Dorothy Stang e Ezequiel Ramim, testemunhas de uma vida doada pela Amazônia

Por Luis Miguel Modino

Fotografia: Luis Miguel Modino

A memória dos mártires fecunda a vida e as lutas dos povos da Amazônia, uma realidade que “neste momento em que Brasil passa por essa crise seria, devido a uma série de golpes que têm tirado os direitos dos pobres, dos trabalhadores”, como reconhece o Padre Paulinho, cobra especial importância.

Nessa dinâmica, aconteceu neste último final de semana a 13ª Romaria da Floresta, em Anapú – PA, e a III Romaria do Padre Ezequiel Ramim, que coincidiu com a XI Romaria da Terra e das Águas de Rondônia, em Rondolândia. Nelas foram lembrados dois missionários que chegaram na Amazônia para defender a vida dos mais pobres, a Irmã Dorothy Stang, nascida nos Estados Unidos, e o comboniano de origem italiano, Ezequiel Ramim.

Como reconhece o Padre Paulinho, “Anapú é uma área do estado do Pará onde os conflitos agrários têm sido os mais sangrentos da história”. No momento atual, “o ambiente aqui em Anapú é muito sério, devido à  prisão do Padre Amaro, que foi solto há uma semana e pouco, mas responde ao processo das acusações. Também é um fator onde mexe com toda a sociedade. A gente percebe que em Anapú a cidade também é dividida, o poder do latifúndio é muito articulado e forte, mas o poder popular é mais forte”, afirma o religioso.

Fotografia: Luis Miguel Modino

Mesmo assim, o martírio da Irmã Dorothy foi motivo para que “os camponeses tenham reavivado sua figura com muita força, muita garra, por meio de um grande movimento chamado Romaria da Floresta. Em primeiro lugar para preservar sua memória revolucionária, histórica, mas ao mesmo tempo reforçar a luta de uma maneira bem solidária e organizada”, segundo o religioso oblato. Ele insiste que “a única forma que temos de vencer o poder do latifúndio, qualquer poder de morte é a organização popular”. Nesse sentido ele ve que “a Romaria tem a ótica cristã, e por causa dessa motivação profundamente cristã e encarnada é uma espiritualidade coletiva, de muita paixão pelo Reino de Deus”.

Na mesma direção, o Padre Dário Bossi, provincial dos combonianos no Brasil, falando da figura do seu irmão de congregação, afirma que “Padre Exequiel não é um herói isolado, ele é filho de uma Igreja, que a Igreja do Pós Concilio, de Medellín, de Puebla, que fez claramente opção pelos mais pobres, que tomou o seu lugar ao lado dos povos indígenas, dos trabalhadores e trabalhadoras sem terra”.

No momento histórico que vive o Brasil, o Padre Paulinho reconhece que “todo momento de crise é um momento de possibilidades, de amadurecimento, é um momento histórico como outros de toda a consciência cidadã, cristã, voltar a acreditar que é no meio da massa que se faz a mudança dessa página instalada no país”. Nesse sentido ele vê as muitas romarias que são celebradas no Brasil como um elemento “profundamente profético”. Ao respeito, o religioso “destaca a presença de um grande número de jovens”, o que para ele é muito importante, “uma juventude que não está conformada com o estilo de Igreja que temos, fechada, paroquializada, mofada, uma juventude que quer algo mais, que tem um sonho e está gritando mais forte”.

Fotografia: Luis Miguel Modino

Hoje, seguindo a proposta do Papa Francisco de ser Igreja em saída, é preciso insistir, como reconhece o Padre Bossi, numa “Igreja que ao nosso ver ainda é muito urgente se fazer presente nos desafios de hoje, da Amazônia, neste tempo em que estamos pensando um Sínodo para a Amazônia”, insistindo assim na importância de um processo que pode ter uma relevância histórica. Desde aí, “Ezequiel é uma figura que provoca e que nos dá a direção e nos indica qual é o sentido, o rosto amazônico de uma Igreja mártir numa Amazônia cada vez mais em conflito”.

“A gente percebe que a mudança histórica, as transformações sociais, elas vindo de uma fé consciente, comprometida, apaixonante pela pessoa de Jesus de Nazaré, é algo que nada pode deter”, afirma o Padre Paulinho. Desde essa perspectiva, “a memória da Dorothy é muito viva e presente, mais do que nunca, uma presença vivencial, não apenas uma idéia emotiva, algo que passou”, insiste o religioso, que continua dizendo que a Romaria “não é uma comemoração, mas é um fortalecimento de uma paixão única por ela do povo. Quando o pessoal grita, nós somos hoje Dorothy vivos, é algo revolucionário”.

