Natal do “Jesus da gente” E o enredo da Estação Primeira de MAngueira 2020 (Eu quero um Jesus que não está no retrato)

Pe. Gegê

Sob o prisma da teologia cristã, a meu juízo, o enredo da Estação Primeira de Mangueira 2020 (“A verdade vos fará livres”) ou Estação Primeira de Nazaré, conforme a letra do samba enredo de Manu da cuíca e Luis Carlos Máximo constitui o mais potente, o mais subversivo e o mais evangélico cartão de Natal das populações vulnerabilizadas. O samba, a “voz do morro”, voz dos povos subalternizados (indígenas, negros, mulheres, gays, trans, etc…) capta a essência do evento-Cristo, Deus encarnado – “Deus conosco” e não “Deus acima de todos”. O sistema colonial escravocrata de ontem e de hoje transformou a Pessoa de “Jesus” no mais lastimável e potente “fake news” – ideologia sacralizadora e legitimadora da tortura, da barbárie e da morte. Lamentavelmente é esse “Jesus” que está no retrato; e o pior, é esse “Jesus” defendido por não poucos bispos, padres, pastores e pastoras. É esse Jesus que também é defendido e anunciado por muitos cristãos e cristãs que não participam das hierarquias religiosas. Em resumo, “Jesus”, por incrível que pareça, desde a gênese do processo colonizador, foi usado como a imagem mais forte de legitimação da violência e da morte. “Jesus” tornou-se a ideologia mais diabólica de dominação.
A Estação Primeira de Mangueira, ao assumir o enredo sobre a figura e mensagem de Jesus a partir das vítimas, toca no coração do poder hegemônico, na idelogia mais cruel e falsa sustentada por aqueles que despudoradamente roubam e matam em nome Deus. Nesse horizonte, a Mangueira oferece, para além de crença ou religião, um samba descolonizador, um samba que evidencia a mentira do sistema opressor, um samba que ajuda ao povo a não crer nesse deus de araque inventado pela colonialidade para “roubar, matar e destruir”. Esse deus-jesus-fake-news precisa morrer sem jamais voltar a existir. E o que o Samba mata jamais ressuscita. Acredito que uma das maiores contribuições do enredo 2020 da Mangueira seja justamente revelar e desqualificar a ideologia colonial-escravocrata eurocristã ancorada na união ilegítima da Bíblia/cruz com a espada/arma. Sustenta acertadamente o Samba a falsidade de um “Messias com arma na mão”. O enredo da Mangueira 2020 é flecha certeira de Oxossi no coração de um mundo sem coração.
Partindo da Mangueira/Nazaré (localização indispensável do sujeito do discurso), território dos povos empobrecidos e marginalizados, o Samba enredo 2020 da Mangueira enuncia sambisticamente um Jesus que não está no retrato: o “Jesus da gente” – “moleque pelintra do buraco quente” – “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”.
O Natal para mim( e para muitas e muitos) é o nascimento desse Deus. E na companhia Dele (“Jesus da gente”) conforme escreve Conceição Evaristo em seu “Poema de Natal”, “podemos como deuses milagrar a vida”. E aconselha ainda Conceição, a mater generosa das escrevivências das Letras Pretas: “Basta tomar o fogo-brilho da estrela e com a chama do divino-humano que em nós habita, maravilhar o mundo com a estrela-guia da justiça.
Estamos, pois, diante de duas grandes façanhas que um bom Samba é capaz de fazer: “milagrar a vida” e “maravilhar o mundo”.
E é isso que fez e faz o “Jesus da gente” – o Deus de “peito aberto e punho cerrado” – O jesus que não está no retrato.
Gratidão, Estação Primeira de Nazaré, pela produção de um hino de Natal em forma de Samba. A colonialidade de poder não só inventa “mil pecados”, conforme diz o samba enredo, como também “mil mentiras”, talvez a mais perversa e diabólica seja a de um Jesus legitimador e sacralizador da matança de toda forma de vida. Esse “Jesus” é fake news. Não é esse deus-fake que celebramos no Natal.
Desejo, pois, ao mundo do samba e ao mundo dos que sonham e lutam por um mundo novo, um feliz e potente Natal.
Podemos sim milagrar a vida!
Por fim, vale dizer à Estação Primeira de Nazaré: ” saiba que estou do seu lado e do lado do Samba também”.
Axé natalino para todas e todos!

Link do samba enredo da Mangueira 2020:

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