Por Jorge Alexandre Alves*
Os tópicos a seguir constituem uma proposição de elementos fundamentais para a compreensão de algo tão complexo quanto o que estamos presenciando no Leste Europeu. Antes de mais nada: a paz sempre é o melhor caminho. Nas relações multilaterais entre Estados Nacionais, o que se deseja é que conflitos e divergências sejam resolvidos pela via diplomática. Porém, olhar este conflito pela lente da oposição entre heróis e vilões torna míope a leitura dos fatos:
- Diferente do que a maioria da população é levada a concluir, a guerra da Ucrânia não começou há alguns dias com a mobilização militar russa. O que testemunhamos nos últimos dias é a reação militar da Rússia em meio a uma guerra híbrida ou de quarta geração desencadeada a partir da Ucrânia desde 2014 pelos Estados Unidos e seus aliados – principalmente o Reino Unido. Mesmo após o final da Guerra Fria, a elite econômico-militar norteamericana ainda persegue o objetivo de destruir totalmente a Rússia, a despeito de estar muito longe de ser um bastião do socialismo.
- As guerras híbridas baseiam-se sobretudo em mecanismos cognitivos de convencimento da população. Para tanto, lançam mão de operações psicológicas baseadas no ódio, no temor ou na indignação das pessoas. Também promovem narrativas (amplamente difundidas pela mídia corporativa) produzidas por órgãos de segurança nacional para que sirvam de “cortina de fumaça” em relação aos reais interesses em jogo – ainda que tenham que promover campanhas permanentes de desinformação nos meios digitais, mediante o uso de mentiras inteiras (“fake news”) ou meias verdades. Com isso, tentam alcançar o controle de todas as esferas da vida social, econômica e comportamental, no que é chamado de Domínio do Espectro Total.
- Geralmente, os mecanismos da guerra de quarta geração são produzidos por razões econômicas e geopolíticas. Tais mecanismos buscam desestabilizar internamente países ou considerados ameaçadores de interesses estratégicos: energia – como gás ou petróleo, esferas de influência, disputas financeiras e tecnológicas.
- Foi o que aconteceu em várias partes do mundo na primeira metade da década passada, em um fenômeno conhecido como primaveras coloridas. Aspirações populares, legitimamente democráticas nas suas origens, foram manipuladas por órgãos de inteligência e espionagem para desestabilizar algumas regiões do planeta, por diferentes razões. Usando eficientemente a comunicação pelas redes digitais, grupos receberam vultuosos recursos oriundos da elite econômica internacional, tomaram o protagonismo destes movimentos e mudaram a agenda original das mobilizações populares, questionando governos nacionais e ganhando a liderança dos protestos de rua.
- Tais primaveras ocorreram no mundo árabe, na América Latina e na Ucrânia. No Brasil, isso começou com um movimento por mobilidade urbana que praticamente desapareceu da cena pública e desencadeou as famosas Jornadas de Junho de 2013. Os efeitos daquela “primavera” são sentidos até hoje no Brasil. Na Ucrânia, em 2014 surgiram movimentos por maior integração com a União Europeia, após violenta repressão do governo da época. O então presidente ucraniano – eleito democraticamente – alinhava sua política externa com a Rússia. Ele acabou sofrendo um golpe de estado após os protestos (Euromaidan) serem assumidos por diversos grupos de inspiração neonazista, chamados pela imprensa ocidental de “nacionalistas ucranianos”, apoiados por agentes de órgãos de inteligência, mercenários e por instrutores militares ligados aos americanos e aos britânicos.
- A participação dos Estados Unidos no Euromaidan envolveu todo o primeiro escalão do governo ianque, autorizados pelo Departamento de Estado (Hilary Clinton) e pelo então presidente Barack Obama. Quem gerenciou toda a operação naquele momento foi Joe Biden, então vice-presidente dos EUA. O filho de Biden teve um cargo de direção em uma das empresas ucranianas que apoiaram o golpe de estado ucraniano. Até 2019, ele recebia bons salários desta empresa. Após a deposição do presidente pró-russo, foi eleito um comediante de direita à presidência da Ucrânia, Zelensky. Ele incorporou na estrutura estatal de seu país uma série de grupos paramilitares neonazistas que participaram ativamente das mobilizações na Praça Maidan. O maior deles era o Batalhão Azov, especializado em treinar militantes fascistas de todo o mundo.
- Essa tem sido a estratégia norteamericana para tentar se manter como potência hegemônica em escala global. Ora, em meio a um mundo em transformação geopolítica, os tempos de uma única superpotência mundial ficaram no passado. Os conflitos na Europa Oriental podem representar o marco inicial de uma nova ordem mundial, multipolar.
- Para nós vale se questionar sobre como ficarão os mais pobres nesse novo rearranjo geopolítico? Em um possível rearranjo de forças geopolíticas, será possível minimizar ou reverter os efeitos devastadores da catástrofe ambiental cujos efeitos já sentimos? Trata-se de uma nova fase do capitalismo ou começamos a ver seus últimos suspiros? Será possível uma nova ordem mundial capaz de trazer tempos de paz?
