Luis Miguel Modino conversa o Pe. Vilson Groh, que aborda entre outros assuntos, os desafios para as CEBs. Ele conta sobre seu trabalho em regiões da periferia de Florianópolis e como a Igreja deve se comprometer como os mais pobres.
Acompanhe na íntegra!
Vilson Groh trabalha na periferia de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, na região sul do país. Ele chegou pela primeira vez na periferia em 1979, da mão de uma Mãe de Santo, e descobriu “o morro a partir de uma mulher negra e de uma mulher empobrecida, que era uma líder comunitária”. O padre reconhece que “para mim isso fez muita diferença em meu ministério sacerdotal, ter entrado e visto a periferia a partir de seus próprios olhos, a partir dos olhos de uma mulher. Na visão antropológica isso me deu toda uma estrutura de entendimento, de relacionamento com o sagrado de novo”.
Em sua conversa, reflete sobre os desafios da evangelização do mundo urbano, partindo de sua experiência nascida do trabalho nas periferias. Dentro do processo evangelizador nas periferias, “o primeiro passo, é compreender que realidade é essa e entrar dentro dessa realidade para ter um olhar um pouco mais amplo sobre o processo da cidade, entender a cidade a partir dos mecanismos que a produzem, o que produz o centro e a periferia, sabendo que sem esse entendimento do que é a cidade, os mecanismos que a produzem, os nós que vão estabelecer cada vez mais essa segregação na relação de centro e periferias, é difícil fazer um trabalho que vá a fundo, nas raízes desse processo”.
Se faz necessário partir da “não naturalização da injustiça social. Nós trabalhamos os desiguais, e nossa tendência é ter um certo discurso de que as oportunidades são iguais. Na verdade, quando eu olho a partir da periferia, eu vejo que os desiguais têm outras dimensões em seus processos”, reconhece o Padre Groh, quem diz que “entender e abrir espaço para romper com as indiferenças e ver o outro como pessoa, rompendo com as relações mercadológicas, é um primeiro passo, porque o encontro com o outro é encontro com a pele, é encontro com a sua expressão de etnia, sua expressão de gênero, sua expressão de vida”. Daí se afirma que “o acolhimento e a relação do trabalho de reciprocidade com o outro é fundamental. Pensar na evangelização a partir do outro, para mim, é o grande trabalho do mundo urbano”.
Nos projetos que ele coordena, onde são atendidas diariamente cinco mil pessoas, num trabalho em rede, é priorizada a educação dentro das áreas de periferia, o que faz possível que “um menino que vem conosco com 6 anos, ele pode chegar aos 24 anos cursando uma universidade, materializando seu sono”, segundo Vilson Groh, pois “criar essas alternativas em rede é fundamental na relação de combate, ou seja, na disputa dentro desses territórios com a problemática do narcotráfico”.
Segundo o padre Vilson, “a partir dessa relação, desses encontros, desse processos, eu penso como a gente trabalha com os diferentes no processos das crenças. Eu trabalho muito com a questão dos cultos afros, e a minha relação hoje com o mundo dos terreiros na grande Florianópolis, com o espaço do sagrado, com as mulheres e homens dos terreiros, me proporciona toda uma outra forma de trabalhar a relação e diálogo religioso, de apoiar os terreiros como espaços que aglutinam esses processos”.
“Pensar a evangelização a partir da Boa Noticia tem que partir do outro, tem que partir do seu sagrado, e entrar na relação com seu sagrado”, afirma o padre. Desde aí, reconhece que “talvez seja um desafio nosso, das comunidades eclesiais de base de abrir espaço para fazer esse processo acontecer”, ainda mais depois do 14º Intereclesial, onde foi refletida a evangelização do mundo urbano, especialmente nas periferias, onde as CEBs se fazem mais presentes. Por isso, “um grande desafio para as comunidades, é como elas articulam as pontes. Nós temos que pensar, mesmo tendo uma postura de luta de classe e discutindo as questões hoje que implicam esse processo, como é que a gente abre pontes com outros espaços e cria redes de pontes entre o centro e a periferia para oportunizar, por exemplo, que outros grupos possam vir beber na mística das Comunidades Eclesiais de Base”.
