A recente declaração de um general afirmando a possibilidade de intervenção militar no país é um fato extremamente grave, que é preciso repudiar. As Forças Armadas são uma instituição pública, a serviço dos cidadãos e cidadãs, com atribuição de defesa da nação e de suas fronteiras; não têm autonomia para intervir na política e determinar os rumos do país. Somente quem pode fazer isto é o povo soberano, verdadeiro dono do poder, de acordo com a Constituição Federal. Se um grupo usurpou o poder e está, ilegitimamente, governando, a saída que o Estado Democrático de Direito aponta é um processo contra este governo ilegítimo e a convocação de eleições gerais, para que o poder volte a quem de direito. Não é missão dos militares tomar a frente e, em lugar do povo, assumir o poder. Isto seria mais um golpe em nossa democracia.
O Brasil já viveu a experiência dos militares no poder – e ela é bem recente, terminou há pouco mais de 30 anos, configurando um verdadeiro trauma nacional. Neste momento, é importante lembrar como foi o período em que os militares mandavam e desmandavam no país.
Primeiro, cabe lembrar os argumentos usados em 1964 para justificar a intervenção militar: a inflação, o risco do “comunismo” e a corrupção. Inflação, naqueles moldes, não faz parte da nossa realidade atual. A percepção de que regimes comunistas seriam uma ameaça ao Estado Nação também está fora de senso, desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. O governo que era identificado por parte da sociedade como sendo de esquerda, foi derrubado.
Já a corrupção tem sido objeto da maior operação de investigação registrada na história do Brasil – e, a bem da verdade, o regime militar não acabou com a corrupção, apenas alterou quem a operava. A maior diferença em relação ao que vivemos hoje é que, durante o regime de exceção, não houve qualquer investigação sobre corrupção no país. Ao longo de 21 anos, foram proibidas a investigação e a revelação sobre improbidade administrativa ou desvio de recursos públicos por parte de militares e autoridades públicas.
Os militares, como se sabe, são seres humanos. Como não havia controle por parte da sociedade sobre quem dirigia o país, ser incorruptível dependia unicamente da decisão dos que detinham o poder. Inúmeras pesquisas já mostraram, por exemplo, que a relação incestuosa entre empreiteiras, empresas privadas e governo começou justamente no período da ditadura civil-militar. O relacionamento ímprobo entre setor privado e setor público não é, portanto, exclusivo dos regimes civis.
O que impede ou dificulta a corrupção, em qualquer lugar do mundo, é a transparência, de um lado, e o controle por parte da sociedade, de outro. Ora, no regime de exceção, a transparência não existia. Por princípio, tudo era secreto, e até hoje a verdade sobre o período não pode ser pesquisada ou revelada. Sempre que houve uma tentativa de se estabelecer uma Comissão da Verdade, os militares se opuseram ferrenhamente. Foi assim quando da divulgação do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) ou no primeiro governo Dilma, quando a então Presidenta nomeou uma Comissão Nacional da Verdade, para funcionar por dois anos, e esta não teve acesso à maioria dos documentos solicitados aos militares.
Mesmo assim, a Comissão concluiu que “a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres resultou de uma política estatal, de alcance generalizado contra a população civil, caracterizando-se como crimes contra a humanidade”.
Foi este o resultado da intervenção militar realizada em 1964, quando um grupo de pessoas, com direito de vida e de morte sobre toda a sociedade, se instalou no poder após expulsar o presidente eleito. Este grupo montou um aparato repressivo e os cidadãos passaram a não ter mais direitos fundamentais como o de ir e vir, de se expressar, de escrever ou compor, o direito à integridade física, o direito à vida.
No poder, os militares perseguiram e prenderam militantes de esquerda, mas também famílias de pessoas e militares que não pensavam como eles, submetendo toda uma geração à censura da imprensa, da música, do teatro, da literatura. No poder, os militares decidiam o que podia e devia ser lido ou ensinado nas escolas, sem qualquer dialogo com os professores ou consulta à sociedade. Se autoatribuíram o direito a nos governar e se autonomearam donos da moral – ou melhor, acima da moral.
Ditadura militar significa, assim, enterro da verdade. Para se manter no poder, os ditadores têm de impedir o conhecimento e o acesso à informação sobre o que está se passando. Só pode ser difundido o que dignifica os militares; nenhuma dúvida a respeito de sua capacidade, competência ou legitimidade pode ser levantada. No regime de exceção, os meios de comunicação divulgavam apenas o que era permitido pelo regime. Os jornalistas, repórteres ou órgãos de comunicação que ousaram não se submeter foram demitidos, afastados, presos ou mortos, e seus meios de comunicação fechados.
Ditadura militar significa assim, também, o enterro da liberdade. Não apenas da liberdade de alguns, mas de todos. Qualquer um que ouse questionar o poder instituído é visto como uma ameaça aos donos do poder. Na ditadura não há mais liberdade de opinião nem de expressão: cessam as passeatas, os protestos, as manifestações. É o reino do silêncio. Durante o regime de exceção, inúmeros compositores e cantores foram presos e/ou expulsos do país ou se exilaram; muitas músicas foram censuradas ou proibidas, assim como livros e peças de teatro.
Além disso, toda ditadura acaba com qualquer controle social. Trata-se de um regime onde o controle é feito unicamente pelo pequeno grupo que detém o poder. Se hoje há uma afirmação recorrente nas manifestações de que “ninguém está acima da lei”, na ditadura há sempre um grupo acima dela. Ditadura militar, consequentemente, significa direito sobre os cidadãos. A prisão, o interrogatório e a tortura se tornam meio usual de controle daqueles que não se submetem.
A última ditadura militar no Brasil terminou há pouco mais de 30 anos. Ao contrário do que aconteceu em muitos países, aqui seus torturadores não foram processados, seus crimes ficaram impunes. Mas não nos esquecemos, e por isso afirmamos: ditadura militar, nunca mais!
Queremos um Estado Democrático de Direito, queremos liberdade de opinião e de expressão. Queremos o fim do governo ilegítimo, mas não por meio da força, e sim de um processo democrático, participativo. Queremos que o conjunto das medidas tomadas após a posse de Temer sejam submetidas a referendo popular. Queremos democracia, para que o povo – o verdadeiro dono do poder – decida o que é melhor para o país.