Paulo Fernando: “Reflexões sobre o Documento do Vaticano”

“Oeconomicae et Pecuniarie Quaestiones. Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-finaceiro”

No mês passado veio a público um documento do Vaticano sobre o atual sistema econômico-financeiro. É um documento importante que recoloca o Evangelho no centro da Missão da Igreja Povo de Deus no mundo de hoje.

Hoje vivemos em uma economia globalizada onde um mercado soberano, que rejeita qualquer regulação, reduz todos os indivíduos a consumidores. Contra a visão Liberal e Neoliberal o Documento afirma claramente que o Mercado “não é capaz de regular-se por si mesmo”, levando a uma crescente concentração de renda e capital e à exclusão de amplos setores da população que são desempregados, privados de trabalho digno, e de acesso aos bens materiais e imateriais mais elementares, constituindo massas sobrantes.

Segue um artigo escrito Paulo Fernando Carneiro de Andrade[1]

No dia da Epifania do Senhor, 6 de janeiro de 2018, dois importantes organismos da Santa Sé, A Congregação para a Doutrina da Fé e o novo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral publicaram conjuntamente um Documento, previamente aprovado oficialmente pelo Papa Francisco, de importância fundamental sobre o atual sistema econômico-financeiro. O Documento é dividido em três partes: uma “introdução” seguida de algumas “considerações elementares de fundo” e de “algumas pontualizações no contexto contemporâneo”. Aqui nos deteremos nas duas primeiras partes. O Documento será sempre citado por esta sigla: OPQ

Em primeiro lugar deve ser destacado algo que sempre foi muito importante para a Teologia da Liberação e que aqui encontra plena acolhida, dentro do espírito do Concílio Vaticano II (LG 8). A Boa Nova da Salvação Revelada em Cristo e por Cristo não diz respeito apenas às pessoas humanas, mas a toda a Criação. Isto é, Deus não oferece sua redenção apenas às pessoas, mas a todas as criaturas, ao mundo e suas estruturas: “Nesta integralidade do bem, cuja origem e cumprimento últimos estão em Deus, e que plenamente revelou-se em Jesus Cristo, recapitulador de todas as coisas [Ef1,10] consiste o objetivo último de cada atividade eclesial. Tal bem floresce como antecipação do Reino de Deus que a Igreja é chamada a anunciar e instaurar em cada âmbito da iniciativa humana.” (OPQ 2). Por isto segundo o Documento: “o amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade que toca não só as relações entre indivíduos, mas também as macrorrelações como relações sociais, econômicas, políticas’” (OPQ 2;4). Aqui é preciso ter presente uma distinção fundamental que sempre esteve presente em nossa Teologia e Pastoral Latino Americana: a diferença entre relacionamento social (relação entre indivíduos) e relações sociais (relações estruturais, consolidadas em leis, códigos, hábitos e sancionadas culturalmente). Para melhor entender esta diferença vamos fazer um exemplo. Na época da escravidão o relacionamento pessoal entre o senhor de escravo e seu escravo podia ser mais bondoso ou cruel, este podia tratar melhor seu escravo, com mais cuidado ou podia impor trabalhos mais exaustivos e castigos terríveis. Ser bondoso ou cruel, embora fosse importante para a sobrevivência do próprio escravo, não alterava, entretanto, a relação estrutural, legalmente sancionada, entre o senhor e o escravo (relação social). O Senhor continuava, do mesmo modo, a ser proprietário de um outro ser humano (o escravo), reduzido a uma coisa que podia ser comprada e vendida, usada pelo Senhor segundo a sua vontade para satisfazer suas necessidades. Neste caso não basta o apelo ao coração para que Senhores tenha um bom relacionamento com seus escravos tratando-os bem. É necessário mudar as leis, as estruturas sociais e econômicas, abolir a escravidão, contra os interesses objetivos daqueles que vivem da escravidão. A Missão da Igreja não pode ser reduzida à conversão dos Corações. A Missão fundamental da Igreja, o Anúncio do Reino de Deus por palavras e gestos, necessariamente inclui a ação pela mudança das estruturas e das relações sociais, econômicas e financeiras.

Hoje vivemos em uma economia globalizada onde um mercado soberano, que rejeita qualquer regulação, reduz todos os indivíduos a consumidores e onde “não é possível ignorar que hoje a indústria financeira por causa de sua difusão e de sua inevitável capacidade de condicionar, em certo sentido de dominar a economia real é um lugar onde os egoísmos e as imposições violentas tem um potencial de causar danos à coletividade” (OEQ 14). Contra a visão Liberal e Neoliberal o Documento afirma claramente que o Mercado “não é capaz de regular-se por si mesmo” (OEQ 13). E mais: “de fato, estes não sabem nem produzir aqueles pressupostos que consentem seu desenvolvimento regular [coesão social, honestidade, confiança, leis…]. nem corrigir aqueles efeitos e aquelas externalidades que resultam prejudicais à sociedade humana [desigualdade, assimetrias, degradação ambiental, insegurança social, fraudes..]” (OEQ 13).

Segundo o Documento neste mercado atual que domina nossas sociedades existe uma inversão de ordem entre meios e fins, “em que o trabalho torna-se de um bem em instrumento e em que o dinheiro torna-se de um meio um em fim”, levando a uma crescente concentração de renda e capital e à exclusão de amplos setores da população que são desempregados, privados de trabalho digno, e de acesso aos bens materiais e imateriais mais elementares, constituindo massas sobrantes. (OEQ 15). Aqui pensamos imediatamente na realidade de nosso país, onde uma brutal reforma trabalhista retirou direitos fundamentais dos trabalhadores com a afirmação de que isto levaria o Capital a contratar mais pessoas. O único efeito foi o aumento do lucro abusivo, da exploração do trabalhador, do desemprego e do trabalho informal, uma vez que o enfraquecimento dos direitos e das punições ligadas ao descumprimento da lei tornou ainda mais fácil e vantajosa a contratação do trabalho não legalizado. O mesmo se está tentando fazer com a Reforma da Previdência.

Um ponto também importante do Documento está na afirmação de que é nesta inversão entre trabalho e capital que “encontra um fértil terreno aquela inconsciente e amoral ‘cultura do descarte’”. (OEQ 15) O Documento afirma aqui que esta inversão não é em si mesma fruto de uma cultura mas sim de que é esta realidade econômica produzida pelos interesses financeiros descabidos de uma minoria que impõe esta inversão à sociedade (OEQ 14) é que acaba por naturalizar tal inversão e dar origem à cultura do descarte que considera como natural e necessário que para o progresso da sociedade um certo número de pessoas, e mesmo regiões imensas do planeta, sejam reduzidas a sobras, privadas de todos direitos e acesso aos bem mais elementares necessários à sua sobrevivência e dignidade. Esta Cultura que tem origem em uma prática econômica concreta age, ainda que de modo inconsciente, para reforçar e sustentar esta prática. Tal cultura, como todas as culturas que reforçam ou naturalizam a exploração, deve ser denunciada e desconstruída. Porém não basta pretender transformar a Cultura, como não basta transformar os relacionamentos sociais. É necessário ir além, mudar as práticas econômicas, as relações sociais e as estruturas que estão na raiz destas culturas e que simultaneamente as produzem e são por elas produzidas. E isto, segundo o Documento, é Missão da Igreja Povo de Deus, Sacramento de Salvação para a humanidade e para o mundo.

[1]Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Membro do ISER/ASSESSORIA e das Diretorias da SOTER e INSeCT. Professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio.

 

 

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