falta ainda, é o reconhecimento desses ministérios que as mulheres exercem. Eu penso que todo esse processo sinodal, ele está contribuindo para dar uma maior visibilidade e para fazer com que os homens reconheçam esse papel que as mulheres estão tendo, e que elas são protagonistas desse processo, tanto sinodal como também desse caminho de Igreja. A gente precisa, nós enquanto mulheres, lutarmos para que isso aconteça, não de uma forma agressiva, de enfrentamento, mas a partir dos espaços que a gente ocupa, sensibilizando os próprios companheiros, os homens, para um maior respeito, rompendo com essa Igreja hierárquica, patriarcal. 

Não dá para pensar uma Igreja sem essa presença das mulheres, principalmente aqui na Amazônia, nas tantas comunidades, nas mais distantes, nas periferias, mesmo na cidade, também nos grandes centros, quem realiza os serviços, que na grande maioria das vezes faz a Igreja acontecer, são as mulheres, mas infelizmente, em muitos espaços ela não tem o poder de decisão. A gente reconhece também que em muitas comunidades, paróquias, a gente tem muitos padres que são companheiros que também respeitam e fazem com que as mulheres tenham essa liberdade de exercer o seu ministério.    

O Papa Francisco tem rompido com muitos espaços antes delegados somente aos homens, ele não só quer a presença das mulheres neste processo sinodal, mas quer a contribuição delas, pois sabe do potencial e capacidade que nós mulheres temos em construir novos caminhos para a Amazônia, por isso as convoca, as ouve e as quer construtoras deste processo.

Para a minha congregação penso que é um orgulho, ficará na história essa presença, e ao mesmo tempo é uma motivação para continuar assumido e investido forças para contribuir neste processo de cuidado com a vida, principalmente com aquelas que são vítimas do abuso, exploração sexual e tráfico de pessoas.

O Cardeal Kaspers, em um texto escrito recentemente, aborda esse tema da ordenação das mulheres, dizendo que infelizmente, diante da realidade que a Igreja vive hoje, se o Papa Francisco promovesse a ordenação das mulheres, isso seria um suicídio papal. Você pensa que a Igreja hoje está preparada realmente para dar esse passo da ordenação das mulheres, ou ainda tem que ser dados passos prévios?

Eu diria que a Igreja não está preparada, e nesse modelo clerical que a gente ainda vive, na grande maioria da nossa Igreja, não caberia às mulheres a ordenação, as mulheres não aceitariam essa forma, até porque o jeito de nós mulheres trabalharmos é muito diferente. Nós sempre fazemos junto, coletivamente, é pensado os processos, as decisões são tomadas coletivamente. Nesse modelo de Igreja que a gente tem hoje, não caberia isso. Eu penso que a gente vai fazendo um caminho, quem sabe futuramente, aquelas mulheres que tenham desejo de se ordenarem, de serem sacerdotisas, elas tenham a liberdade de fazer isso. Mas no momento, a gente sabe que nessa estrutura de Igreja, não vale a pena a gente apostar, e sim mais a dimensão dos ministérios, dos espaços que a gente já ocupa.

De fato, o Instrumentum Laboris diz numa das sugestões, identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher, tendo em consideração o papel central que hoje ela desempenha na Igreja da Amazônia. Desde seu ponto de vista, desde seu conhecimento da Igreja da Amazônia, depois de sete anos morando na região e percorrendo muitas regiões do interior, qual pensa você que seria esse ministério oficial?

Eu destacaria o ministério da escuta, da acolhida, do perdão, o ministério da Palavra, o próprio ministério da Eucaristia, que são ministérios muitos fortes que as mulheres já fazem isso, e fazem isso muito bem feito. Eu penso que esses ministérios, a gente poderia delegar mais e dar o poder de decisão para as mulheres.

O que você espera da assembleia sinodal?

Primeiro, eu já estou rezando desde o momento em que eu recebi a convocação do Papa para que o Espírito haja em todas as pessoas que participarão. Para mim, o papel fundamental das mulheres que estarão nesse Sínodo, nessa sala sinodal, é de tentar perceber as brechas possíveis para colocar coisas novas. Por exemplo, uma das grandes questões do Sínodo é a dimensão ecológica, socioambiental, e aí nós mulheres, que somos as grandes cuidadoras da vida, a gente deve pensar estratégias de como cuidar dessa vida, principalmente aonde é mais ferida. Naquilo que diz respeito ao abuso, à exploração sexual, do tráfico de pessoas, de como a gente cuidar dessas realidades, e buscar estratégias de enfrentamento aos projetos de morte que geram essas violências e destroem nossa casa comum.

A Amazônia, toda está impregnada pelos grandes projetos. Com esse governo, a gente sabe que isso vai aumentar muito. Esse é um projeto de morte, não são grandes projetos, são projetos de morte, e aí, o papel da mulher, ele é muito importante. Como a gente defende o território onde a gente está presente, porque esse território, ele é habitado por homens e mulheres, e a grande maioria são mulheres, e a vida dessas mulheres é ameaçada. A gente precisa buscar criar estratégias para que a gente possa defender essa vida ameaçada e esse território ameaçado.  

Outro aspecto é a questão do direito que as comunidades tem de receberem a eucaristia, pois ela é o centro de nossa vida, precisamos lutar por uma Igreja mais ministerial e menos clerical, buscando soluções, alternativas para que todos possam ter o direito e acesso a eucaristia.

É claro que dentro da assembleia você vai ter a oportunidade de falar sobre diferentes temas, mas a partir do seu trabalho cotidiano de prevenção e com as vítimas do tráfico humano qual é a voz das vítimas que você está levando?

Não dá para pensar uma Igreja missionária sem pensar em uma Igreja que cuide das pessoas que são vítimas destes crimes, e na Amazônia isso é uma ferida muito grande, há uma naturalização das violências. Aí, a voz que a gente leva, é a voz das mulheres, das meninas, que foram e são vítimas dessas explorações. Tudo aquilo que a gente vai contribuir, é levando essas dores, para que os padres sinodais, para que a Igreja da Amazônia, se preocupe do cuidado com a vida. Que a Igreja tenha esse olhar que o Papa Francisco vem falando desde o início do seu pontificado, de como a gente, sendo Igreja, possa dar uma resposta diante desses grandes clamores que destroem tanto a vida dos povos na Amazônia.

Por Luis Miguel Modino

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