Então algumas pessoas me provocam perguntando “o que diz a Bíblia diante deste fato”?
Seria bom começar dizendo que a Bíblia não substitui a Constituição e as leis. Ou seja, o aborto feito está amparado pela legislação. Logo, não pode ser considerado um crime. Poderíamos defini-lo, a partir da confissão religiosa de cada um, um “pecado”. Mas nunca um crime.
A Bíblia não traz nenhum episódio em que o aborto seja analisado dentro da tradição e dos costumes do Povo de Deus. Em algumas passagens o aborto é visto como um castigo ou maldição, principalmente quando se trata de aborto espontâneo em meio à criação das ovelhas e das vacas (cf. Gn 31, 38; Jó 21,10). Também quando há um aborto acidental, a decisão cabe ao juiz (cf. Ex 21,22). E, evidentemente, a sociedade ideal é aquela em que não haverá mais abortos (Ex 23,26).
A passagem em que o aborto é mais trabalhado está em Eclesiastes 6,1-6. É uma passagem que ninguém gosta de citar muito porque o texto é bem claro: existem coisas pior do que um aborto. Entre estas coisas está a riqueza. De fato fica difícil sair dizendo por aí que uma mulher que aborta “é mais feliz” do que um homem que acumula bens e descendência. Melhor esquecer estas coisas da Bíblia.
Por outro lado, a Bíblia é bem mais didática quando se trata de estupro. Aqui temos a longa e detalhada passagem do estupro de Tamar, a filha do rei Davi (2Sm 13,1-20). É uma narrativa didática mostrando como o descontrole da sexualidade por parte de um homem pode acabar com as relações familiares dentro de casa. Este homem é Amnon, o primogênito de Davi.
Apaixonado por sua meia-irmã Tamar ele se deixa envolver pelas insinuações e provocações de um amigo interesseiro e canalha. Eles montam uma sórdida estratégia para que Amnon e Tamar fiquem sozinhos no quarto dele. Lá ela é estuprada pelo irmão. Tudo dentro de casa. Como lembra Jesus, “os inimigos das pessoas serão seus próprios familiares” (cf. Mt 10,36). Triste aqui é papel de Davi. É ele que envia Tamar ao quarto de Amnon. E, depois do ocorrido, “não quis castigar seu filho Amnon, porque era o seu primogênito e ele o amava muito” (2Sm 13,21). A impunidade do estupro vem de longe. A violência de Amnon contra Tamar está na origem do golpe de Absalão contra o rei Davi.
Mas para além das questões de aborto e de estupro, temos é que pensar o que a Bíblia diz a respeito de uma menina de dez anos que, sentindo dor de barriga, vai ao hospital e se descobre grávida e aborta. Aqui creio que o melhor não é buscar passagens bíblicas para fundamentar posições, mas fazer o mesmo que Jairo (cf. Mc 5,22-23): chamar Jesus.
Com certeza Jesus atenderia nosso chamado. Iria até a casa desta menina e, entrando no quarto acompanhado da avó e do avô da criança, abriria um largo sorriso transmitindo segurança e apoio àquela menina. Seguraria nas mãos dela e começaria a refazer sua vida estraçalhada por tanta violência com um convite feito com a voz mais carinhosa possível: Thalíta kum’!