Conversa sobre Teologia da Libertação

Recuperamos essa entrevista que foi pubicada originalmente no site da Adital, em 2015. Nela Dirceu fala sobre a Teologia das Libertação e suas vertentes na espiritualidade que faz opção preferencial pelos pobres.

Acompanhe na íntegra!

O que significa a opção preferencial pelos pobres, ponto central da Teologia da Libertação?

Representa uma revolução teológica e eclesial, bem como uma oposição frontal ao sistema capitalista. A evangélica opção preferencial pelos pobres assumida pela Teologia da Libertação (TdL) vem acompanhada de um posicionamento claro contrário a todas as injustiças sociais, desigualdades econômicas, autoritarismos políticos e colonialismos culturais, causas de pobreza e miséria. Essa opção decorre de uma decisão consciente da Igreja libertadora, inspirada no projeto de Jesus de Nazaré.

Não podemos esquecer que a TdL surgiu na América Latina, nos anos 1960, como reação a um sistema marcado por ditaduras militares, exploração, dependência externa e muito sofrimento humano. Logo se propagou também pela África, Ásia e até alguns ambientes do primeiro mundo. Inspira-se nos documentos produzidos pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), evento histórico que promoveu a abertura da Igreja Católica para o diálogo e a interação com o mundo moderno.

A TdL teve significativo impulso com a Conferência do Episcopado Latino-Americano, em Medellín (1968). Nela, os bispos analisaram com séria preocupação a “violência institucionalizada” e as “estruturas injustas” que pesavam sobre os povos. Estabeleceram como grande diretriz da Igreja a opção preferencial pelos pobres, o que ficou mais explícito na Conferência de Puebla (1979). Em 1992, na Conferência de Santo Domingo, os bispos afirmaram: “O crescente empobrecimento a que estão submetidos milhões de irmãos nossos, que chega a intoleráveis extremos de miséria, é o mais devastador e humilhante flagelo que vive a América Latina e Caribe” (nº 179). Em Aparecida (2007), houve uma revalidação da importância da TdL diante dos desafios do terceiro milênio.

A opção preferencial pelos pobres é, pois, a tomada de consciência do verdadeiro compromisso da Igreja na sociedade dividida em classes. Compromisso que se traduz na luta incessante para a garantia do direito fundamental de vida digna para todos. Daí a centralidade nos pobres, que têm sua vida mais ameaçada e atribulada. Com a Teologia da Libertação, a Igreja faz o que não poderia deixar de fazer para ser autenticamente cristã.

Quais são hoje os rostos desses pobres e oprimidos?

Na sociedade atual, os pobres e oprimidos têm múltiplos rostos. Eles transcendem fronteiras geográficas, históricas, étnicas, de gênero, culturais ou religiosas. O empobrecimento, a exclusão social, a violação de direitos e da dignidade humana são consequências diretas dos processos neocoloniais e neoliberais que ganham amplitude e profundidade com o avanço da globalização. Trata-se de um fenômeno que se reproduz, se expande e tende a ser naturalizado pelo sistema hegemônico.

A pobreza e a miséria não são questões meramente matemáticas e econômicas. Elas perpassam as diversas dimensões da vida pessoal e social. Entre os pobres e oprimidos, não podem ser esquecidos os migrantes, os catadores de materiais recicláveis, os moradores de rua, as mulheres, os jovens, os idosos, as vítimas da droga e do tráfico humano, os desempregados, os trabalhadores escravizados e tantos outros, conforme referido no nº 402 do Documento de Aparecida. Nessa lista, inclui-se também a nossa Casa Comum, como afirma o Papa Francisco logo no início da encíclica Laudato Si: “Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada…” (nº 2).

Em termos práticos, como se dá a Teologia da Libertação nas ações do dia a dia? De que modo a fé cristã ajuda na libertação da miséria e da pobreza?

A fé cristã pode receber diferentes orientações práticas, quer numa perspectiva intimista, fundamentalista, individualista, mercadológica ou, diferentemente, numa direção comunitária, solidária, profética, libertadora. No dia a dia, ela contribui para a libertação da miséria e da pobreza na medida em que aproxima pessoas, fortalece a consciência crítica e criativa, estimula o diálogo, a participação e a solidariedade, fomenta uma espiritualidade que move para a luta coletiva pela melhoria das condições de vida.

A TdL gerou muitas práticas inovadoras e um novo jeito de ser Igreja, identificado com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com a leitura contextualizada da Bíblia e com o protagonismo dos leigos. Inspiradas nas primeiras comunidades cristãs, provocaram novas reflexões teológicas e novas discussões sobre o papel da Igreja na sociedade. Constituíram-se em espaços privilegiados para viver a fé, combater o individualismo e exercitar a vida comunitária.  As CEBs e a TdL criaram uma dialética efetiva e eficaz entre fé e vida.

