Maria Freire é religiosa da Congregação do Imaculado Coração de Maria, onde no mês de dezembro assumiu o serviço de provincial. Mas ela tem dedicado a maior parte de sua vida ao fazer teológico, abordando o campo da Trindade, onde no tempo em que ela começou não era muito frequente a presença feminina.
Professora ao longo de muitos anos em diferentes faculdades de São Paulo, a religiosa diz que, pessoalmente nunca sofreu nenhum tipo de preconceito pelo fato de ser mulher teóloga, mesmo reconhecendo, que algumas colegas sofrem por isso.
A figura do Papa Francisco é de grande importância, segundo Maria Freire, vendo no bispo de Roma “uma espécie de personificação do São João Crisóstomo”, alguém que “conhece profundamente a teologia, ele conhece a tradição, conhece de tal forma que ele sabe fazer com que essa teologia desça para a vida”, insistindo em que aqueles que dizem que o Papa Francisco não conhece a doutrina da Igreja, “isso é pura ignorância de quem diz isso, e quem diz isso é porque não conhece”.
Sua nova missão como provincial supõe para Maria Freire um se despir de tudo o que vinha realizando até agora, ser professora de teologia. Nesse sentido, ela afirma que “o fazer teológico, ele só tem beleza se estiver com os pés assim, um na periferia da história da vida do povo e um na academia. Por que se ela for os dois pés na academia, a teologia se torna de gabinete, não vai iluminar”.
Junto com isso, a religiosa reconhece na entrevista que “últimos anos houve uma redução, mesmo na nossa congregação, das irmãs que estavam em áreas mais urgentes e radicais da missão”, chegando afirmar que “as congregações no geral, elas passam por uma experiência morna da vida e da ação missionária”.
Para mim enquanto pessoa não foi difícil e não é difícil, por causa da construção que eu fui fazendo pouco a pouco na vida da faculdade. No início, ainda quando eu estava estudando, e por optar por teologia dogmática, todo mundo questionava, sobretudo os padres, porque você quer esse curso? Só vejo sempre homens nesse curso, porque você como mulher quer esse curso, porque não espiritualidade, porque não Bíblia? Eu respondia, não, porque eu quero teologia dogmática. Mas, qual é o objetivo de você fazer dogmática? O objetivo de fazer dogmática é estudar sobre a Trindade, e isso está na dogmática. Isso aqui no Brasil.
Depois, fazendo mestrado, eu fui convidada para dar algumas aulas no lugar do meu professor. Aí fui começando a abrir brechas, que a gente diz. Quando fui fazer o doutorado em Roma, novamente lá na Gregoriana, vários amigos meus lá da Espanha, padres, diziam: mas porque você optou por teologia dogmática? Por que não optaria? Aí eles diziam que na Gregoriana você está sendo a única mulher fazendo teologia dogmática, você quer ser madre? Não, quero dar aula, vou dar aula.
O que tem significado dar aula durante tanto tempo na sua vida como religiosa?
Para mim foi uma experiência muito boa, porque eu gostava de dar aula, e era a partir também daquele espaço que eu podia contribuir com a Igreja a través sobre tudo da formação dos seminaristas. Mesmo que esses seminaristas, na sua maioria, eles saem e fazem tudo diferente do que a gente trabalhou, mas para alguns fica o que nós trabalhamos em aula.
Primeiro, eu me senti realizando o que foi uma reflexão nos bastidores do Concilio Vaticano II, porque lá as mulheres que foram participar do Concilio Vaticano II, mais no sentido de uma ouvidoria, porque não tinham voz, elas exigiram que também as mulheres pudessem participar na vida da Igreja, não apenas proclamando a Palavra de Deus, ajudando no altar, mas mulheres que fizessem teologia, que fossem teólogas e pudessem também ensinar nas universidades de teologia.
Eu de certa forma, eu fiz um jogo de cintura, eu fui construindo um espaço que eu adquiri uma autoridade. Eu percebia que algumas mulheres que ensinam em outras universidades não tinham a mesma experiência que eu, de poder dialogar com os colegas, de ser aceitas pelos colegas. Eu percebi que isso era um privilégio meu, que me inquietava também. Ainda no último ano, uma mulher, professora em outra universidade, ela diz assim, eu sofro bastante preconceito por ser teóloga mulher nessa universidade, como é que você se sente na sua? Não tive isso, não sinto isso. Se tinha, talvez fosse camuflado, não queriam deixar transparecer que tinham esse preconceito por eu ser mulher.
