“Querida Amazônia”: Primeiras impressões
Por Jorge Alexandre Alves

Acabei de ler o documento pós-sinodal “Querida Amazônia”, do Papa Francisco. Evidentemente fiquei impactado sobre os informes prévios a respeitos da questão da ordenação dos homens casados. Apesar de todo o debate sinodal, esse tema simplesmente não passou pelo documento publicado hoje. A um leitor desatento, daria a impressão de sequer ter sido objeto de tantas discussões ao longo da aula sinodal.

Também é certo que as viúvas de pontificados passados transformaram essa questão – importantíssima, mas secundária diante de tantos desafios urgentes na Amazônia hoje – em um cavalo de batalha. Foi a tática usada por grupos que se opõem ao magistério do Bispo de Roma. Da mesma forma, ainda que o documento valorize a presença feminina na Igreja da Amazônia, a questão do diaconato feminino foi posta de lado.

Não há como deixar de lembrar do contexto que envolveu a elaboração da encíclica Humanae Vitae, de São Paulo VI. Contrariando peritos e teólogos que o assessoraram, o texto publicado condenou o uso dos contraceptivos, causando grande frustração naquele tempo. Hoje, talvez haja um gosto de fel na boca daqueles que esperavam maiores avanços, sobretudo depois de tanto esforço da parte dos que se mobilizaram durante o sínodo, e que sofreram toda sorte de calúnias, mentiras e acusações de heresias.

Por outro lado, o documento traz expressões e referências muito caras a quem foi formado dentro da perspectiva da Teologia da Libertação. A luta pela justiça, a importância da libertação do povo, a defesa dos pobres, a proteção dos povos originários e das populações tradicionais, o tema da inculturação, a questão ecológica… Tudo isso está posto no documento.

Nunca um texto papal fez tantas referências à Teologia Latino-americana. Quando poderíamos imaginar o Sucessor de Pedro fundamentando um texto de seu magistério usando uma matriz teológica não europeia? Francisco, ao fazer isso, manda um claro sinal para toda Igreja.

Embora mencione todos os documentos das conferências do episcopado do continente, “Querida Amazônia” se conecta diretamente ao conteúdo de Medelín. Trata-se de algo que jamais poderia ser imaginado em tempos de João Paulo II ou de Bento XVI. Estamos diante de um texto com muitas coisas inéditas, cujos impactos somente serão percebidos com o tempo.

Além desses elementos, a exortação pós-sinodal contém trechos de um poema de dom Pedro Casaldáliga, bispo Emérito de São Félix do Araguaia. Portanto, fica evidente que Francisco dialoga com a Teologia da Libertação. Quem poderá chamá-la de herege agora?

O documento usa a expressão “comunidades de base”, e de forma positiva. Não me recordo de nenhum texto de pontificados anteriores fazendo essa referência. Sinal que Francisco confirma na fé e valoriza essa forma de ser Igreja.

Mas esses elementos positivos não respondem outras questões vitais para o futuro da Igreja e sobre o pontificado de Francisco. O papa cedeu os anéis para não perder os dedos na condução das reformas da Igreja? Francisco foi emparedado pelos conservadores ou ele foi estratégico, avançando naquilo que outrora seria impensável?

E ainda é possível levantar outras questões: É uma vitória da resistência de ratzingerianos e wojtilianos em oposição à Bergoglio? Ou uma jogada de mestre do Pontífice Romano? Enfim, esse documento marca o fim deste pontificado na prática? Ou foi um passo atrás para se dar dois passos à frente mais adiante? Será que foi um brilhante lance no xadrez que o Papa joga com a Cúria, e que somente entenderemos esse movimento no futuro?

No calor das primeiras impressões não é possível fazer uma análise definitiva. É preciso ler com mais calma o texto, observar as repercussões e ver como essa exortação será aplicada na prática – talvez aí resida seu maior desafio. Outra reflexão será feita, oportunamente.

*A maior parte desse texto foi originalmente publicada na página pessoal do autor no facebook.

**Jorge Alexandre Alves é sociólogo, professor da educação básica e membro do Movimento Nacional Fé e Política

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