Assim pensadas e vividas, a fé e a espiritualidade ajudam na libertação, enquanto superam uma visão mágica de Deus e um modelo meramente dogmático e ritualístico de religião. Ao apontar para as mudanças sociais e pessoais possíveis e necessárias, a fé cristã incorpora um compromisso libertador e se constitui em combustível capaz de sustentar a reação diante das mais diversas formas de opressão. Para a TdL não basta a busca da libertação de alguma angústia existencial; o que lhe vale é a libertação integral.

Por que a Teologia da Libertação é uma corrente considerada incompreendida, difamada e até perseguida?

Creio que haja duas razões básicas para isso. A primeira diz respeito à denúncia que a TdL faz das causas da pobreza e da miséria de milhões de pessoas pelo mundo afora. Os teólogos e teólogas da libertação se recusam a ver esse fenômeno como geração espontânea, consequência sem causa ou fato diante do qual cabem apenas ações assistenciais ou invocações à piedade divina. Antes, ao contrário, tomam tais realidades como produtos históricos de um sistema social abominável que gera desigualdades, enriquecimento de alguns à custa de muitos. Esse sistema, consubstanciado no capitalismo, se reconfigura continuamente, mas mantém inalterada a lógica do imperialismo, do acúmulo e da exclusão social.

A outra razão refere-se ao “que fazer” diante dessa realidade depois de denunciá-la. A TdL aponta a conscientização, a organização e a busca da transformação das estruturas injustas. Quando os pobres se organizam e emergem como sujeitos de direitos, a começar pelo “direito a ter direitos” (Hannah Arendt), acabam mexendo com vários interesses de segmentos da sociedade e da própria Igreja. Daí decorre, naturalmente, reações adversas, acusações, incompreensões e tentativas de censura. Mas, a TdL não produz adeptos do medo e sim da coragem, da luta e da esperança à toda prova.

A Teologia da Libertação é acusada de ser uma politização da fé ou uma teoria comunista, por quê?

Exatamente pelas razões mencionadas acima. Como já referi, a TdL nasce num contexto social e histórico marcado por profundos processos de opressão e exclusão. Entretanto, isso não seria o bastante para que ela fosse identificada com a teoria marxista/comunista, pois poderia ter assumido uma orientação político-religiosa de legitimação do poder dominante, como em outros tempos outras modelos teológicos o fizeram. Porém, no DNA da TdL está a perspectiva profética e a compreensão de que a fé tem necessariamente uma dimensão política. Dimensão essa demonstrada por Jesus ao assumir a causa da libertação dos pobres, o que resultou na sua morte de cruz.

Para ler, interpretar e buscar a transformação da realidade com suas múltiplas contradições, os teólogos da libertação se utilizam de teorias críticas, entre as quais podem estar abordagens marxistas. Na base da acusação de que a TdL derrapou para o “nefasto” comunismo está a intenção de seus opositores em desqualificar esse pensamento teológico. Nenhum eventual ou pontual reducionismo teórico da TdL pode ser razão suficiente para considerá-la inadequada. A análise contextualizada e crítica da realidade, associada à evocação de um cristianismo pragmático e libertador, torna a TdL uma proposta incômoda para muitos. Daí a razão de muitas acusações indevidas.

Que contribuições a Teologia da Libertação trouxe para a América Latina?

Uma das principais contribuições foi a consolidação de um novo paradigma teológico e de uma nova metodologia pastoral baseada no tripé ver-julgar-agir. A TdL fez ver que as estruturas sociais e o funcionamento da sociedade são produções humanas que podem e, em muitos casos, devem ser transformados. E mais do que isso, que essa tarefa decorre imediatamente da fé cristã e requer o protagonismo dos pobres. Eles já não são vistos como meros objetos de caridade, senão como sujeitos de sua história e de sua emancipação.

Articulada com a Pedagogia, a Filosofia e outras ciências com um viés libertador, a TdL contribuiu para criar um lastro de consciência crítica. Entre seus legados está uma forte cultura política e cidadã, desde onde emergiram múltiplos movimentos populares, pastorais sociais, organizações não governamentais, instituições, grupos de base, movimentos políticos, sindicais, culturais em defesa da justiça, dos direitos, da dignidade, enfim da vida dos marginalizados, oprimidos e excluídos. Destaca-se também a formação de um incontável número de lideranças sociais e eclesiais, bem como o testemunho de muitos mártires da fé cristã e da luta pela libertação.

Muitos afirmam que a Teologia da Libertação é uma corrente que já perdeu atualidade e relevância. Como avalia essa concepção?

É verdade que hoje a TdL não tem tanta visibilidade, ou talvez seja melhor dizer, não é mais tão combatida abertamente como anos 1980 e 1990. Os tempos são outros. Muitas coisas mudaram no interior da Igreja e da sociedade, inclusive com uma grande contribuição dada pela própria TdL. Na minha avaliação, ela não perdeu a atualidade e a relevância. Enquanto houver situações de pobreza e de exclusão, sua contribuição será relevante. E atual também sempre o será, uma vez que está enraizada no projeto libertador de Jesus Cristo. Não se trata de um modelo teológico acabado, mas em permanente processo de construção. E nisso reside sua grande capacidade de se atualizar continuamente.

