FAMA 2018: a água tem direitos e é bem comum

Por Gilvander Moreira

Em Brasília, de 17 a 22 de março de 2018, aconteceu o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) como contraponto ao fórum das corporações – Fórum Mundial da Água. O FAMA teve a participação de sete mil militantes defensoras/es da irmã água, de 35 países, de todos os continentes, articulados em 450 organizações nacionais e internacionais. Nas oficinas, rodas de conversas, conferências, filas do povo, marcha e Ato Inter-religioso ficou claro que o capitalismo é, de fato, uma máquina de moer vidas humanas e vidas de todos os outros seres vivos. Braço do capital no campo, o agronegócio tem demonstrado muitas contradições, entre as quais duas se destacam: uso abusivo de agrotóxicos e dizimação das fontes de água. Por meio do hidronegócio, o agronegócio está sendo um vampiro das águas, e está envenenando a comida do povo com abusivo uso de agrotóxicos e, com isso, adoecendo a população. São 600 mil pessoas contraindo câncer por ano. Esse número está crescendo.

No FAMA 2018, ouvimos palavras de fogo. Uma integrante do Movimento Sem Terra da África do Sul denunciou: “O governo da África do Sul está na iminência de declarar o Dia Zero de Água. Primeiro, roubaram nossa terra. Depois, nossos minérios; mataram nossos líderes e agora estão dizimando nossas águas”. Uma integrante da ANAMURI, do Chile, alertou: “O capitalismo violenta nossa dignidade humana, as fontes da vida – terra e água – e nossos corpos”. Aline Ruas, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), de Minas Gerais pontuou: “Os grandes projetos de interesse do capital estão devastando o Vale do Jequitinhonha, que tem a maior monocultura de eucalipto da América Latina”. Maria das Dores Pereira da Silva, da Pastoral dos Pescadores, conclamou: “Do rio e do mar, cerca nas águas, derrubar!”. Do quilombo Rio dos Macacos, na Bahia, com 85 famílias, Olinda denunciou: “A marinha invadiu nosso território, construiu barragem para lavar navios e, por isso, estamos sendo pisados nos nossos direitos”. Dirlene Marques, feminista de Minas Gerais: “Quando uma mulher é assassinada, todas as mulheres são assassinadas um pouco. Entretanto, nos enterram sem saber que somos sementes”. Ana Suely, indígena do povo Terena, do Mato Grosso do Sul, revelou mais uma contradição do agronegócio: “O agronegócio tem matado muitos indígenas e acabado com nossa água tão amada, que é uma dádiva que Deus nos deu”.