Mas eu sou consciente de que eu adquiri uma posição no grupo que não dava para essa questão do preconceito comigo por eu ser mulher. Ao mesmo tempo, eu percebia que era mulher diferente, mulher consagrada. Então não era tão vista como uma mulher no nosso meio, mas uma consagrada em nosso meio. Há uma distinção ainda nesses mesmos meios acadêmicos, uma mulher comprometida com a vida social lá fora, casada, que ensina lá, ela também não diz ter sofrido esse preconceito, mas a gente percebe que há uma distinção.
A senhora fala que sempre deu aula para seminaristas. Vários professores em diferentes faculdades, sobretudo nos últimos tempos, dizem que os seminaristas muitas vezes procuram formação alternativa. É difícil dar aula quando a gente sente essa falta de vontade de escutar, mais ou menos explícita ou, às vezes, até disfarçada?
Normalmente as aulas são formadas de umas 50 ou 60, seminaristas juntos com irmãs, com leigos, tanto homens como mulheres. Alguns professores, a gente dialogava que fulano é muito impontual, fulano parece que está aqui, mas ele não quer nada disso do que a gente fala. Mas como eu trabalhava mais a questão da Trindade, da Pneumatologia, são disciplinas que você pode trabalhar a questão da prática e você pode trabalhar a questão da espiritualidade. Conhecendo o grupo, eu trabalhava muito a questão da espiritualidade, que aí você conquista também de certa forma o grupo, porque o grupo também é sedento desse lado. Se você não trabalha isso na teologia, não só numa disciplina de espiritualidade, mas na sua também, você dá margem para ele procurar outros elementos.
Nas avaliações sempre disseram que gostavam das minhas aulas por esse viés que eu fazia na teologia trinitária, como eu levava a questão prática, mas também uma necessidade de uma verdadeira espiritualidade que brotasse de uma intimidade com o Mistério Trinitário.
A senhora diz que fez o doutorado na Universidade Gregoriana e lá descobriu provavelmente o jeito de fazer teologia e o pensamento teológico dos jesuítas. Alguns dizem que a teologia do Papa Francisco é muito fraca. Partindo do seu conhecimento como teóloga, como alguém que conheceu um pouco desse modo de fazer teologia dos jesuítas, o que tem a dizer diante dessas afirmações?
Eu acho que é uma grande ignorância dizer que a teologia do Papa Francisco é fraca. Primeiro o Papa não tem a intenção de fazer uma elaboração teológica. Ele está pegando elementos teológicos e os leva à prática. O Papa Francisco não escreve livros de teologia, mas com a teologia ele se inspira para falar de uma realidade, o seguimento a Jesus Cristo, o cuidado com a vida humana.
Ele não está desenvolvendo nenhuma questão digamos o que significa afirmar que Deus é comunhão e que Deus é substancia, ele não está falando disso. Por tanto, as pessoas confundem uma teologia aplicada, que é o que o Papa Francisco faz, com uma teologia digamos mais essencialista. Eu acredito que o Papa Francisco conhece profundamente a teologia, ele conhece a tradição, conhece de tal forma que sabe fazer com que essa teologia desça para a vida. Por que somente conhecendo uma tradição, sabendo que ela é grávida dessa realidade da defesa da vida.
Quando o Papa Francisco se pronuncia, eu vejo nele os primeiros séculos da Igreja, sobretudo vejo uma espécie de personificação do São João Crisóstomo, que era um padre da Igreja no século IV, da escola de Antioquia, que conhecia profundamente a experiência das comunidades em torno da pessoa de Jesus Cristo, fazia uma teologia e sobretudo uma doutrina social da Igreja e que o Papa Francisco está visibilizando hoje, trazendo à tona pensamentos que foram deixados de lado no século IV da Igreja.
Eu vejo nele um homem profundo e um profundo conhecedor, bem formado no sentido da teologia, mas é um homem que não está preocupado com o fazer teológico, mas com a questão prática da vida da Igreja. Não acredito quando alguém diz que o Papa Francisco não conhece, não sei se você já ouviu a doutrina da Igreja. Isso é pura ignorância de quem diz isso, e quem diz isso é porque não conhece.
