Todo despejo de pessoas e famílias (muitas vezes, com crianças pequenas) de suas moradias em Ocupações é desumano, injusto e antiético (imoral), mesmo que os mandantes do despejo tenham a liminar da “Justiça” (ou, da “Injustiça”). A própria palavra “despejo” é depreciativa e ofensiva. Pessoas e famílias não se despejam como se fossem um caminhão de lixo. Ora, os despejos realizados em época de pandemia do novo coronavírus (a Covid 19), são muito mais graves ainda, são de uma perversidade inconcebível.
O meu juízo ético é, antes de tudo, um juízo racional, um juízo filosófico (todo ser humano – de alguma forma e no seu contexto cultural – é filósofo). É também um juízo racional iluminado pela fé cristã, um juízo teológico (todo ser humano cristão – de alguma forma e no seu contexto cultural – é também teólogo).
Concretamente, trata-se de um juízo ético de um ser humano cristão, seguidor de Jesus de Nazaré, que – além de ter longa experiência no trabalho de base, nas Comunidades Eclesiais, nos Movimentos Populares e nos Fóruns ou Comitês de defesa dos Direitos Humanos e da Justiça e Paz – foi também, por muitos anos, professor de Ética e outras disciplinas filosóficas na Universidade Federal de Goiás – UFG (com doutorado em Filosofia pela USP) e professor de Teologia Moral (ou Ética teológica) em Institutos de Teologia (com doutorado em Teologia Moral pela Pontifícia Faculdade de Teologia da Assunção de São Paulo).
Na teoria, os juízes não falam de “despejo”, mas de “reintegração de posse”. Na prática, porém, trata-se sempre de verdadeiros “despejos”, na maioria das vezes, acompanhados de muita violência policial e de muita barbárie. As pessoas e famílias são jogadas nas ruas sem saber para onde ir. Quanta crueldade! Quanta desumanidade!
Lembro o caso da Ocupação “Sonho Real” no Parque Oeste Industrial, em Goiânia, que vivi e acompanhei de perto.
Em 16 de fevereiro de 2005 – depois de assustar, de madrugada e por dez dias, os moradores da Ocupação (as crianças ficaram traumatizadas) com bombas chamadas, hipocritamente, “de efeito moral” (Operação Inquietação) – em pouco mais de uma hora e meia, cerca de 14 mil pessoas foram jogadas na rua da maneira mais perversa possível (resultado: dois mortos, um paraplégico, muitas pessoas feridas e desaparecidas). Uma verdadeira operação de guerra: a pior barbárie de toda a história de Goiânia (Operação Triunfo).
Depois de tanta maldade, os mandantes e responsáveis da Operação tiveram o despudor de dizer que os militares “combateram o bom combate”. Infelizmente, esses mandantes e responsáveis continuam impunes até hoje, mas – com certeza – não escaparão da Justiça de Deus. Aguardem!
Aos juízes, que em suas injustas liminares, falam em “reintegração de posse”, lembro o que dizia (ainda na Idade Média) o filósofo e teólogo dominicano Santo Tomás de Aquino: a destinação dos bens para o uso (diríamos hoje: para o “bem-viver”) de todos os seres humanos é um Direito primário e a posse, um Direito secundário. Quando o Direito secundário impede o acesso ao Direito primário, ele é injusto e antiético.
O papa Francisco lembra-nos que os Direitos à Terra, ao Teto (Moradia) e ao Trabalho (os três T) são Direitos fundamentais de todo ser humano, são Direitos sagrados.
No dia 23 de agosto passado, sobretudo tendo presente o despejo de famílias de suas moradias durante a pandemia do novo coronavírus (a Covid 19), um coletivo
de mais de 40 Entidades, Organizações e Movimentos Sociais Populares – unidos “em ato político e cultural pela proteção à cidadania” – lançaram a “Campanha Despejo Zero – Pela Vida no Campo e na Cidade”. “Parem os Despejos! Em Defesa das Famílias sem Teto e sem Terra”.
O relator de moradia da ONU pede que o Brasil pare com despejos. Silvio Netto (da direção nacional do MST) ressalta que, diante da pandemia, o despejo é um ato criminoso. “Despejo é um crime de guerra, é um crime contra a humanidade neste momento. Quem praticar, seja juiz, governador, presidente da república, vai entrar para a história como um genocida. Nós não vamos vacilar em momento nenhum em fazer essa denúncia”.
A Campanha ressalta que os despejos – quase sempre com uso da força policial – prejudicam diretamente as políticas de isolamento social. “O isolamento social e a higienização constante são as medidas comprovadamente mais eficazes contra o avanço da pandemia, mas estas medidas são negadas a boa parte da população, que não tem garantido o direito à moradia digna”.
Alguns casos: “Em Pelotas (RS), despejo deixa 63 famílias desalojadas em plena pandemia da Covid-19”. “Eu me senti um lixo, relata catadora de Comunidade removida no DF em plena pandemia”. “Pandemia atrasa respostas para moradores despejados do ‘Prédio da Caixa’, em Niterói”. No acampamento “Quilombo do Campo Grande”, em Campo do Meio, sul de Minas Gerais, a Polícia Militar chegou com um veículo blindado e policiais passaram a disparar bombas de gás lacrimogêneo contra as 450 famílias que resistiam ao despejo. Quanta barbárie!
A Campanha destaca também que, diante da situação no campo, “se faz necessário avançar na demarcação e respeito aos territórios indígenas e quilombolas, em seus costumes e tradições”.
“Além do MST, aderiram à Campanha, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Confederação Nacional das Associações de Moradores, a Central dos Movimentos Populares (CMP), a União dos Movimentos de Moradia (UMN) e o Movimento Nacional de Luta por Moradia”.
O meu total apoio à Campanha. Chega de tanta iniquidade!
(Cf. também: https://www.cut.org.br/noticias/pm-de-zema-avanca-sobre-familias-sem-terra-que-resistem-a-despejo-de49
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 08 de setembro de 2020
Foto de capa: Uol