No FAMA 2018, palavras inspiradoras foram socializadas. Maria de Fátima, do Paraná, mostrou a íntima relação da água com os biomas: “As árvores são vida e água. Sem árvores não vamos proteger nossas águas. Árvore é vida. Plante árvores e teremos água”. “Eucalipto, não, pois é vampiro das águas”! – acrescentamos nós. Sem resgatar os cerrados, não haverá como revitalizar as nascentes e nem as bacias hidrográficas. Considerar o cerrado como região de expansão do agronegócio com práticas predatórias está causando um cenário estarrecedor. Uma boliviana apontou o caminho: “Na Bolívia, estamos lutando pela preservação de 77 espécies de milho, porque o milho é nossa raiz”. Cristina, defensora do Manancial de Várzea das Flores, em Contagem, MG, lançou três propostas: “Construirmos o Congresso do Povo; votar em quem se comprometer a revogar os cortes nos direitos sociais e boicotar os produtos da Nestlé, da Coca-Cola e de todas as empresas transnacionais que violam os direitos sociais e causam devastação socioambiental.” Ao lado de uma Pagé marajoara, Tainá marajoara, possuída por uma ira santa, asseverou: “Monocultura não é cultura, pois cultura respeita a biodiversidade. Se a Amazônia cair, a humanidade cairá com ela. Sementes crioulas, sim; sementes transgênicas e agrotóxicos, não! Pela primeira vez, uma empresa transnacional, a Hydro, vai ser responsabilizada pelos danos à cultura tradicional da região de Barcarena, no Pará. Nosso povo está doente, porque os rios estão sendo adoecidos com mercúrio e outros metais pesados despejados por mineradoras. Água não é apenas direito. A água tem direitos. A água é bem comum”. Oriel Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação Quilombola (CONAQ) falou manifestando reverência aos ancestrais e a todos os espíritos presentes: “Peço licença aos nossos ancestrais que atravessaram o oceano Atlântico, em navios negreiros. Até 1988, éramos invisibilizados. Somos descendentes de povos livres na mãe África, que foram escravizados no Brasil e nos Estados Unidos. Até há pouco tempo, éramos “peças”, coisas, mercadoria. Éramos propriedade dos capitalistas. Temos no Brasil atualmente cinco mil comunidades quilombolas. Titular as comunidades quilombolas é a primeira tímida reparação pela dívida histórica que o Estado e a sociedade têm com os povos negros. O capital deve muito para os quilombolas, africanos na diáspora. Há uma América Latina negra negada e subalternizada. A história de luta do povo haitiano e de Palmares é desconhecida. A revolução dos escravos no Haiti fez o Haiti, em 1804, o primeiro país a conquistar a abolição formal da escravidão e a independência política.” Uma indígena Aymara do Altiplano Andino alertou: “Para nós, mulheres indígenas da descolonização, é muito importante fortalecer as mulheres indígenas no feminismo comunitário. A Água, para nós, significa a mãe água. Água é mulher, é mãe. Quem administra a mãe? Para nós, a comunidade é um corpo: um lado são os homens e o outro lado, as mulheres. Somos um corpo e comunidade com a natureza.” Oscar Oliveira, da Bolívia comentou: “Primeiro, alegria por estar no país de Chico Mendes e de Marielle Franco. Temos que passar da resistência à reexistência. Não apenas viver com a água, mas conviver com a água. No fundo, a luta pela água é luta pelo território, espaço político e social organizativo. A luta pela água é luta democrática, porque é luta por quem terá o poder de decidir. Não esqueçamos que a emancipação dos povos superexplorados será obra deles mesmos. Temos que superar o racismo ambiental.”

Segundo o uruguaio Nicolas, exames em peixes do Rio Uruguai detectaram 30 tipos de pesticidas na carne dos peixes. 113 trilhões de litros de água estão sendo exportados do Brasil anualmente através de soja, uva, celulose etc.. É enorme a gula das grandes empresas transnacionais para abocanhar os aqüíferos existentes no Brasil e na América Afrolatíndia. Por isso tanta pressão pela privatização das águas.

Em sua declaração final, o FAMA 2018 denunciou o objetivo das empresas transnacionais: “exercer o controle privado da água através da privatização, mercantilização e de sua titularização, tornando-a fonte de acumulação em escala mundial, gerando lucros para as transnacionais e ao sistema financeiro.” Denunciou também “o crime cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton, que contaminou com sua lama tóxica o Rio Doce, assassinando uma bacia hidrográfica inteira, matando inúmeras pessoas, e até hoje seu crime segue impune. Denunciou o recente crime praticado pela norueguesa Hydro Alunorte que despejou milhares de toneladas de resíduos da mineração por meio de canais clandestinos no coração da Amazônia e o assassinato do líder comunitário Sergio Almeida Nascimento, que denunciava seus crimes.”

No encerramento do FAMA 2018, o Ato Inter-religioso foi uma bênção profética inspiradora. Ver irmãs e irmãos das mais diversas religiões e crenças irmanados revelando a dimensão espiritual da água foi um sinal forte de que não nos calaremos diante dos crimes cometidos contra a irmã água e contra qualquer violação dos direitos da natureza. Faz-se urgente o fortalecimento dessa luta e o FAMA mostrou que somos muito mais e podemos muito mais, no mundo todo. Estamos de pé contra toda e qualquer forma de violência contra a água, que é um bem comum e detentora de direitos.

Belo Horizonte, MG, 27/3/2018. 

Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.

https://www.youtube.com/watch?v=TFJ2p6zTgU8

https://www.youtube.com/watch?v=h9oYamXXbKU

 

Sair da versão mobile