- O elemento econômico no cerne destes eventos é o fornecimento de gás para a Europa Ocidental. Os países pelos quais passam os gasodutos provenientes da Rússia em direção à centro europeu recebem royalties por isso. A Ucrânia em 2014 era parte essencial da cadeia logística porque em seu território passa um dos gasodutos que abastece principalmente a Alemanha e, em menor grau, a França. Para baratear o custo do gás, alemães e russos construíram em consórcio um novo gasoduto pelo Mar do Norte, o Nord Stream II. Ao mesmo tempo, gás russo tem entrado no continente europeu pelo sul, a partir da Turquia e da Bulgária. Se o Nord Stream II começar a operar, não haverá fornecedor de gás para Europa capaz de concorrer com os russos.
- Os norteamericanos passam por uma “Síndrome do Leão Ferido”. É uma tentativa (desesperada) de recuperar ascendência e hegemonia sobre a Europa Ocidental e se reafirmar como potência global provocando uma ruptura total das relações comerciais dos europeus com os russos. Os EUA, por sua vez, pretendem fornecer gás liquefeito de petróleo (GLP) ao Velho Continente. Para tanto, seria necessário construir uma estrutura portuária inexistente para receber os navios norteamericanos. Quem pagaria por isso? A União Europeia? Portanto, a Europa precisa mais do gás russo do que os russos precisam dos recursos financeiros dos europeus. Ao anunciar sanções econômicas contra a Rússia, alemães e franceses comprometem sua infraestrutura interna. Terão condições de fazer isso até quando? Até porque a anunciadas sanções econômicas se voltarão contra os europeus em médio prazo. A Rússia dispõe das maiores reservas cambiais do mundo.
- Não há inocentes e nem isentos nessa história. A narrativa da grande imprensa brasileira (Globo, Band, Folha de SP e Estadão) reproduz o discurso dos grandes jornais norteamericanos (The Washington Post e The New York Times) e dos conglomerados de mídia como CBS, NBC e CNN. Todos eles, por sua vez, repercutem ideias e conceitos de um centro de estudos internacionais (CSIS – Center for Strategic and International Studies) e de órgãos do chamado Deep State (Pentágono, NSA, CIA) norte-americano. Na mídia corporativa ocidental não existe contraponto nas análises da questão ucraniana. Apenas se insiste em demonizar a figura de Putin, escondendo fatores de fundo que também são responsáveis pelo horror do conflito armado. Às vezes, meias verdades são muito mais nocivas que mentiras inteiras.
- Uma questão incômoda: faz sentido a existência da OTAN tanto tempo depois da queda do Muro de Berlim? A elite econômico-militar anglo-saxã deseja a destruição os russos. É mais que oposição ao Putin. É quase uma questão racial. Porém, a Rússia dispõe do aparato militar tecnologicamente mais avançado do mundo, uma geração superior ao dos chineses e entre duas e três gerações superior à dos americanos. Por essa razão a OTAN late, mas não morde e a Ucrânia foi deixada pelos seus amigos ocidentais à própria sorte. O presidente ucraniano apostou alto ao solicitar dias atrás a entrada da Ucrânia na OTAN e ao defender a reconstituição do arsenal nuclear ucraniano. Putin respondeu ao blefe de Zelensky e o resultado assistimos consternados.
- Como já foi dito, a crise no Leste Europeu não é uma questão local. Não diz respeito somente à Ucrânia, mas a uma nova ordem mundial, multipolar, que poderá caracterizar as relações internacionais no século XXI. Em última análise, tais eventos nos remetem às disputas entre americanos e chineses (os russos são os seus principais aliados geopolíticos). A China e a Rússia estão desenvolvendo um novo sistema de pagamentos de comércio exterior previsto para operar a partir de 2024-2025. Eles não pretendem mais usar o Dólar nas transações comercias internacionais. Será o começo do fim do império? Para além da parceria estratégica sino-russa, os chineses observam atentamente o desenlace da situação ucraniana e tiram valiosas lições. Hoje é a Ucrânia. Dentro de poucas décadas poderá ser a “província rebelde’ de Taiwan…
- Putin é autoritário, machista e homofóbico. Mas não é fascista. Nem tampouco a pretende reeditar a União Soviética, mas se aproveita da simbologia do poder dos tempos do socialismo real, e de sua força histórica no século XX. Vale dizer, os comunistas fazem oposição a Putin. Uma ação militar é inaceitável, mas não podemos perder de vista uma coisa: Os russos foram tenazmente provocados. Em 2008, um relatório da embaixada americana em Moscou posteriormente vazado no site wikileaks apontava essa estratégia.
Finalmente, ninguém deseja ver bombas atiradas sobre civis, mas esta guerra de quarta geração já estava matando há tempos em várias partes do mundo. Em uma guerra, a primeira vítima sempre é a verdade, como temos experimentado no Brasil com as chamadas “fake news”. No Ocidente, ela sumiu dos noticiários sobre a Ucrânia desde 2014.
Aqui no Brasil não temos bombardeios nem tropas invasoras, mas quem deveria nos proteger detonou os mecanismos de quarta geração que pôs o país de joelhos. Infelizmente, as consequências da guerra híbrida em território nacional mataram e ainda podem matar muita gente…
*Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor e faz parte do Movimento Fé e Política.