Isso é possível, pois ele mesmo reconhece que “na minha experiencia, nós conseguimos levar para os morros o centro, às vezes 150 pessoas, projetos muito concretos, como pintura de casas, que não é só pintar a casa. O objetivo é criar uma rede de relações, trocas de experiências e romper com essa invisibilidade na relação centro e periferia. Uma prática concreta, que vai muito além de um processo de evangelização no senso mais estrito. Mas hoje a gente trabalha com um leque de abertura de esse processo, para construir oportunidades de perspectiva para ir articulando essas questões e pensar a cidade como um todo”.
Um aspecto que deve ser pensado, segundo Vilson Groh, como tem acontecido na Campanha da Fraternidade desse ano, é a “problemática da violência, que eu acho que é uma outra dimensão que a gente tem que enfrentar de forma muito concreta, porque o conceito de segurança do Estado hoje é um conceito extremamente judicial, tem uma visão judicialista, uma visão extremamente criminosa, criminalizante, é uma visão desde o encarceramento”. Para ele, se faz necessário, “desconstruir esse paradigma do Estado, que passa em compreender um pouco o fenômemo da periferia e trabalhar a discussão se a violência é uma coisa aprendida, pois ninguém nasce violento. Eu faço ou sofro essas violências e reproduzo essas violências. Como é que a violência pode ser desaprendida? A dês-aprendizagem, para mim, passa por caminhos de oportunidades”.
Essa situação leva o Padre Groh a afirmar que temos que ser “capazes de gerar caminhos de políticas públicas nesses espaços, redes onde o foco é a criança, o jovem, o adolescente, articular isso com todo o conjunto hoje, com a questão do judiciário, do Estado, do legislativo, das universidades”. Na sua opinião, é preciso dar passos, “pensar a discussão na superação da violência, nesse desafio enorme que está aí, a gente tem que começar a ampliar foros grandes de discussão e, talvez, um dos focos nessa relação é a discussão realmente com a polícia. Se a gente olha, a polícia ela também está no morro, também entra, e como é que a polícia diz, foi uma questão de um conflito que foi provocado e a polícia se defendeu e um jovem morreu assassinado”.
Para alguém que trabalha na periferia de Florianópolis por quase quarenta anos, “se a gente olha sob esse ponto de vista, a gente teria que chegar a um discurso sobre o por que de um processo puramente repressivo e de uma discussão repressiva. Se nós olharmos nessa discussão repressiva, do aumento dessa visão judicialista que nós temos hoje no país, e olhar por trás desse processo, nós temos saídas como a justiça restaurativa, que pode ser uma grande saída”. Daí que para falar em evangelização, “a gente vai ter que ir adentrando esses processos, mas esses processos tem de nos levar, passo a passo, a pensar a cidade no seu conjunto, com todos seus organismos, estruturas e puxando espaços de mesas de diálogo, para desmitificar e desconstruir o olhar que a policia tem extremamente repressivo com a periferia, e rediscutir o papel do Estado. Na verdade, ele tem que começar discutir a grande questão das grandes rotas, das estruturas do alto crime, sabendo que no mundo 400 bilhões circulam por ano que é fruto dessa questão do tráfico”.
É bem mais simples criminalizar os jovens da periferia, atitude muitas vezes presente na polícia e na própria sociedade, mas não podemos esquecer a reflexão do Padre Vilson, pois “se a gente vai ver quem é o jovem que vai para o tráfico, é o jovem que não tem escolarização, que não tem carteira de trabalho, que às vezes não tem nem a carteira de identidade e que é captado por esse processo todo e capitaneado por essa gente para ele ser máquina de moenda lá na frente”. Nessa perspectiva, mais do que “entrar num discurso com a polícia a partir desse caminho, tem que ampliar o discurso para uma discussão sobre qual é o papel da segurança pública hoje nessa visão do crime organizado, numa esfera muito mais ampla dentro de outros processos, como o processo do judiciário, do legislativo, do executivo”. O objetivo final é “poder trabalhar lá em baixo a questão preventiva. Tem que trabalhar esses dois focos, porque se a gente só trabalhar a questão só embaixo a gente fica enxugando gelo. Se a gente puxa as questões numa visão mais macro, a gente tem condições de ir desconstruindo também e rediscutindo esse processo com as questões do conceito que o Estado tem de segurança”.