A atualidade da TdL pode ser percebida com clareza na figura do Papa Francisco que, com simplicidade, alegria e ternura evangélica; sabedoria e coragem profética; linguagem e metodologia popular está causando grandes impactos positivos na Igreja Católica e no mundo inteiro. Esse jeito de fazer teologia, de conduzir e animar a Igreja é altamente profícuo porque integra a fé à vida concreta. Diante do atual sistema neoliberal, que transforma tudo e todos em mercadoria, a TdL não é apenas útil e necessária. É também indispensável.

Quais são hoje as novas lideranças da Teologia da Libertação, além dos dois principais teólogos brasileiros Leonardo Boff e Frei Betto? Existe um trabalho de renovação?

Existem diversos outros teólogos e teólogas brasileiros com expressivas contribuições no âmbito da Teologia da Libertação. Não vou acrescentar nomes. O fato de suas produções não serem, talvez, tão conhecidas como as dos dois teólogos citados, não significa que não tenhamos mais ninguém fazendo, refletindo e escrevendo nessa direção. Por outro lado, deve-se considerar, sim, o avanço de tendências mais carismáticas e conservadoras no interior das Igrejas em geral. Acredito que o intenso e exitoso trabalho que o Papa Francisco está realizando contribui de forma direta para a renovação da Igreja e o fortalecimento da TdL. Acrescente-se a isso os muitos encontros, congressos, seminários, publicações, centros teológicos e projetos de formação de leigos que, certamente, favorecem o revigoramento dessa perspectiva teológica.

Quais as convergências e divergências entre os mais antigos e os jovens na Teologia da Libertação? Que ações precisam ser feitas para a construção de um diálogo e de uma continuidade?

De maneira genérica, penso que as convergências estão relacionadas ao referencial bíblico e teológico em defesa da libertação integral da pessoa humana, da justiça social e da vida digna para todos. Se há divergências, talvez sejam em questão de método e pontos de vista sobre temas específicos. Entretanto, a TdL não foge das divergências, pois elas também ajudam a gerar o debate, tão necessário para dar consistência à própria teologia.

A discussão de temas emergentes como a ecologia, novas modalidades de ministérios (ordenação de mulheres, ordenação de homens casados, celibato opcional), novas constituições familiares e outros ligados às novas realidades políticas, culturais e religiosas estão no horizonte da TdL. Para tanto, penso ser fundamental a coragem profética de membros da hierarquia para romper certos tabus e fomentar a mudança desde dentro da Igreja. Esses são também desafios para os teólogos e teólogas de todas as gerações.

Qual o futuro da Teologia da Libertação?

É difícil prever o futuro da Teologia da Libertação, mesmo porque tem se tornado cada vez mais difícil fazer qualquer tipo de previsão sobre o futuro. Há uma instabilidade e uma volatilidade muito grande na sociedade dita de alta modernidade, modernidade líquida (Bauman) ou pós-modernidade. Embora prevaleça tal cenário, aposto na necessidade imprescindível de fortalecer a TdL, dada sua importância para a vida das Igrejas e para a sociedade como um todo. Creio que ela dá a razão fundamental da fé e da esperança cristã. Creio ainda que o futuro da TdL passa, inevitavelmente, por três pontos: defesa incondicional dos direitos e da vida dos pobres; fortalecimento da cultura do cuidado com a Casa Comum; empenho decidido e urgente pela democratização do poder na Igreja, com a participação das mulheres em condições de igualdade de direitos aos homens.

Como avalia a relação do Papa Francisco com a Teologia da Libertação? Que contribuições o Sumo Pontífice tem trazido sobre o tema?

O Papa Francisco é a expressão mais autêntica de quem compreendeu a autenticidade, a vitalidade e atualidade da TdL. Suas contribuições são inúmeras e, por certo, muitas delas serão percebidas com o passar dos tempos. Porém, vale registrar seu destemido empenho para promover mudanças internas na vida da Igreja, a começar pelo Vaticano; sua abertura ecumênica, juntamente com a linguagem e o jeito popular de ser que o caracteriza. Isso não o impede de fazer profundas e corajosas denúncias proféticas diante de situações e estruturas que ferem a dignidade humana. Sua postura em defesa dos pobres e de suas organizações é inconfundível. O diálogo com os movimentos populares é outra atitude inédita e de grande significado social, eclesial e teológico.

Há uma nítida intencionalidade com ações concretas para garantir um papel mais central das mulheres na vida da Igreja, além de uma sensibilidade diante das novas constituições familiares. A convocação ao cuidado com o meio ambiente, expresso de forma emblemática na encíclica Laudato Si; seu testemunho de pastor com “cheiro das ovelhas”, destituído de pompas principescas; sua insistência na missão de uma Igreja “em saída”, comprometida com as causas da justiça e não autorreferenciada… Tudo retrata a compreensão e a contribuição do Papa Francisco com a Teologia da Libertação!

(Entrevista publicada originalmente em Adital e no blog do autor, setembro de 2015)

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