A primeira vez que ouvi falar de Pedro foi em um filme exibido no grupo de jovens na Pastoral da Juventude (PJ) ao qual pertencia. Eu devia ter 16, 17 anos. O vídeo falava da ligação da Igreja com os oprimidos. Indicava como o cristão deveria estar engajado nas lutas do povo.
Aquela forma de ver a religião era muito nova para mim. Era muito diferente do catolicismo que se vivia em uma paróquia de subúrbio na segunda maior cidade brasileira. Ninguém chorava quando rezava, não haviam testemunhos comoventes de conversão à Igreja de Jesus.
Ali se mostrava um catolicismo diferente, dava impressão de ser até outra religião. Até parecida em certos aspectos com aquela fé que eu estava descobrindo, mas diferente… Foi algo perturbador.
Aquela fita de videocassete trazia uns padres meios estranhos. Usavam roupas comuns, alguns tinham cabelo comprido. E uns bispos cujos sermões pareciam discursos.
Na parte final do filme, uma figura franzina aparecia cantando e dançando no meio da turma naquilo que lembrava uma espécie de retiro ou encontro religioso. Ele usava roupa simples e óculos do tipo “fundo de garrafa”, como se dizia naquele tempo. Mais à frente, aquela figura aparece vestido de padre, conduzindo uma missa meio “diferente”. Era Pedro Casaldáliga, bispo da prelazia de São Félix do Araguaia.
O filme era “Pé na Caminhada”, produzido ainda nos anos 1980, por uma congregação religiosa. Tempos depois, um dos coordenadores de meu grupo trouxe outro filme. Pedro aparece novamente. Dessa vez ele oferece a um suposto jornalista um anel preto feito de um coquinho da Amazônia, chamado Tucum. Fala de seu significado: um compromisso com as “causas da vida”.
Naqueles tempos de descobertas, a situação daquela Igreja que caminhava com o povo nos encantava e nos assustava. Encantava porque era tudo o que mais queríamos viver, mas nossa realidade eclesial impedia. Pedro Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns, Helder Câmara e outros tantos nos serviam de alento em tempos de perseguições à PJ e a quem apoiava os jovens questionadores dessa pastoral.
Mas aquela realidade também nos assustava muito. Pessoas tinham suas vidas ameaçadas. Aquele filme havia mostrado os corpos sem vida daqueles que lutaram por uma vida digna!
Apesar da enorme distância, procurávamos acompanhar atentamente o que acontecia. Mas não eram tempos de internet, uma ligação interurbana era caríssima. Sabíamos das ameaças de morte, das perseguições, dos conflitos (inclusive com as autoridades do Vaticano) de três formas.
Uma das fontes era a imprensa. Nem sempre dava para confiar no que se escrevia, porque frequentemente os fatos eram distorcidos. Às vezes tínhamos a impressão que os canais de TV apoiavam os inimigos de Pedro.
Os informes mais confiáveis nos eram passados por religiosos que voltavam de uma missão na Amazônia ou que tinham confrades naquelas terras. Também tínhamos notícias por cartas ou telefonemas que algum padre ou freira recebia de seus confrades que por lá estavam e que chegavam até a gente por companheiros da Pastoral da Juventude. Também ficávamos sabendo de algo através de livros sobre a região.
Nosso maior medo era ter mais gente muito querida por nós que fossem mortas a mando dos donos do poder. Já tínhamos mártires suficientes. Não precisávamos de outro Oscar Romero. Ficávamos preocupados porque sabíamos que, se não houvesse outro caminho, gente como Pedro (e depois Dorothy) não hesitariam em imolar suas vidas por causa do Reino.
Ele esteve aqui no Rio de Janeiro em 1995 para receber a medalha Pedro Ernesto. Porém, o plenário da Câmara dos vereadores estava tão cheio que não consegui entrar. E assim perdi a única chance da minha vida de chegar perto do bispo de São Félix.
Mais ou menos naquela época, lemos um livro sobre as lutas de uma região pouco mais ao norte. O texto (Rio Maria, o Canto da Terra) escrito por um padre que lá trabalhava, Ricardo Rezende, relatava muitas histórias de martírios e perseguições contra quem estava ao lado dos pequenos, em nome do Evangelho. Ter algum conhecimento desses fatos aos 17 anos marcou profundamente a minha vida e de meus amigos.
Nossas opções profissionais, escolhas de vida e projetos pessoais estiveram, e ainda estão, fortemente embebidos pelo testemunho de tantos. E dentre esses ressoa forte a vida de Pedro Casaldáliga. Sabíamos que ali residia a Igreja de Cristo e a fidelidade ao Evangelho.
Se em certo momento o espaço eclesial não nos compreendeu, buscamos outros horizontes para continuar fiel de alguma forma a esse seguimento de Jesus. Alguns sem vínculos institucionais. Outros fizeram de sua profissão uma militância pelas “causas da vida”. E alguns ainda caminham sonhando com uma Igreja mais pobre e servidora. Todos marcados pela vida e pelo testemunho do bispo de São Félix do Araguaia.
A morte do último patriarca da Igreja dos pobres nos deixa com sentimentos contraditórios. Por um lado, damos graças pela vida e pela bonita história que Pedro construiu no Araguaia. Fomos testemunhas de sua fidelidade à Cristo e à Igreja. Hoje nos tornamos herdeiros de seu legado.
Por outro lado, dói não o ter mais conosco, em especial nesses tempos tão difíceis. Sua ausência nos causa grande sensação de orfandade. Perdemos nosso pai na Fé, aquele que mais viveu como as minorias abraâmicas, como dizia dom Helder. Isso explica em parte toda a comoção, mesmo sabendo que Casaldáliga disse certa vez que para o cristão não existe a oposição entre vida e morte, mas estamos entre a vida e a Ressurreição.
Mas Pedro era o último de uma geração de bispos, verdadeiros pastores com cheiro das ovelhas, capazes de dar a vida pelo Povo de Deus. Com sua Páscoa, essa geração entra para a eternidade. Ele se junta àqueles a quem faremos memória para sempre, pois se tornaram sacramento do Reino, sinal de profecia e esperança.
A partida de Pedro nesse momento dramático do Brasil nos comove ainda mais. A pandemia nos impede de celebrarmos sua vida e sua ressurreição como gostaríamos. Mas talvez já tenha passado da hora das gerações mais novas assumirem o protagonismo dessa caminhada.
Outros precisarão ser os porta-vozes da esperança, da radicalidade do Evangelho e de certa rebeldia profética que caracterizou a trajetória de Casaldáliga. Não choramos por isso também? Que não tenhamos medo do medo, porque São Pedro do Araguaia nos acompanhará nessa caminhada.
Dedicado a todos os meus amigos daquele grupo de jovens do bairro da Piedade. Juntos sonhamos com uma Igreja libertadora e uma sociedade justa, impactados pela vida de Pedro Casaldáliga.
*Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor e faz parte do Movimento Fé e Política.