“No grito, a dor e o pranto, no canto, libertação”
Irmã Miria Kolling
Em todos os tempos, embora em meio às forças conservadoras dos modelos capitalistas, racistas, patriarcais e hierárquicos, muitas mulheres ousaram levantar suas vozes proféticas, desafiando normas políticas, culturais e religiosas preestabelecidas, para denunciar injustiças e promover a vida, a liberdade e os direitos humanos e sociais. A autoridade missionária e profética das mulheres é historicamente incontestável, tanto nas Igrejas como na sociedade.
Como manifestação potente de fé, coragem e compromisso com a justiça, as vozes feministas vêm ressoando na história como um eloquente chamado à transformação das estruturas de opressão e à construção de um mundo mais justo, solidário e sustentável. Com lucidez espiritual e aguçada sensibilidade, desde as mulheres inscritas ou não nas narrativas bíblicas, até os dias atuais, as mulheres têm feito repercutir seu grito profético, pela denúncia das injustiças, o anúncio da esperança e a encarnação compassiva, misericordiosa e solidária com os pobres e sofredores.
Vozes que ecoam
Na aurora dos tempos, elas já cantavam,
Mulheres de coragem, de fé, de esperança.
Eram Miriãs, Déboras, Marias, profetizando,
Em meio ao silêncio, sua voz já dançava.
Nos vales sombrios da dor e opressão,
Erguem-se firmes, com lucidez espiritual e fogo no coração.
Seus lábios anunciam promessas sagradas de vida,
Semeiam justiça, paz e misericórdia, com coragem e ousadia.
Na Bíblia, várias mulheres se destacaram como profetisas, diaconisas, líderes e portadoras da mensagem libertadora de Deus, em contextos de crise, dor, sofrimento e múltiplas escravidões. No Antigo Testamento podemos mencionar algumas que se destacam nesta grande rede de ousadas mulheres: Míriam, que com sua dança, tamborins e canções, após acompanhar o povo na travessia do Mar Vermelho, expressa um grito de libertação e celebração, proclamando a vitória de Deus sobre a opressão do Egito (Ex 15:20-21); Débora, a juíza e profetisa, que com sua beleza, sabedoria e tenacidade, defende as tribos junto com o exército popular, com a parceria de outras mulheres (Jz 4-5). Ester, com sua sabedoria e coragem, levanta sua voz diante do rei para salvar seu povo da morte, assumindo um papel profético de intercessão e ação contra a injustiça, “meu desejo é a vida do meu povo” (Ester 7).
Profetizam um mundo onde reina a justiça e a verdade
Onde os fracos são fortes, há respeito e inclusão, igualdade
O grito delas corta o véu da história,
Chamando à vida, à paz, à memória.
São mulheres – irmãs, mães do povo, guerreiras de luz,
Guiando os passos à cruz que reluz.
Solidárias ao pobre, ao que sofre e chora,
Carregam o Reino em cada aurora.
Nos textos do Novo Testamento, podemos citar: Maria de Nazaré que, no cântico do Magnificat, profetiza sobre a inversão das estruturas de poder, exaltando os humildes e denunciando a tirania dos poderosos (Lc 1,46-55); Marta e Maria, as diaconisas da Igreja-doméstica, Igreja-comunidade de Betânia, mulheres da escuta, do acolhimento, da palavra, do serviço e da liderança ministerial (LC 10,38-42); Maria Madalena, a primeira testemunha da ressurreição de Jesus, a mulher portadora de vida e esperança, líder, amiga e amada pelo mestre Jesus, a grande Apóstola dos Apóstolos, a mulher que em saída missionária, anuncia a aurora de um novo tempo.
Não temem o jugo que o mundo impôs,
São vozes proféticas que falam por nós todas e todos.
E em sua jornada de fé e cuidado, seu grito ecoa indignado
A esperança profética, floresce no chão pisado.
Que nunca se cale a canção feminista,
De sonhos, justiça, e luta humano-divina.
Pois onde uma mulher ergue sua voz,
Há o pulsar de Deus, vivendo em nós.
