A Campanha da Fraternidade deste ano de 2020 tem como tema “Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso” e o lema, tirado da conhecida parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), é “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34). Este lema é tirado de um importante confronto entre Jesus e um teólogo, que acontece logo depois de Jesus ter elevado ao Pai uma prece de louvor ao perceber que os mais pobres e marginalizados são mais abertos para entender a proposta do Reino (cf. Lc 10,21-24). Depois desta prece de louvor, um teólogo questiona a veracidade da proposta de Jesus. Será que Jesus está ensinando a verdadeira religião, aquela que “nos dá em herança a vida eterna” (Lc 10,25)? Ao contar a parábola, Jesus quer nos ensinar a verdadeira religião. Esta religião verdadeira é o Evangelho da misericórdia do Pai. Enfrentando com coragem as propostas religiosas de sua época, centradas na observância e na rigidez doutrinal, Jesus recupera um veio da espiritualidade profética: a verdadeira religião. E propõe a seus discípulos e discípulas um grande desafio: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (cf. Lc 6,36). Mas como esta misericórdia do Pai revela a verdadeira religião?
Na verdade Jesus, ao contar a parábola, nos coloca diante de uma quadro muito bem construído. Ele diz que um viajante caiu nas mãos dos assaltantes. Estes assaltantes “lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora, deixando-o semimorto.” Assim, tanto o teólogo quanto os ouvintes devem se colocar diante da seguinte questão: se você, caminhando por uma estrada, visse um homem completamente nu, ensanguentado e desacordado…você pararia? Sua atitude diante deste quadro revela se sua religião é verdadeira ou falsa.
Olhando para a Bíblia
No Antigo Testamento muitas passagens lembram as ações bondosas de Deus ao longo de toda a caminhada histórica do Povo de Israel. Muitas vezes nos prendemos a uma imagem do Deus justo, que exerce sua justiça castigando com força e com violência. Mas a Bíblia ressalta que o verdadeiro rosto de Deus é o rosto de um “Deus de compaixão, lento na cólera e cheio de amor e de fidelidade. Um Deus que conserva seu amor por milhares de gerações, tolerando a falta, a transgressão e o pecado” (cf. Ex 34,6-7). Assim como esta, muitas outras passagens louvam esta ação misericordiosa de Deus (cf. Sl 103,3-4).
Foram os profetas, a partir de Oséias, que associaram este rosto misericordioso de Deus à verdadeira religião. Oséias resume a verdadeira religião na frase fundamental: “Pois eu quero misericórdia (hesed) e não sacrifícios.” (Os 6,6). Esta frase é importante para entendermos a proposta evangélica de Jesus. Ela está repetida duas vezes no evangelho de Mateus (cf. Mt 9,13; 12,7). A parábola do Bom Samaritano foi o meio pedagógico que Jesus escolheu para retomar a proposta religiosa contida na frase de Oséias: a verdadeira religião se manifesta em gestos concretos a favor da vida e não nos atos de culto.
Dois profetas aprofundaram a frase de Oséias mostrando que um culto separado da vida concreta é, na verdade, uma idolatria. Miquéias (Mq 6,6-8) diz que a verdadeira religião está em “praticar o direito, amar o amor (hesed) e caminhar humildemente com teu Deus”. Na mesma proposta vai o Dêutero-Isaías (Is 58,1-12). Depois de ridicularizar os gestos públicos de penitência (cf. Is 58,1-5), o profeta propõe a verdadeira religião: “acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, por em liberdade os oprimidos, despedaçar qualquer canga, repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa o pobre sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu e não se fechar à sua própria gente (Is 58,6-7). Destaco esta última frase porque este fechamento define as atitudes do sacerdote e do levita na parábola do Bom Samaritano. Justamente duas pessoas ligadas ao culto.
Entendendo as palavras
Na Bíblia vemos que, para o povo de Israel, a misericórdia de Deus se expressa em dois sentimentos: a compaixão e a fidelidade. Nesta junção temos dois sentimentos distintos, mas complementares. Compaixão (em hebraico, rahamim), quer significar um sentimento de apego instintivo de um ser a outro. Este sentimento tem sua origem no amor materno, no apego de uma mãe para com seus filhos. É um sentimento “entranhado”, vindo das “entranhas”. Muitas vezes confunde-se com o sentimento de ternura, de afeto e de amor. É uma contribuição feminina.
O segundo termo, amor (em hebraico, hesed), define a relação concreta e íntima entre dois seres. Uma relação que abarca um grande significado de sentidos: fidelidade, solidariedade, amizade, enfim, um vínculo concreto entre duas pessoas, unidas num projeto comum. Por exemplo, esta palavra hesed define o vínculo conjugal. Este termo é uma contribuição masculina. O homem, evidentemente, não tem útero. Ele tem que saber construir em si mesmo este sentimento de amor. Na parábola, o samaritano se abre ao caído porque consegue sentir, dentro de si, tanto a contribuição feminina (compaixão) quanto a contribuição masculina (misericórdia).
A junção destas duas palavras mostra que misericórdia é um sentimento que une dois seres com laços de bondade, de piedade, de perdão, de ternura, etc. Temos uma variedade de termos em português para expressar misericórdia. Mas são palavras que podem expressar apenas um sentimento abstrato. A verdadeira misericórdia manifesta-se em gestos bem concretos. Jesus deixa isso claro quando, ao fugir da pergunta abstrata do doutor da Lei, nos ensina que, se quisermos alcançar a Vida, temos que ser misericordiosos através de gestos concretos. Assim como foi concreto o gesto do samaritano pelo caído na estrada (cf. Lc 10,25-37). O samaritano abre mão de sua viagem e passa a viver em função do caído. Foi capaz de um grande gesto de solidariedade por uma pessoa que ele sequer conhecia. Nossas relações devem ser definidas pela compaixão e pela misericórdia. Devemos estar abertos aos caídos que encontramos ao longo da vida. Jesus também ensina nas bem-aventuranças: felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia (Mt 5,7). Alcançaremos a misericórdia divina se soubermos se misericordiosos com nossos irmãos e irmãs.
No Ano Santo da Misericórdia (2015-2016), o papa Francisco afirmou que toda a ação pastoral da Igreja deveria estar voltada para o acolhimento das pessoas na ternura, no perdão e na misericórdia. Uma Igreja aberta e acolhedora seria um sinal de anúncio e de testemunho do amor de Deus para todas as pessoas necessitadas e carentes. Seria uma Igreja cuja credibilidade ajudaria nos trabalhos pastorais e na nova evangelização. Uma Igreja comprometida com uma nova evangelização anunciaria, com vigor e entusiasmo, o rosto misericordioso de Deus revelado nos gestos e palavras de Jesus de Nazaré. Esperamos que estes desejos do papa se realizem nesta Campanha da Fraternidade de 2020. Como o samaritano, somos convocados sermos compassivos e misericordiosos em nossas práticas religiosas. Mias do que gestos de culto a verdadeira religião se manifesta em nossos dons e compromissos em defesa da vida dos caídos e caídas.