Depois de muitos anos como professora, no final de 2017 foi eleita provincial da sua congregação. Como fazer essa mudança da sala de aula para um trabalho institucional, acompanhar a vida das religiosas de sua província?
A experiência que eu fiz ela vai de oito a oitenta, porque eu tinha, como professora na universidade, tudo muito bem controlado. Eu tenho um conteúdo, esse conteúdo é pensado, ele é elaborado e reelaborado e aplicado e no final do semestre eu tenho um resultado. Vindo para a função de provincial, eu tinha que me despir disso, o primeiro passo que eu tinha que fazer era deixar de lado de certa forma a objetividade, porque a vida de provincial ela não tem medida, e nem sempre tem resultado, pelo menos não como a gente tem na academia. A experiência de provincial ela é 24 horas nessa função.
Eu fiz uma experiência nos últimos dias da seguinte maneira: puxa, provincial não tem vida própria. Por que quando você pensa que agora findou meu dia, é uma experiência muito diferente e, ao mesmo tempo, que já se encantou bastante na minha interioridade de não ficar com tanta saudade da faculdade, que eu pensei que ia sentir demais, mas talvez essa reviravolta que exige muito, a cada momento é novo, fez com que eu não tenha tempo de pensar muito agora na academia.
Muitas das suas comunidades fazem um trabalho inserido. Como iluminar desde a teologia esse trabalho pastoral, muitas vezes com pessoas que vivem nas periferias geográficas e existenciais? Como dar um sustento teológico a esse trabalho pastoral do dia-a-dia que as irmãs realizam?
Enquanto eu estava na universidade sempre diz que eu tenho um pé na universidade e um pé na periferia, porque eu assessorei sempre a periferia, e em trabalhos variados na minha assessoria. Eu penso que o fazer teológico só tem beleza se ele estiver com os pés assim, um na periferia da história da vida do povo e um na academia. Porque se ela for os dois pés na academia, a teologia se torna de gabinete, ela não vai iluminar. Você também não vai fazer teologia, você vai repetir um método teológico, um conteúdo que a tradição veio trazendo.
Eu penso que o teólogo na periferia da vida, ela pode ler as experiências com um olhar de Deus, mas também fazer a experiência um pouco. Depois, quando a teologia volta à academia, ela vem cheia, plena de uma realidade. Então você tem como trazer o seu coração cheio desse povo, dessa realidade para a academia, e você vai da academia ao povo, também iluminando essa realidade.
Eu tive um processo de dois anos para trabalhar o Credo Niceno Constantinopolitano com o povo. Cada mês um artigo, dois anos e terminamos. Um senhor muito simples diz assim para mim: eu rezava, mas eu não sabia o que rezava, eu não pensava no que rezava, agora penso no que rezo e sei o que estou rezando, estou feliz de ter aprendido o que significa nossa fé a traves do Credo.
É diferente entre um fazer teológico puramente acadêmico e um fazer teológico quando você tem rostos, você tem diversidade de rostos e você vai aprender a perceber a experiência de Deus nesses rostos, aí você ilumina a teologia com esses rostos, e esses rostos ao mesmo tempo são iluminados com a teologia, é dialético.
Um desses trabalhos nas periferias que suas irmãs desenvolvem, inclusive participando de redes internacionais, é o trabalho com as vítimas do tráfico de pessoas, que é um dos aspectos em que o Papa Francisco insiste muitas vezes. O que significa esse trabalho para a Congregação?
Eu vejo como um trabalho que é urgente a congregação assumir e visibilizar mais. Tem a comunidade em Manaus que é uma comunidade que visibiliza isso na congregação, esse trabalho, mas poderíamos focar mais nesse trabalho. Ao mesmo tempo, a gente sabe que é um trabalho que exige uma mística própria, porque é um trabalho que não é tão objetivo, o resultado não é de imediato. É necessário que se tenha uma mística que corresponda a esse sair de sim. Esse trabalho eu vejo, em nível de congregação, mas essa comunidade que faz, é uma espécie de evisceramento, a pessoa eviscerasse nesse trabalho.