Na história do cristianismo e da sociedade em geral foram inúmeras as mulheres que se empoderaram e confrontaram sistemas de injustiça, sejam eles políticos, sociais, econômicos ou religiosos. Para exemplificar menciono: Catarina de Siena (século XIV), Teóloga e Doutora da Igreja; Tereza de Ávila (séc. XVI) – Escritora e Doutora da Igreja, mulher mística, de entranhas feministas; a filósofa e mártir Edith Stein (séc. XX), mulher de aguda sensibilidade, fé e coragem, comprometida com a verdade e a justiça, mesmo em face da perseguição e do sofrimento; Dorothy Day (séc. XX) Fundadora do Movimento dos Trabalhadores Católicos, que com sua voz profética denunciou a desigualdade social e promoveu a solidariedade com os pobres; Harriet Tubman (Séc. XIX), uma mulher afro-americana que, movida por sua fé, libertou centenas de escravizados e denunciou o sistema escravagista; Josefina Bakhita (séc. XIX), mulher negra, do Sudão, que foi escravizada e traficada, e hoje é padroeira das vítimas do tráfico de pessoas; a revolucionária Olga Benário Prestes (séc. XX), martirizada no campo de concentração nazista, pelo seu compromisso social e político; IrmãDorothy Stang, profetiza e mártir dos povos da floresta (Séc. XXI); Malala, a jovem ativista paquistanesa que aos 17 anos recebeu o prêmio Nobel da paz, por ter levantado a voz em prol da educação para todas as meninas do mundo.
Seguindo na trilha destas e de tantas outras mulheres que por motivações humanísticas e políticas, ou impelidas pela fé ativa e operante, ousaram transgredir o preestabelecido, gritar, lutar e fazer história. Na contramão do sistema capitalista/patriarcal, milhares de vozes contemporâneas, mulheres em diversas partes do mundo continuam a levantar gritos proféticos, lutando por direitos humanos, justiça socioambiental, igualdade de gênero e pela paz.
No cenário mundial hodierno – injusto, desigual e violento -, o grito profético das mulheres ressoa em diversos contextos:
- No combate à pobreza, muitas mulheres levantam suas vozes para proteger os vulneráveis e lutar contra as estruturas que perpetuam as desigualdades. Fazem-se solidarias com os excluídos/as, vivem e agem junto a eles, colocando suas próprias vidas em risco na defesa de sua dignidade e direitos;
- Na luta pela igualdade de gênero, mulheres se juntam, se organizam e denunciam a violência, a discriminação e a exploração, clamando por um mundo onde todos sejam tratados com dignidade, e suas vidas e corpos sejam respeitados;
- Na Igreja e na sociedade, mulheres de fé continuam a proclamar o Evangelho com coragem, muitas vezes desafiando tradições que limitam sua atuação;
- Na defesa da criação, em meio às crises socioambientais, as mulheres têm sido vozes proféticas, defendendo a justiça ecológica e o cuidado com a casa comum, gestando processos de transformação como artesãs do cuidado, com um grito marcado pela compaixão, pois elas unem a luta pela justiça socioambiental, com um amoroso cuidado com os/as vulneráveis;
- Na resistência e no anúncio de esperança, pela religião e/ou pela arte e cultura, elas proclamam a presença e ação de Deus na história, a força da educação e organização popular, a construção de pontes e redes, como sinalizadores de um futuro novo de justiça, paz e reconciliação.
A recente, corajosa e profética fala da Bispa Mariann Edgar Budde, pedindo compaixão e misericórdia para os grupos marginalizados dos EUA, principalmente aos imigrantes e à comunidade LGBTQIAPN+ no ato inter-religioso, da posse do presidente Donald Trump, que iniciou seu governo com a deportação em massa dos imigrantes de diversos Países da América e decretos discriminatórios e excludentes da comunidade LGBTQIAPN+, dentre outras medidas de cunho autoritário, fez e faz eco o grito profético destas fileiras de mulheres contemporâneas que não se omitem e nem se rendem diante das injustiças. Ao contrário, denunciam e nos fazem esperançar e não deixar cair a profecia, evidenciando que, “(…) as mulheres têm muito a contribuir com suas experiências, saberes, demandas e propostas para o desenvolvimento dos países. É preciso fortalecer sua participação e liderança nas igrejas, na política, na educação, nos espaços públicos e decisórios em geral, ampliando seus direitos, sua voz e seu poder, pois é essa visibilidade e protagonismo em diferentes espaços que possibilitam questionar o status-quo, denunciar problemas, pensar em soluções, avançarmos em mudanças e garantir a diversidade, a democracia e a justiça social” (Ludmila Pinho).
Oxalá, sejam as nossas Comunidades Eclesiais de Base, nossas pastorais, movimentos, organismos a fazerem eco às vozes proféticas das mulheres, proclamando-se contra toda a desesperança de nossos dias.