Em sua reflexão, o padre Groh desmonta um dos argumentos presentes no Estado, “o ponto de vista de custo e beneficio”. A partir de dados concretos, ele diz que “um jovem hoje num programa de projeto social custa 450,00 reais por mês e um jovem preso em nosso estado 2700,00 reais. Um jovem que tem menos de 18 anos e lhe é suprimida a liberdade, ele está custando para o Estado 4.200,00 reais, um jovem que está em semi liberdade ele está custando 2.200,00 reais. Se a gente olha a questão do preventivo, o investimento e o trabalho puramente punitivo, é claro que o Estado está gastando uma imensidade de dinheiro no punitivo quando ele poderia repensar a questão e dar prevenção, e a prevenção passa exatamente na construção de uma alternativa, de uma perspectiva”.
Nesse ponto, ele vê necessário “entrar como comunidade eclesial de base, repensar as comunidades nessas relações, sem dúvida no processo da evangelização. Por onde a gente entra nesses caminhos e vai construindo as saídas? E as saídas para mim não estão prontas, não estão dadas e é todo dia dar os passos. Agora a gente tem que ter meta, e acho que aí a meta é que as comunidades eclesiais de base têm que avançar um pouco mais para esses espaços, que são os espaços tremendamente excludentes, onde esse pessoal, também até na própria comunidade, não vem. Mas temos que fazer com que a comunidade se torne missionária e avance nesse processo”.
Ele coloca o exemplo de um trabalho a partir desse processo das mortes, que provocou um caminho de resistência e de proposição. “Hoje, nós trabalhamos com o desarmamento, e a gente trabalha com os esportes radicais, que é um caminho que nós encontramos para mexer com as organizações dos jovens que já estão dentro das áreas criminais, que é uma tentativa de trabalhar abrindo caminho. A gente sempre diz: tirar a arma da mão e colocar uma prancha de surf, e é muito interessante o fato de levar essa moçada para o mar, no surf, o fato de sair de dentro do seu gueto, porque quando está no gueto ele está armado e seu discurso é como defender-se da polícia”.
Pelo contrário, “quando ele está fora do gueto, que a gente consegue levar ele para a praia e começa a surfar e começa a ser desafiado pelas próprias ondas, a gente começa a abrir espaços para outras conversas e para outros horizontes, e a partir daí para outras perspectivas”. Um dos problemas que se fazem presentes no projeto é que “o jovem para sair ele não pode ter dívida com o traficante”. Para isso, é preciso “abrir caminho para ele poder trabalhar, pagar sua dívida e a partir disso, muitas vezes, nós negociamos com o traficante para que ele não seja assassinado”. Ele fala de situações que, desde fora, podem resultar chocantes, “já tivemos casos que ao final do pagamento da dívida que o jovem fez, o traficante passou um recibo e esse recibo se torna as vezes um salvo-conduto para ele não ser assassinado no território”.
Existem situações realmente complicadas, como reconhece o Padre Vilson, “lideranças que são atacadas pelo narcotráfico, nós temos que deslocar para outras comunidades e abrir campo para que essas lideranças, que são boas, não sejam assassinadas”. Isso ajuda a ir “encontrando os processos nessas perspectivas”, pois como ele mesmo pensa, “mesmo as bandas organizadas nesse alto nível que elas estão de empoderamento, uma proximidade é interessante. Quem habita dentro do território onde eu habito, no cotidiano, a proximidade cria condições de um mínimo diálogo, e no espaço, mesmo do confronto, abre alguma perspectiva de diálogo”.
Seguindo a temática da Campanha da Fraternidade, se faz necessário refletir sobre a questão dos assassinatos, que cobra sessenta mil vítimas por ano, sobretudo jovens. Ninguém pode esquecer, segundo Vilson Groh, que por trás de cada vítima “está um menino que tem nome, endereço, lar, uma mãe, e a gente sabe o que significa o sofrimento de uma mãe por um filho que morre assassinado no tráfico”.
Vilson Groh insiste em que “o campo da evangelização, ele é imenso, imenso também o trabalho de rede que a gente tem que construir para criar pernas num processo de articulação, com um foco muito concreto, para poder criar condições de perspectiva dentro dessas dimensões hoje no campo da evangelização”. Para fazer realidade tudo isso, não podemos esquecer que “repensar nossa evangelização numa outra perspectiva é fundamental”.