As irmãs são totalmente voltadas, debruçadas nessa realidade, eu chamo isso de eviscerar-se, ir para fora para poder acolher a realidade e visibilizar no sentido da denúncia dessa realidade. Isso, ao mesmo tempo, não é tão compreendido para a congregação na sua totalidade. É um trabalho que falamos, que está nos nossos documentos, mas que a congregação no seu todo ela não tem ainda compreendido a urgência disso. Quando digo compreendido não digo na compreensão intelectual, mas na compreensão da experiência, de fascinação também de outras por esse trabalho.
Poderíamos dizer que dentro da Igreja, na vida religiosa, quem procura atividades pastorais que escapam daquilo que sempre foi feito, sofre essa falta de entendimento dentro da própria Igreja, das congregações?
Eu acho que sim, pois nos últimos anos houve uma redução, mesmo na nossa congregação, das irmãs que estavam em áreas mais urgentes e radicais da missão. Um porque há um envelhecimento também das pessoas e poucas jovens que vão sendo fascinadas por essa realidade, e a compreensão de missão que é cômodo, a pastoral paroquial, uma pastoral estruturadinha, que não joga você no desconhecido.
Talvez esse trabalho que algumas irmãs assumem, joga muito a pessoa no desconhecido. Isso dificulta para as congregações também, e viver no desconhecido é não ter certeza do amanhã, você mergulha no desconhecido. Há uma tendência na vida religiosa, partindo daquilo que está no Apocalipse, nem quente, nem frio, morna, talvez neste momento, não todas as pessoas das congregações, mas as congregações no geral, elas passam por uma experiência morna da vida e da ação missionária.
A senhora fala sobre essa falta de vocações. No próximo mês de outubro vai acontecer o Sínodo da Juventude, que também vai abordar a questão vocacional. Como a Igreja ou as congregações podem trabalha essa questão vocacional num mundo onde a juventude tem um pensamento tão diferente e com experiências de vida tão distintas?
Do meu ponto de vista isso é bastante complexo, falar sobre essa questão, que primeiro seria uma metodologia nova, que a gente tem falado de metodologia nova, mas a gente não encontra assim facilmente, para trabalhar com as juventudes hoje. Depois é questão de ultrapassar a compreensão de uma cultura única e perceber que as juventudes também têm as culturas. Eu falo em juventudes, mas eu penso numa cultura única da juventude. Como eviscerar-se de si para conhecer melhor os jovens, estar no meio deles, qual é o pensamento deles ao respeito disso.
Mas também para o jovem ver o que é que ele vai ganhar com isso. O que o jovem ganha hoje entrando numa vida de congregação como nós estamos estruturados? A vida consagrada hoje, ela fascina? A vida da Igreja fascina? A questão da experiência fascinante é importante para a juventude hoje, porque o que é que o jovem busca? O que fascina, o que dá alegria. A vida religiosa ela tem que novamente fazer um movimento e ela se encontrar em se mesma a alegria, como diz o Papa Francisco. A questão da alegria é fundamental.
Nós temos o Papa Francisco que é um referencial de alegria, mas por ser essa experiência de uma pessoa e de poucas pessoas na vida das congregações e da Igreja parece até inatingível isso.
Essa vivência morna que a senhora falava, não faz com que a gente como padre, como religiosa, deixe de encantar os jovens para sentir a alegria de servir a Igreja a partir dessa vocação consagrada e sacerdotal?
O que é, por exemplo uma religiosa morna, do meu ponto de vista. É alguém que ela se estruturou de tal forma em se mesma que ela já não tem a alegria de ser consagrada, ela não é o diferencial no espaço que ocupa e isso vai levar para os jovens um desencanto também. Há na vida religiosa no geral, e a gente pode dizer isso no sentido do rosto da vida consagrada em América Latina, um rosto sério demais e às vezes triste também, ou às vezes indiferente.
Mesmo que tenha um bom número de pessoas consagradas e sacerdotes que são felizes, realmente são e transmitem essa felicidade, mas tudo aquilo que é mais negativo, que é mais morno, aparece com uma força muito grande para a juventude. Têm pessoas que são felizes por estarem ali e outras que estão felizes mas, não têm compromisso real com a vida da Igreja, e quando eu falo em alegria falo em alegria de ser e construir junto aquilo que possa visibilizar aquilo que é do Reino de Deus.