Para o Padre Paulinho, a romaria “é uma experiência única, que não termina com o encerramento, é uma experiência permanente. Temos que estarmos em estado permanente de caminhada, de marchas, como está acontecendo no país para botar fim aos golpes, como esse que prendeu o Presidente Lula. Hoje o judiciário toma um partido político da extrema-direita reacionária, quebrando o próprio aparelho social, a própria legislação, onde todo mundo era declarado inocente até que se prove o contrario, nós estamos vendo que o contrario tem que se prender, condenar, criminalizar. Não importa que tenha ou não tenha provas, tem que criminalizar”.

“A luta da irmã Dorothy é uma luta de todos, é uma luta coletiva. Aqui na Amazônia Dorothy se tornou ícone de uma causa maior do que ela, ou talvez mais do que ela imaginava”, insiste o Padre Paulinho. Ela é reconhecida, pelo religioso, como luz “nesse imaginário coletivo, nessa consciência coletiva nas questões da Amazônia, grandes projetos que já se instalaram e outros piores que se instalarão para irrigar esse mercado que só vive da destruição e morte, em vista do lucro louco, um lucro onde as coisas mais barbarias do sistema capitalista vão destruir para ter lucro, não importa se tem pessoas na frente, se tem floresta na frente”.

Desde essa perspectiva, “o significado do legado da irmã Dorothy é para toda a Amazônia um raio de esperança, é para todos os povos uma certeza de que só na resistência, na articulação e organização que vamos preservar o que ainda resta de vida aqui na Amazônia, povos, floresta, rios, a biodiversidade”, assegura o religioso oblato, quem insiste em que “é importante essa consciência, que mais do que dos amazônidas, ela é internacional, não por preservar por preservar, para fazer bandeira, senão porque aqui esta jogando o futuro da existência humana na Amazônia”.

Fotografia: Luis Miguel Modino

Devemos ficar com as atitudes que marcaram a vida daqueles que hoje são vistos como testemunhas de uma Igreja pobre e para os pobres. Nesse sentido, o Padre Dário Bossi lembra que “uma coisa importante de Padre Ezequiel é a sua opção pela não violência num tempo arrogante de confrontações cada vez mais violentas e incapazes de se escutar. Ezequiel é testemunha do dom da vida até o fim, mesmo frente a adversários e pessoas que se contrapunham a ele com ameaça armada”.

Ao mesmo tempo, insiste o Padre Bossi, “Padre Ezequiel é uma testemunha de escolha radical de um jovem que decidiu amar até o fim. É um modelo para os jovens que ainda hoje querem viver a vida com paixão e com sentido, como dizia o próprio Padre Ezequiel, tenham a paixão de quem segue um sonho”.

Tudo isso, num momento histórico em que se percebe, segundo o provincial dos combonianos no Brasil, que “a Rondônia de hoje se transformou muito em relação com a Rondônia de Ezequiel, o latifúndio ainda tomou mais posse das regiões, a expansão da soja avassaladora, e com isso também a utilização de agrotóxicos que estão contaminando terrenos, solos e águas. Isso é uma das urgências que precisamos denunciar num contexto em que está se debatendo a flexibilização das leis ambientais no uso dos agrotóxicos”.

Não podemos esquecer que “a Rondônia de hoje é a Rondônia que fez opção pelos grandes projetos hidroelétricos, que estão expulsando as populações de seus territórios, especialmente os ribeirinhos, provocando as grandes enchentes que afastam cada vez a possibilidade das populações originarias manterem uma relação viva e efetiva com seus territórios”, afirma o Padre Dário, e por isso, “com certeza, se Ezequiel vivesse hoje, faria a opção clara e radical em defesa desses povos”.

Hoje continuam presentes as atitudes que levaram à morte ao Padre Ezequiel, “a Rondônia de hoje é também fortemente ameaçada pelas agressões, criminalização e martírio dos defensores dos direitos humanos. Têm muitos Ezequieis que ainda hoje são sacrificados por estarem defendendo a nossa Casa Comum”, conclui o Padre Dário Bossi, deixando claro que mesmo em momentos históricos diferentes existem atitudes humanas que não mudam.

Fotografia: CRB Nacional

A lembrança do Padre Ezequiel Ramim permanece presente na Amazônia e na vida do povo brasileiro com inúmeras iniciativas dedicadas ao seu nome: escolas, casas familiares rurais, projetos de desenvolvimento local, assentamentos de reforma agrária, ruas… Mais uma prova é que Rondolândia, o município onde foi assassinado, tem decretado feriado municipal no dia 24 de julho, memória da morte de um homem apaixonado pela missão e o povo amazônico, como aparece no livro recentemente publicado em português que recolhe suas cartas.

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