Embora o “espiritual” sempre apareça como algo inseparável de nossa vida concreta em suas alegrias e tristezas, conquistas e necessidade (ação de graças – súplica), há uma tendência a identificá-lo com suas expressões rituais e doutrinais (preceitos e ritos e confissão de doutrina). Por mais que a invocação a Deus esteja sempre ligada aos acontecimentos da vida, quando se pensa em religião, Igreja, espiritualidade, mística, Deus, fé, pensa-se logo em doutrina e ritos religiosos: Uma pessoa ou comunidade é considerada mais ou menos “espiritual” pela constância e pelo tempo dedicado à oração pessoal e comunitária e pela participação na eucaristia. Até a linguagem denuncia: quando se fala de uma manhã ou um dia de “espiritualidade” (e o resto do dia e os outros dias são de que?), fala-se de uma manhã ou um dia de oração; quando se fala de momento da “mística” nos movimentos populares, fala-se de uma expressão artístico-ritual da luta: canto, poesia, teatro, gesto etc. É como se o religioso/espiritual/místico se identificasse com sua expressão ritual-doutrinal.
Não se trata de negar os aspectos ritual e doutrinal do espiritual, mas de tomá-los em seu vínculo essencial com o aspecto vivencial ou práxico. As doutrinas e os ritos – quando não degeneram em doutrinarismos e ritualismos estéreis (tentação e perigo permanentes das religiões!) – são expressão e mediação de autênticas e fecundas vivências ou práticas espirituais. Mas não se pode identificar o espiritual/místico com doutrinas e ritos. Não há um “momento” de espiritualidade ou de mística. Isso não significa dizer que momentos de oração/celebração e formação não sejam importantes e necessários. Mas o espiritual/místico não se identifica com isso nem se reduz a isso. É a dimensão profunda da vida que envolve todas as dimensões, todas as circunstâncias e todos os momentos da vida. É a vida toda vivida/configurada em Deus.
No cristianismo, as expressões “espiritual” e “espiritualidade” remetem à ação e à experiência do Espírito Santo que é o Espírito de Jesus de Nazaré. Não se pode falar do Espírito e de vivência espiritual independentemente ou em contraposição a Jesus de Nazaré. O Espírito faz em e através de nós o que fez em e através de Jesus (Lc 4,18-19; At 10,38). Sua missão é ensinar e recordar o que Jesus disse (Jo 14,26), dizer/explicar o que ouviu/recebeu de Jesus (Jo 16,13-14), dar testemunho de Jesus (Jo 15,26). A vida de Jesus é o critério e a medida do discernimento espiritual (1Cor 12,3; 1Jo 4,1-3). Está em jogo, aqui, um modo concreto de vida, isto é, uma forma de viver e configurar a vida.
Como bem explica Ulpiano Vázquez, “o que caracteriza a espiritualidade cristã não é sublimidade do imaterial, porque o Espírito não se opõe ao mundo, mas o vivifica. O Espírito não foge do mundo, mas desce por sobre as realidades para santificá-las. O Espírito não se refugia no intimismo, mas abre o interior para expandir-se, dilatando-o”. Ele fala, aqui, de “uma experiência ‘exodal’ […] pascal”, recordando que Santo Inácio de Loyola “resumia o progresso espiritual em três êxodos: ‘sair do próprio amor, do próprio querer e do próprio interesse’ e propunha como critério de discernimento espiritual o fato de ‘olhar mais a necessidade dos outros do que o meu próprio desejo’”.
E, na Encíclica Fratelli Tutti, Francisco insiste que “o ser humano […] não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude ‘a não ser por um sincero dom de si mesmo’ aos outros” (FT 87). Enquanto ser de relação, só existe na relação e só se realiza no encontro com os outros: “Feitos para o amor, existe em nós ‘uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acréscimo de ser’” (FT 88). Quando esse dinamismo antropológico de “êxtase” é assumido e vivido de modo saudável e consequente, não nos fecha em determinados círculos de relação nem muito menos nos fecha a outros grupos e pessoas, mas, pelo contrário, abre-nos e capacita-nos a “sair de nós mesmos até acolher a todos” (FT 89).
No fundo, esse “dinamismo de abertura e união para com as outras pessoas” não é outra coisa senão “a caridade infundida por Deus” em nós (FT 91). É Deus mesmo agindo/amando em nós: Deus que é Amor amando-nos e amando em nós ou através de nós (1Jo 4,7-21). Daí seu caráter espiritual no sentido mais estrito, radical e pleno da palavra. A tal ponto, diz Francisco, que “a estatura espiritual de uma vida humana é medida pelo amor” – “o maior perigo é não amar” (92)!